Quando já ninguém esperava uma obra de tal fôlego, eis que Victor Erice renasce para a sua quarta longa-metragem, colocada sob o signo da velhice, ou melhor, do Jano bifronte que, como no busto que surge logo a abrir, no filme dentro do filme, tem um rosto voltado para a juventude e outro para a velhice. Não se trata, contudo, de revisitar a juventude, explorando as implicações de um aforismo como aquele de Novalis segundo o qual “Tudo é romântico quando visto à distância”. Nada, na verdade, neste filme aspira a sê-lo, nem do passado brota a fonte da melancolia, ainda que o luto irrealizado inunde o filme e sufoque a personagem central, Miguel Garay, romancista e cineasta com uma obra escassa e abruptamente interrompida. O regresso ao passado, motivado por um programa de TV dedicado a casos não resolvidos, permite perceber a que ponto a interrupção define não apenas a obra, literária e fílmica, mas também a vida de Garay, que se suspende no momento da desaparição do ator principal, e seu maior amigo, do seu filme “La mirada del adiós”. Esse facto leva-o a deixar Madrid (e o século), entregando-se a uma reclusão em regime de vida alternativo, numa casa-caravana à beira-mar, sobrevivendo de traduções e do trabalho num barco de pesca.
Este é, pois, não um filme proustiano, já que não se trata de recuperar o tempo perdido, mas sim um filme de zombies, uma vez que Garay, retornando à capital para responder à solicitação do programa de TV, que busca descobrir o destino de Julio Arenas, o ator aparentemente suicidado, revisita os locais do crime – as sequências que restam do filme, os adereços que dele restam nos estúdios – como quem regressa dos mortos, sem, contudo, regressar de facto à vida (registe-se a admirável composição sempre algo sonâmbula da personagem por Manolo Solo). O filme de Erice é a história de um trauma sem terapia e para o qual o paradigma policial, ou indiciário, não oferece verdadeira resposta, já que nenhuma figura da Razão, como aquela que o filme parece solicitar (a do detetive em que o cineasta inconvictamente se transforma), está à altura do buraco negro, ou enigma, que preenche a vida de Garay, convocando-o em cessar para a sua treva. Entre o perfil jovem e o perfil idoso do busto de Jano com que o filme abre, situa-se toda a vida que Garay não viveu, 50 anos de um luto por fazer, terra de ninguém e “entretien infini” entre vida e morte. Nesta perspetiva, este é um filme habitado por um olhar tardio, e não tanto por um “estilo tardio”, à maneira de Adorno ou Said, tanto mais que essa figura não é reconhecível no estilo adotado por Erice nesta obra da velhice, dominada antes pela permanência, tão sóbria quanto majestosa, da sua maneira. O filme é tardio porque toda a vida de Garay é um Post Scriptum à interrupção traumática provocada pelo desaparecimento do seu amigo, um desaparecimento sentido como uma traição – a traição que lhe rouba a vida. Mas tardio não significa aqui, em rigor, velho, já que a experiência do tardio habita Garay desde o primeiro momento do desaparecimento inexplicado de Arenas, 50 anos antes do momento em que o encontramos no início da história. É porque sente que a sua vida deixou de bater certo com o tempo que Garay sai de cena para a sua longa reclusão, da qual emerge episodicamente pela publicação de um ou outro conto, coisas menores e inecessárias, como ele mesmo admite, o que não seria o caso do romance ou do filme, formas “maiores” e justificadas apenas pelo sentimento, que Garay já não possui, da sua necessidade.
A reaparição inexplicável de Arenas, num outro espaço de reclusão (um lar de terceira idade), parecendo forçar o filme a uma definição policial, de modo a resolver o enigma do destino da personagem, de facto amplifica a sua ressonância zombie. As respostas da ciência, em particular a do médico que tratou Arenas quando da sua reaparição, são tipicamente insatisfatórias, por serem científicas, já que respondem modesta e parcialmente ao como, mas não ao porquê. Identicamente insatisfatórias são as tentativas terapêuticas, provindas de uma zona algures entre a psicologia behaviorista e a psicanálise, às quais Arenas responde com o mesmo mutismo e indiferença. É porque a ciência falha que Garay recorre por fim a um método que faz lembrar aquele momento de ‘O Exorcista’ (1973) de William Friedkin em que um representante da ciência, um médico num conclave de médicos reunido no hospital, sugere à mãe da criança possuída que recorra antes a alguém exterior à ciência… É, pois, de um exorcismo que se trata e, tal como no filme de Friedkin, em que o sacerdote jovem (e “moderno”) manifesta o seu ceticismo ante o método, também aqui fica claro que nem mesmo as gentes do cinema acreditam já na capacidade taumatúrgica do filme para trazer Arenas de volta à vida. Em Friedkin o exorcista, europeu, idoso e alquebrado, provinha de um espaço exterior à modernidade ocidental e por isso aberto à experiência da fé radical, a África; em Erice, o exorcista que é Garay provém de um tempo anterior ao pós-cinema, o do cinema de há 50 anos, que é também o da crença no realismo baziniano da imagem fílmica (ou melhor, da fé nessa imagem, ou não fosse Bazin homem de fé).
Por fim, duas questões difíceis. A primeira, a constatação de que aquilo que convoca o recalcado e desbloqueia, se o podemos dizer assim, o filme interrompido, que é também o filme da vida de Garay e Arenas, é um programa de TV, o que não é inocente e recoloca no seu lugar (o lugar do fetichismo) todo o dispositivo material convocado para a exibição final das sequências que produzirão o exorcismo de Arenas. O dispositivo, como sabemos de filmes como o de Friedkin, é uma exigência do exorcismo, e daí essa série de índices como o ruído da máquina de projeção ou a sala que convoca os fantasmas do cinema, e não tanto o filme de aventuras em ambiente exótico, que seria o caso de “La mirada del adiós” (título ostensivamente autorreflexivo), mas, sintomaticamente, o western spaghetti, cuja rodagem em território espanhol se encontra associada àquela sala. Ou seja, um género fake que assinala, pelo seu próprio triunfo, a exaustão do cinema clássico, dando a ver como a ideia do clássico é sempre já falsificada e como na repetida evocação da morte do clássico o cinema pratica o exorcismo da sua própria morte – confirmando nesse processo o seu estatuto póstumo, e talvez por isso mesmo muito produtivo, já que liberto da sua necessidade histórica, na atual ecologia das imagens em movimento.
A segunda questão, que atravessa toda a fenomenologia da experiência cinematográfica, e todo o cinema de Erice, é o alcance dessa visão interior pressuposta na experiência de “fechar os olhos” com que o filme termina, para que a vida das suas personagens possa recomeçar – um recomeço que começa pela criança que, no filme dentro do filme, encontra o pai moribundo, fechando os olhos no exato momento da morte deste, que é o do início do resto da vida dela. A psicanálise da fantasmagoria cinematográfica alimentou-se da sala escura para o trânsito entre sonho e vigília definidor da experiência do espetador, o que os modelos mais recentes, da remediação televisiva ao visionamento em computador, questionam, por não praticarem a pré-condição da escuridão. Ora, o cinema de Erice é um cinema da visão interior, criando ao longo do filme, seja ele curta ou longa-metragem, as condições que conduzem o espetador a deslizar para essa dobra em que o visível como que apela a que o não visível o ilumine – quer esteja em causa essa memória por definição perdida que é a da infância, quer se trate da evanescência pictórica, e temporal, do representável. ‘Fechar os Olhos’ é o filme no qual esta questão ganha plena resolução temática, resolvendo ao mesmo tempo os paradoxos que o percorrem: o enigma que habita o filme não se esclarece no plano fenomenal, necessitando de um exorcismo que faça regressar as suas personagens à vida, uma vida que, como o plano derradeiro deixa perceber, no gesto e expressão com que José Coronado fecha os olhos, é bênção tardia e já não esperada, o que exige mergulhar plenamente na visão interior. Aparentemente, a sala escura preenche as condições necessárias a essa experiência, mas, como todo o filme demonstra, tal não coincide com as “condições de felicidade” dela, que demandam mais do que o folclore da cinefilia. O poder do cinema, enfim, mora também na solicitação lançada ao que não se vê, quer se trate da história esburacada de Arenas ou do filme inacabado “La mirada del adiós”, ao qual, na ótica da visão interior, de facto nada parece faltar para que liberte a sua magia: aquilo que não vemos e supostamente não foi rodado (o desenvolvimento narrativo central) revela-se incapaz de afetar o poder catártico do que restou, precisamente o início e o fim. Por outro lado, porém, o que não vemos é o coração (a alma) do filme, colocando-nos, enquanto espetadores, na posição de Arenas, que é a de quem vive uma história pessoal cujo sentido lhe escapa e cujo encadeamento não domina, uma história de que desejou sair e a que apenas regressa por meio de um filme, cujo visionamento faz do ator alguém póstumo a si mesmo.
É a isto, provavelmente, que chamamos “o filme da nossa vida”: algo que ocorre fora e dentro de nós, algo de que somos o protagonista improvável e indesejável, algo em que só somos capazes de acreditar se, e enquanto, fecharmos os olhos.