Com Viagem ao Sol, agora em co-realização com Ansgar Schäfer [AD], Susana de Sousa Dias [SSD] prossegue o seu trabalho de mais de duas décadas sobre Trauma & Memória do Estado Novo português. Talvez possamos sintetizar esse trabalho singular no cinema documental contemporâneo em três traços fundamentais: (i) um trabalho sobre o arquivo, restringindo ao máximo o registo de novas imagens pela realizadora; (ii) uma tendência ao trabalho sobre imagens fixas, radicalizando a ideia de slow cinema até ao limite de um cinema “não animado”; (iii) um alto grau de concetualização do seu trabalho, patente quer nos próprios filmes, quer na produção ensaística de que a realizadora os faz acompanhar. Um quarto ponto, em rigor consequência dos anteriores, explica a centralidade da obra nos debates contemporâneos: a forma como ela sobrepõe a uma intensidade política, patente no seu obsessivo “trabalho forense” sobre a longa ditadura portuguesa, uma intensidade formal, manifesta num projeto de estranhamento do visível ou, se se preferir, de desestabilização do arquivo. Isto faz com que a ostensiva presença do político nos filmes de SSD seja não apenas temática, mas também, para não dizer sobretudo, formal, na medida em que o trabalho de desnaturalização das imagens nos coloca em plena dialética das formas, interrogando os regimes – histórico, técnico, fenomenológico, ideológico – subjacentes à constituição dessas imagens e à sua inscrição nos estratos cada vez mais profundos da consciência individual e coletiva. Não há combate político sem combate pelas formas, parece dizer o cinema de SSD, ecoando Maiakovski – restando saber, e entramos aqui no domínio dos problemas desta obra, que tipo de destinação política permite a radicalização formal deste cinema, que nunca consegue abandonar plenamente o seu local de origem, situado algures entre a sala de seminário, a sala de cinema de Arte & Ensaio e a galeria de arte. Continue reading
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VIDAS PASSADAS: ‘Isn’t it pretty to think so?’
Vidas Passadas relança a questão do ‘filme de argumento’, enquanto filme no qual o plano da imagem manifesta alguma dificuldade de autonomização, para lá do ilustrativo, face ao núcleo (muito escrito) da narrativa. Quando duas das três personagens centrais são escritores e a própria realizadora é dramaturga e argumentista, a sombra desse género, se lhe podemos chamar assim, abate-se sobre um filme que, ainda por cima, percorre territórios que nos habituámos a reconhecer em filmes de Woody Allen (Manhattan, basicamente), um dos expoentes de tudo isto, se descontarmos a sua verbosidade, que Celine Song não perfilha. Ir por aí, contudo, não nos leva longe, pois as opções de Song moram antes do lado da arte da ‘mise-en-scène’ enquanto composição da cena e do plano, como por exemplo naquele plano fundamental quando as duas crianças se separam em Seul e cada uma sobe para a estreita rua em que aquela em que vinham até aí se bifurca: o cinema é também isto, ou seja, a dispensa de montagem, ou de linguagem verbal, perante a evidência espacial e física da separação, uma arte à qual os cineastas que fizeram a transição do mudo para o sonoro nunca deixaram de recorrer. Continue reading
DANÇA PRIMEIRO, PENSA DEPOIS, de James Marsh: filmar o mito
A questão estimulante que o filme de James Marsh sobre Samuel Beckett coloca não é, de modo nenhum, nova e é quase obrigatória em filmes sobre escritores, podendo ser formulada deste modo: como mostrar a atividade literária? A resposta de Marsh, também não rara, consiste em deslocar a questão da criação propriamente dita (e de que no filme se oferecem muito escassas ocorrências) para o mundo da literatura, o que o filme resolve começando pela cerimónia de atribuição do prémio Nobel a Beckett, ou seja, externalizando maximamente a questão da literatura, substituindo a representação da escrita pela forma como ela produz um Autor e como este se impõe no mundo. O Nobel é a consagração de todo esse devir que traduz a literatura num conjunto de instituições caucionadas publicamente e que permitem que a história de um autor até lá, e também a de Beckett, seja narrável como um romance cujo título oscilaria entre “A educação sentimental” e “As ilusões perdidas”. Sobre isto é possível fazer um filme dentro das convenções narrativas e industriais que sustentam a arte de levar pessoas à sala escura, o que se complica infinitamente a partir do momento em que se tenta representar a escrita como pulsão além de qualquer moral, como potência crítica de todo o significado transcendental, previamente depositado numa “mente brilhante”, ou como desestabilização das (supostas) evidências miméticas da linguagem (tudo tópicos reportáveis a um grande moderno como Beckett). Ou seja, o que não se filma de um autor quando se resume a sua literatura a um estar no mundo é justamente tudo o que na escrita, e na tão intransitiva atividade literária, é uma questionação, mais ou menos profunda, do pacto que nos permite nomear coisas com nomes que acrescentam coisas que só existem enquanto nomes, ou que só existem porque há nomeação. Continue reading
FECHAR OS OLHOS, de Victor Érice: da visão interior
Quando já ninguém esperava uma obra de tal fôlego, eis que Victor Erice renasce para a sua quarta longa-metragem, colocada sob o signo da velhice, ou melhor, do Jano bifronte que, como no busto que surge logo a abrir, no filme dentro do filme, tem um rosto voltado para a juventude e outro para a velhice. Não se trata, contudo, de revisitar a juventude, explorando as implicações de um aforismo como aquele de Novalis segundo o qual “Tudo é romântico quando visto à distância”. Nada, na verdade, neste filme aspira a sê-lo, nem do passado brota a fonte da melancolia, ainda que o luto irrealizado inunde o filme e sufoque a personagem central, Miguel Garay, romancista e cineasta com uma obra escassa e abruptamente interrompida. O regresso ao passado, motivado por um programa de TV dedicado a casos não resolvidos, permite perceber a que ponto a interrupção define não apenas a obra, literária e fílmica, mas também a vida de Garay, que se suspende no momento da desaparição do ator principal, e seu maior amigo, do seu filme “La mirada del adiós”. Esse facto leva-o a deixar Madrid (e o século), entregando-se a uma reclusão em regime de vida alternativo, numa casa-caravana à beira-mar, sobrevivendo de traduções e do trabalho num barco de pesca. Continue reading
MAESTRO, de Bradley Cooper: filmar a relação
Os filmes sobre maestros tendem a representações, mais ou menos alegóricas, do poder. É o caso do recente Tár (2022, Todd Field), no qual o poder se traduz em assédio, e do remoto Prova d’orchestra (1978) de Fellini, reflexão em ato sobre os conflitos de poder numa orquestra, que terminava, já no escuro dos créditos finais, com um discurso perturbador do maestro, cujo idioma alemão permitia associações políticas funestas (sem surpresa, falou-se de uma inspiração em Karajan). Não assim com Maestro, filme que coloca Bradley Cooper, ator e realizador, na linha da frente do atual cinema americano. Trata-se de narrar a relação amorosa e conjugal de Leonard Bernstein e Felicia Montealegre e o filme poupa-nos ao uso e abuso do contrapicado no tratamento da posição do maestro em palco, decerto por estar menos interessado na questão da sacralização e do poder que na da vivência dionisíaca da música, definidora da personagem de Bernstein, tipicamente Bigger than Life. De facto, tudo em Bernstein parece ser fruído do lado do excesso, do sexo com parceiros de ambos os sexos, embora com uma preferência homossexual que se vai confirmando com os anos, às solicitações da profissão, que colocam o título do filme no cerne quer do processo de constituição da personagem e do próprio filme, quer no do trabalho de interpretação do espetador. Continue reading
PERFECT DAYS, de Wim Wenders: o que é um evento?
Com ‘Perfect Days’, Wim Wenders regressa ao Japão, mas não a ‘Tokyo Ga’ (1985), apesar de aparências ilusórias. Ozu era o motivo dessa viagem a Tóquio e o princípio gramatical do filme, e agora Wenders permite-se a heresia de colocar a câmara ao nível do solo para filmar o leito japonês da personagem central, fazendo, contudo, travellings sobre o eixo, tão discretos quanto fúteis, indo assim contra o preceito da câmara fixa caro ao mestre. De Ozu resta talvez a arte do raccord, mas não visual e sim sonoro, desde o início do filme: o som do vento nas árvores, a que se segue o da varredora na rua, que funciona como o despertador de Hirayama a cada madrugada, antes de sair para a sua férrea rotina diária de limpador de casas de banho públicas em Tóquio. Continue reading
Falar mau inglês a bem da paz perpétua
Duas colegas que muito prezo pediram-me para intervir na apresentação e debate deste livro na FLUC. Não entendi bem, confesso, um dos aspetos do pedido, que depois percebi quando no cartaz vi ao meu nome atribuída a função de “provocador”. Lamento desiludir quem aqui veio para assistir a uma provocação pública a um provocador nato, mas farei apenas aquilo que faço sempre, e que consiste em ler o livro que me foi proposto o melhor que sei. O que implica ler sem preconceitos, mas também sem receio de ofender a delicada sensibilidade do autor (todo o autor é por definição uma alma delicada). Continue reading
Leitura de “Sobre o canto” [A Distância, 1969], de António Franco Alexandre
POÉTICA. O livro A Distância (1969) divide-se em duas partes: a primeira, “Poética”, composta por 20 poemas, ou 20 secções de uma longa variação sobre a ideia e experiência de distância, todos eles datados, por mês e ano, de outubro de 1963 a dezembro de 1968, numa progressão descontínua; a segunda, “Discursos”, composta por 9 poemas “Sobre” (por vezes “De”) coisas como a poesia, o amor, o desejo, a simplicidade, a ausência ou mesmo “uma longa marcha”, título do poema final, e também datados entre julho de 1968 e abril de 1969. Trata-se, pois, de poesia dos anos 60 e, em boa medida, sobre os anos 60, esse período de nomadismo, não apenas académico, do autor, aliás evocado em “L’oubli”, um dos grandes poemas do livro seguinte, Sem palavras nem coisas, de 1974, poema no qual se pode ler: “e à entrada de um novo / dicionário: “é impossível escrever português / fora de Portugal. é impossível / escrever”. Ou ainda: “De boston, em resposta a poemas / alheios: ‘estou inocente, é difícil’ ”. Admitindo aquela tese antiga, e forte, de Fredric Jameson, segundo a qual os anos 60 terminaram com a descolonização portuguesa, proponho que se leia o segundo livro como um relançamento das coordenadas delineadas por A Distância, que se tornam claras em poemas como “Tríptico nómada”, que no livro de 1974 tematiza o nomadismo do livro inicial, dividindo-o por Nova Iorque, Paris e Veneza, bem como pela trilogia “política, sexo & drogas” (deixemos para daqui a pouco o rock’n’roll) patente, na secção “III – Veneza, travessia”, em versos como “il manifesto / deitado sobre a cama, junto ao sexo”, ou “vago, de hashish, o acre / minuto de falar”. Na minha leitura, que é basicamente a de Américo António Lindeza Diogo, os anos 70 chegam de facto com Os Objetos Principais, livro da revolução terminada ou, na formulação mais memorável do livro, “da mesa de piquenique repentinamente abandonada”.
Um grande do nosso tempo: Andrea Camilleri
La forma dell’acqua, o extraordinário romance com que se iniciam as aventuras do comissário Montalbano, abre com a descoberta, num baldio usado para fins de comércio sexual, de uma importante figura da política siciliana, o engenheiro Luparello, morto dentro do seu carro, aparentemente vitimado por um ataque cardíaco durante o ato sexual. Os dois “operatori ecologici” (homens do lixo) que o descobrem, Pino e Saro (uma daquelas parelhas de que Camilleri extrai todas as possibilidades involuntariamente cómicas), reconhecem-no e decidem telefonar a uma outra importante figura do partido de Luparello, o advogado Rizzo, braço direito do falecido. O telefonema revela-se surpreendente, pois o dito advogado não só não mostra qualquer comoção, como se limita a sugerir que quem lhe telefona “cumpra o seu dever” junto das autoridades. Cumprido o dever, prestadas as declarações à polícia, com a omissão do telefonema ao advogado, os amigos regressam a casa. Mas Pino nessa noite não consegue dormir. Oiçamos o narrador:
Cabeça especulativa, era dado ao teatro e tinha representado como ator nas voluntariosas mas cada vez mais raras companhias dramáticas de Vigàta e arredores. Gostava de ler teatro: mal o escasso salário lho permitia, corria à única livraria de Montelusa a fornecer-se de comédias e dramas (eu traduzo).
A poesia de Cabo Verde em duas antologias recentes
A publicação recente, no vol. LXIII, de 2018, da Atlântida. Revista de Cultura, editada em Angra do Heroísmo, de uma antologia intitulada “Poesia CV – Hoje, séc. XXI ?”, com Seleção, Organização e Nota Breve de António de Névada (90 pp. ilustradas com obras muito marcantes do artista plástico cabo-verdiano Alex da Silva), é uma boa ocasião para tomar o pulso à poesia de Cabo Verde, tal como esta antologia a apresenta.
Sobretudo, tendo em conta que há menos de dois anos, no nº 26 da revista DiVersos, de outubro de 2017, Rui Guilherme Silva apresentou uma outra seleção de poetas, com o título “Dez Poetas de Cabo Verde”, o que permite um exercício comparativo com algum potencial iluminador. Continue reading
“Or would you rather be a fish?”: sobre ‘Paterson’, de Jim Jarmusch
1. Paterson abre com um plano, e uma cena, de Paterson (a personagem) a acordar, de manhã, na cama com a mulher. O primeiro dia é Monday, e o filme inscreve-o na imagem, naquele registo caligráfico que sugere uma entrada de diário. Começa a semana e começa o filme e começa o diário. O plano e a cena regressam ao longo dos sete dias do filme, em regime de variação (um termo explicitamente usado por Jarmusch em entrevistas sobre o filme), assegurando quer o recorte interno de um bloco diário, quer a continuidade sobre que se estrutura o filme: rotinas diárias, formas de vida, práticas de escrita e de inscrição matérica: os poemas que Paterson escreve no seu caderno, os círculos, traços e manchas a preto e branco que a sua mulher vai pintando pelas superfícies da casa e, por fim, nos cupcakes que leva à feira. Note-se, a propósito disto, que este é um admirável filme sobre o amor (o primeiro poema intitula-se, aliás, “Love Poem”) e, mais ainda, sobre o amor entre duas pessoas particularmente criativas, ainda que com uma diferença: Paterson é um poeta e toda a sua pulsão criativa é canalizada para um meio reconhecível, estável e anacrónico, o seu caderno; a mulher de Paterson, contudo, é uma artista multidisciplinar cujo meio favorito de expressão é a sua casa – mas não apenas, já que a certa altura compra uma guitarra para tentar realizar o seu sonho de ser uma estrela da country –, casa sobre a qual opera com uma tenacidade a um tempo expansiva e muito focada, já que o seu vocabulário é minimalista: preto e branco, círculos e traços.
O quotidiano é o mundo a partir do qual ambos operam, mas se em Paterson tudo se joga num caderno que será ou não um livro de poemas, na sua mulher a casa aspira à instalação e o seu melhor paradigma seria o Merzbau de Kurt Schwitters.
Paterson, personagem, vive em Paterson, cidade, coincidência aqui e ali notada por outras personagens, em regime mais ou menos irónico. E vive, ainda, no poema Paterson, de William Carlos Williams, poeta que é a sua obsessão pessoal e no qual tudo começa e acaba. Mas isso, a auto-reflexividade irónica mas não cerebral, não obsta a um poderoso subtexto político, que nos apresenta a cidade de Paterson como uma comunidade fortemente multicultural (um ponto destacado por Sérgio Dias Branco, em crítica publicada no Avante) cujo contrato social é enunciado exemplarmente pelo condutor de autocarros de nome Paterson: ouvir (ou melhor, escutar), num regime de curiosidade não invasiva, exatamente como um condutor de autocarros que vai discretamente conhecendo aqueles que conduz, dispondo-se a acolher a heterogeneidade dos discursos dos seus passageiros. O condutor de autocarros seria aqui o ponto de apoio de uma alegoria cartográfica da Cidade enquanto posicionalidade infixa. Uma outra versão desse ponto de apoio de uma tal cartografia seria o dono do bar que Paterson todas as noites visita, mas que contudo não consegue atingir a dimensão de emblema do condutor de autocarros. Paterson seria, assim, a América na qual o outro não é codificado a priori como perigo, o que colocaria o condutor de autocarros no ponto simetricamente mais afastado desse outro condutor chamado Donald Trump. E o seu mandamento político poderia ser reportado a um título também ele emblemático de George Michael: Listen without Prejudice. Continue reading