Creio que a primeira vez que estive num evento académico com Eduardo Lourenço foi justamente aqui, em Salamanca, há demasiados anos, num colóquio organizado pela área de Português, então coordenada por Ángel Marcos de Dios. Se não erro, Lourenço tentou nessa ocasião um paralelo contrastivo entre a literatura espanhola e a portuguesa, gesto apenas ao alcance de quem possua um repertório de leituras ao nível daquele que o definia – e sempre, se também o recordo bem, em torno das diversas formas de vivência do trágico dos dois lados da fronteira. É, por isso, auspicioso que esta sessão de apresentação de um livro coletivo sobre a relação entre Eduardo Lourenço e o Brasil decorra em Salamanca, ou seja, naquela Espanha tão próxima historicamente de nós quanto a Universidade de Coimbra, que foi a Alma Mater de Lourenço, está próxima da de Salamanca, universidade que formou as primeiras gerações de mestres de Coimbra. Continue reading
Category Archives: Apresentações
Uma PASTORAL renovada
No passado sábado, 28 de janeiro, foi objeto de apresentação pública, no Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira, um conjunto de dois livros preparados por Rosa Maria Martelo e editados pela Averno e pela Alambique – uma edição conjunta que atribui à primeira a publicação de uma nova versão de Pastoral, de Carlos de Oliveira, e à segunda a de Matérias Difusas, Poderosas Coisas, de Rosa Maria Martelo, obra com o subtítulo “Uma Leitura de Pastoral, de Carlos de Oliveira”. Os livros têm a mesma proposta gráfica e formato, embora com cores diferentes, Pastoral em verde e Matérias Difusas, Poderosas Coisas em tom alaranjado.
Para esta reedição, que é de facto uma edição nova, de Pastoral, foi decisiva a utilização do “exemplar intervencionado” (termos de Rosa Maria Martelo) da plaquete da edição autónoma de 1977 constante do espólio do autor, exemplar esse que acrescenta aos 10 poemas a sua versão escrita à mão e ainda 10 ilustrações a lápis de cera do autor. O “exemplar intervencionado” é oferta do autor a Ângela de Oliveira, cuja inscrição na obra constava já do poema “Chave”, dedicado a Anne Gall, um outronímico aí usado por Carlos de Oliveira para a sua companheira. Continue reading
REI ÉDIPO (1967), de Pier Paolo Pasolini
No texto do Rei Édipo, de Sófocles, que Pier Paolo Pasolini tratou com máxima liberdade no seu filme de 1967, após vazar os olhos Édipo afirma que o fez por ter deixado de ter prazer em contemplar os filhos, a cidade, com as suas muralhas, e as imagens sagradas dos deuses. E acrescenta que desejaria ter cortado também as orelhas se isso lhe garantisse deixar de ouvir. A frase é esta: “Houvesse ainda para a fonte dos sons uma barreira na senda dos ouvidos, e não me teria contido, sem aferrolhar o meu pobre corpo, para que fosse, além de cego, incapaz de ouvir; é doce para o espírito habitar longe dos seus males”[1]. O filme de Pasolini é a denegação, ponto por ponto, desta renúncia trágica ao mundo, já que, da infância à cegueira da velhice, o que permanece é o apelo da realidade primordial, ou melhor, e indo ao encontro do pensamento do cineasta, o apelo primordial da realidade. Esse apelo para cuja reprodução, como defendeu nos seus textos teóricos sobre o cinema, nenhuma linguagem existe mais bem apetrechada do que a linguagem do cinema, a que chamou “a língua escrita da realidade”, uma linguagem que “exprime a realidade com a realidade”[2]. A realidade primordial, neste filme, é a infância, o que é o mesmo que dizer, com Freud, autor que Pasolini leu toda a vida, o mundo turvo e perverso das origens ao qual, como se aprende lendo o Rei Édipo, é perigoso remontar. Continue reading
Falar mau inglês a bem da paz perpétua
Duas colegas que muito prezo pediram-me para intervir na apresentação e debate deste livro na FLUC. Não entendi bem, confesso, um dos aspetos do pedido, que depois percebi quando no cartaz vi ao meu nome atribuída a função de “provocador”. Lamento desiludir quem aqui veio para assistir a uma provocação pública a um provocador nato, mas farei apenas aquilo que faço sempre, e que consiste em ler o livro que me foi proposto o melhor que sei. O que implica ler sem preconceitos, mas também sem receio de ofender a delicada sensibilidade do autor (todo o autor é por definição uma alma delicada). Continue reading
“Fahrenheit 451”: ler menos?
“Basta filmar um livro a arder para que as pessoas o amem”. A frase, bem denunciadora da sacralização do livro na nossa cultura, é de François Truffaut e aparece quer nas entrevistas que deu quando do lançamento de Fahrenheit 451, em Veneza, em setembro de 1966, quer nos seus depoimentos e livros, quando se refere ao filme. O problema técnico, aliás – como incendiar livros – suscita vários comentários empenhados a Truffaut nos quais chama a atenção para a dificuldade de queimar livros, pois os livros ardem mal, por serem demasiado compactos, mas também para a beleza visual das páginas que se encarquilham como pétalas rubro-negras sob a ação do fogo. A sua excitação com a questão está bem patente nestas palavras: “As cenas de incêndio são formidáveis! Adoro o fogo! Sempre fui um pouco incendiário” (O Cinema segundo François Truffaut, org. de Anne Gillain, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 169). Podíamos reter esse comentário, que sugere desde logo que o amor pelos livros vem sempre acompanhado do fantasma da sua destruição, sobretudo pelo fogo. Ou seja, e se me permitem que use palavras de ascendência antiga, não há bibliofilia sem biblioclasmo: o gráfico da expansão da primeira (o culto e a paixão devoradora pelos livros) é sempre acompanhado pela ocorrência do segundo (o enfado ante os livros e o desejo íntimo da sua eliminação).