DANÇA PRIMEIRO, PENSA DEPOIS, de James Marsh: filmar o mito

A questão estimulante que o filme de James Marsh sobre Samuel Beckett coloca não é, de modo nenhum, nova e é quase obrigatória em filmes sobre escritores, podendo ser formulada deste modo: como mostrar a atividade literária? A resposta de Marsh, também não rara, consiste em deslocar a questão da criação propriamente dita (e de que no filme se oferecem muito escassas ocorrências) para o mundo da literatura, o que o filme resolve começando pela cerimónia de atribuição do prémio Nobel a Beckett, ou seja, externalizando maximamente a questão da literatura, substituindo a representação da escrita pela forma como ela produz um Autor e como este se impõe no mundo. O Nobel é a consagração de todo esse devir que traduz a literatura num conjunto de instituições caucionadas publicamente e que permitem que a história de um autor até lá, e também a de Beckett, seja narrável como um romance cujo título oscilaria entre “A educação sentimental” e “As ilusões perdidas”. Sobre isto é possível fazer um filme dentro das convenções narrativas e industriais que sustentam a arte de levar pessoas à sala escura, o que se complica infinitamente a partir do momento em que se tenta representar a escrita como pulsão além de qualquer moral, como potência crítica de todo o significado transcendental, previamente depositado numa “mente brilhante”, ou como desestabilização das (supostas) evidências miméticas da linguagem (tudo tópicos reportáveis a um grande moderno como Beckett). Ou seja, o que não se filma de um autor quando se resume a sua literatura a um estar no mundo é justamente tudo o que na escrita, e na tão intransitiva atividade literária, é uma questionação, mais ou menos profunda, do pacto que nos permite nomear coisas com nomes que acrescentam coisas que só existem enquanto nomes, ou que só existem porque há nomeação.

O cinema gere esta questão tranquilamente, desde o seu início, fazendo da literatura filme, por meio da adaptação de histórias (basicamente textos narrativos ou dramáticos), a tal ponto que se torna difícil pensar na indústria dos filmes sem esse suporte. Mas para que filmar a literatura seja também filmar a potência desestabilizadora da escrita é necessário que mais do que aos filmes seja ao cinema que se torna necessário recorrer, libertando todo o poder da arte das imagens animadas e de que os filmes que vemos em sala dão uma versão unidimensional (os dois filmes maiores de João Botelho sobre Fernando Pessoa, ‘Conversa Acabada’ [1981] e “Filme do Desassossego’ [2010], poderiam exemplificar esse triunfo do cinema sobre a autolimitação do filme). A contrario, a boa consciência do cinema enquanto “arte não literária”, ou seja, coisa em devir supostamente greenbergiano ao encontro da sua pura opsis (posição muito dificilmente sustentável face a uma arte tão “impura”), faz-se daquela máxima segundo a qual o bom cineasta é capaz de engendrar um bom filme a partir de qualquer ninharia literária, dando a ver a que ponto essa matéria de base é apenas, como diria Adorno, algo ao serviço de uma dialética interna dos materiais fílmicos – palavras, sons, adereços, cenários, atores que são corpos apenas, para não cairmos nos excessos de Hitchcock a esse propósito, de resto inteiramente lógicos nesta ordem de pensamento. Como é fácil de perceber, o que ocorre é que a suposta emancipação do cinema face à literatura de facto torna-o refém de uma ideia meramente narrativa de literatura, e de cinema, à qual todo um poderoso cinema minoritário reage, de (por exemplo) ‘Un chien andalou’ a ‘Inland Empire’, de Maya Deren a Stan Brakhage, e por aí fora.

Boa parte das questões levantadas pelo filme de James Marsh é reconhecível no filme muito singular que Vicente Alves do Ó dedicou em 2017 a Al Berto, filme com o próprio nome do poeta. Está em causa nesse filme o regresso de Al Berto a Portugal, pouco após a revolução de 1974, e a sua tentativa, na sequência de uma experiência comunitária em Bruxelas, para criar uma forma alternativa de viver, fazer arte, escrever e publicar livros, em Sines, no casarão familiar que recupera e no qual se apaixona pelo filho do líder local do PCP, meio-irmão do próprio realizador Vicente Alves do Ó. A lição político-moral do filme é relativamente clara: nenhuma revolução consegue fazer as revoluções todas de uma vez, como o demonstra a reação do pai do namorado de Al Berto, que não só não aceita a relação homossexual do filho como, numa curiosa santa aliança com a direita moral (bastante vasta, como se entenderá), persegue Al Berto até conseguir expulsá-lo da casa e da cidade. Embora no filme de Alves do Ó a escrita esteja mais presente do que no filme de Marsh, essa presença é ainda assim irrelevante no saldo final do filme. O ponto realmente estimulante do filme de Alves do Ó é a forma como ele revela o potencial mítico da figura de Al Berto, provavelmente sem par na literatura portuguesa contemporânea. Trata-se, de resto, de uma mitografia diferente da de Pessoa, cuja energia específica deriva da laboriosa, mas indispensável, encenação desse dia triunfal em que a escrita faz mundo: o mundo populoso do sujeito heteronímico. Em Al Berto, a sua capacidade para habitar o céu da literatura é da mesma ordem das paixões que historicamente suscitou em jovens leitores de ambos os sexos e preferências e para as quais pouco contaram os reparos de alguma crítica (Joaquim Manuel Magalhães, sobretudo, mas também Diogo Pires Aurélio) em relação aos “modismos” e “facilidades” da escrita do poeta. Talvez porque a escrita em Al Berto se fez sempre numa capilaridade com a deriva e seus territórios sublunares, desenhando uma cartografia de intensidades em que a escrita se oferece como pálido, ainda que voluptuoso, resíduo dessa “thing of beauty” que só pelo corpo se declina. A inscrição mítica de Al Berto passa, pois, por essa performance de um corpo vivendo perigosamente e do qual é inseparável a questão da beleza (física, mas não apenas) que no filme de Alves do Ó é a da juventude, mas também a de um desafio que é soberana indiferença, só ao alcance dos deuses, pela pequenez dos lugares do mundo e da alma. É isto que Alves do Ó filma em Al Berto e não serei eu a desconsiderar, ou minimizar, o alcance desta proposta de uma inscrição mitológica do autor, pese embora o tropismo do realizador para optar pela “imagem justa”, em vez de simplesmente pela imagem, como recomendaria Godard, o que o leva por vezes ao “precioso”.

James Marsh beneficia, deste ponto de vista, de um trunfo do qual está bem consciente, pois Beckett é um dos mitos maiores da literatura moderna, ainda que, como diria Georg Lukács na Teoria do Romance, na sua versão de “desabrigo transcendental” – situação admiravelmente transposta pelo cenário no qual decorre, numa espécie de gigantesca caverna platónica contrafactual ao palácio de Estocolmo onde tem lugar a cerimónia do Nobel, a conversa autobiográfica entre Beckett e o seu duplo, que vai lançando e relançando a narrativa fílmica, em modo tipicamente dramático, ou seja, por meio de um diálogo de nítida inspiração beckettiana. A fuga que a personagem de Beckett pratica em relação à cerimónia do Nobel, em direção a esse interior cavernoso, dá o rumo ao filme, que quase todo se passa em interiores e, mais do que isso, numa sucessão de momentos de, como se diz da música, “teatro de câmara”: em especial as cenas com a família Joyce ao jantar ou as cenas com a esposa Suzanne (e a amante Barbara). É notório o desinvestimento nas ocorrências públicas de um autor que foi dramaturgo, mas de cuja passagem pelo mundo do teatro, e do teatro como mundo social, apenas nos são dados alguns segundos de Fin de Partie, que permitem encenar o constrangedor encontro entre as duas mulheres no foyer (mais uma vez, a opção pela escala privada). O mais interessante do filme provém, pois, da dimensão propriamente beckettiana da representação da personagem do escritor, quer por Gabriel Byrne, a quem cabe o escritor na velhice, vergado fisicamente ao peso da idade e da tarefa, quer por Fionn O’Shea, que representa o jovem Beckett, sempre um tanto exasperado na sua busca de uma personagem supostamente exasperada De facto, ambos sugerem magnificamente a dificuldade não apenas de representar o mito Beckett, mas sobretudo a dificuldade da representação beckettiana, num permanente curto-circuito do corpóreo e do simbólico, que leva a que a personagem, na versão dos dois atores, tenda a descolar de si mesma.

O menos interessante do filme é o imperativo de produzir uma explicação para a perplexidade que a versão do humano em Beckett suscita, o que se resolve pela receita que a psicanálise, enquanto doxa moderna, fornece. De um lado, o masculino, o Pai e Joyce encarnam as figuras do Mestre; do outro, o feminino, a Mãe e Suzanne encarnam o Édipo que, tipicamente, com maior ou menor intensidade castradora, acaba por se revelar decisivo para a produção da obra. Nesta versão, o drama seria mais digno de Bergman do que de Beckett. Mas sobretudo esta é a versão, de uma espécie de luta de titãs, que o filme sobre o Grande Homem pediria, mas que não bate certo com o filme que Marsh veio a fazer, e que a crítica tende a traduzir na denúncia do “modelo televisivo” (seja lá isso o que for) que não faria jus a um autor além do mais nobelizado. No processo esquece-se que Beckett integra aquela vasta falange de escritores modernos que, como Eugenio Montale dizia, tem uma biografia a 5% (apesar do episódio da Resistência), ao contrário da biografia a 150% dos românticos – ou de Al Berto. A inscrição mítica de Beckett pressupõe sempre essa espécie de sublime negativo, produzido por uma vasta teoria de figuras da escassez e da depauperação, que coloca à sua representação um desafio que qualquer leitor da sua obra reconhece. É, pois, uma pena que Marsh, tendo reconhecido o essencial dos problemas que a produção de um biopic de um autor como Beckett acarreta, tenha cedido a esse imperativo ou complexo (o complexo “João Gaspar Simões”, para remontarmos a Pessoa) que nos dá a Grande Explicação do autor, uma explicação a cuja necessidade o filme parece resistir nos seus melhores momentos. Os quais fazem deste filme um objeto com muitos méritos para pensarmos a longa e equívoca história da relação entre literatura e cinema.