Um grande do nosso tempo: Andrea Camilleri

La forma dell’acqua, o extraordinário romance com que se iniciam as aventuras do comissário Montalbano, abre com a descoberta, num baldio usado para fins de comércio sexual, de uma importante figura da política siciliana, o engenheiro Luparello, morto dentro do seu carro, aparentemente vitimado por um ataque cardíaco durante o ato sexual. Os dois “operatori ecologici” (homens do lixo) que o descobrem, Pino e Saro (uma daquelas parelhas de que Camilleri extrai todas as possibilidades involuntariamente cómicas), reconhecem-no e decidem telefonar a uma outra importante figura do partido de Luparello, o advogado Rizzo, braço direito do falecido. O telefonema revela-se surpreendente, pois o dito advogado não só não mostra qualquer comoção, como se limita a sugerir que quem lhe telefona “cumpra o seu dever” junto das autoridades. Cumprido o dever, prestadas as declarações à polícia, com a omissão do telefonema ao advogado, os amigos regressam a casa. Mas Pino nessa noite não consegue dormir. Oiçamos o narrador:

Cabeça especulativa, era dado ao teatro e tinha representado como ator nas voluntariosas mas cada vez mais raras companhias dramáticas de Vigàta e arredores. Gostava de ler teatro: mal o escasso salário lho permitia, corria à única livraria de Montelusa a fornecer-se de comédias e dramas (eu traduzo).

Cabeça especulativa que era, não conseguia dormir, pois o telefonema ao advogado Rizzo continuava a perturbá-lo:

Então pegou num papel e numa caneta e transcreveu o diálogo mantido com o advogado, palavra por palavra. Releu-o e corrigiu-o, forçando a memória até transcrever mesmo as pausas, como num guião de teatro. Quando o teve frente a si, releu-o na versão definitiva. Algo não funcionava naquele diálogo.

Numa incursão a casa de Pino, que vivia com a mãe e não estava de momento, Montalbano consegue iludir a mãe e apoderar-se do manuscrito. Pino regressa a casa, apercebe-se de que o manuscrito desapareceu e, pela reconstituição da mãe, percebe que o texto está na posse do comissário, que decide visitar na esquadra. O comissário começa por lhe perguntar se escreve “cose di teatro”, ao que Pino responde que não, mas que faz de ator de quando em quando. Nessa altura Montalbano exibe o texto, perguntando se aquilo é ou não teatro, ao que Pino responde que não, não se trata de uma cena de teatro… Montalbano informa então Pino que só se pode tratar da transcrição de um telefonema ao advogado Rizzo logo após terem encontrado o cadáver, telefonema ocultado à polícia. Pino admite que o telefonema se destinava a tirar alguma vantagem da situação junto de um poderoso, mas Montalbano insiste: Por que razão transcreveu Pino o diálogo? Chantagem? Nessa altura, Pino esclarece: “Transcrevi o telefonema porque o queria estudar, não me soava bem, falando como homem de teatro”. “Não te entendo”, retorque o comissário, explicando-se então Pino:

Façamos de conta que o que está aí escrito deve ser recitado, de acordo? Então eu, personagem Pino, telefono de manhãzinha à personagem Rizzo para dizer-lhe que encontrei morta a pessoa de que ele é secretário, amigo devoto, companheiro de política. Mais do que irmãos. E a personagem Rizzo permanece fresca como uma alface, não se agita, não pergunta onde o encontrámos, como morreu, se foi tiro, se foi acidente de automóvel. Nada de nada, pergunta apenas porque é que fomos dar-lhe a ele a notícia. Parece-lhe que bate certo?

Montalbano admite que não e Pino remata, ainda em regime teatral: “Não, comissário, está tudo errado nesta comédia, o público iria pôr-se a rir, não funciona”.

A inteligência de Camilleri, a força tão impressiva da sua assinatura autoral é inteiramente reconhecível nesta ocorrência micro da qual, contudo, é ao mesmo tempo possível extrair uma série de implicações de vasto alcance para a leitura da sua obra, e cujo elenco tentarei aqui:

1.A matriz teatral da obra e da escrita de Camilleri, reconhecível na arte do diálogo – de que o cap. IV de La forma dell’acqua fornece um dos paradigmas, na forma como encadeia e “monta” uma sucessão de diálogos telefónicos do comissário em plena investigação, sem descurar os seus aspetos mais institucionais ou “políticos” ou, em baixo contínuo, a relação com a namorada Lívia – e nas recorrentes inscrições da cena teatral como espelho da cena do mundo, com todos os seus jogos de máscaras. Sobre isto, nada como ler o cap. 1 dos seus Esercizi di memoria, de 2017, que evoca, sob o título “As cinzas de Pirandello”, a relação que ao longo da vida Camilleri manteve com a lição do grande mestre do teatro italiano moderno, evocado com um humor que não hesita perante a sua variante negra, ou não se tratasse da evocação do destino dado às cinzas de Pirandello. Ou, ainda, uma personagem como Catarella, que é impossível não situar na grande tradição do cómico popular italiano, de tradução fílmica muito feliz, de Totó a Angelo Russo, o ator que imortalizou a personagem na adaptação televisiva do ciclo Montalbano.

2.  A sobreposição de teatro e literatura ou arte de massas, na forma do “policial”, que reproduz , ainda que em regime deslocado, o percurso de Camilleri enquanto cultor e encenador do teatro moderno (por exemplo, Beckett) e pioneiro do uso da TV para fins latamente artísticos e culturais, num tempo em que a legitimação da televisão pública na Europa passava por essa articulação, que Camilleri praticou sem drama visível toda a vida.

3. A modalidade específica de economia sígnica que rege a relação entre oralidade e escrita, com um espetro infindável de implicações. Desde logo, na forma como o dialeto siciliano, presente na forma de ocorrência lexicais ainda pontuais nos primeiros livros, se vai expandindo até todo o livro ser “escrito” em siciliano, esse dialeto que, no cap. 1 de La forma dell’acqua, é descrito como “incompreensível, feito mais de silêncios do que de palavras, de indecifráveis movimentos de sobrancelhas, do impercetível encrespar das rugas”. A ênfase aqui colocada no paralinguístico traduz o caráter infixo de um dialeto cuja debilidade no domínio do registo escrito Camilleri suplementará progressivamente por meio de uma escrita fonética criativa e recreativa, minimamente filológica e sempre mais empenhada em fazer justiça a uma cultura e a um povo que vive (palavras ainda do cap. 1) “em aldeias que estavam a um metro de altura do nível do mar”.

4. A forma como a escrita interroga a oralidade e aquilo que no diálogo não funciona não nos apresenta apenas uma modalidade de gramatologia que recua à mediação da escrita como fonte e origem do sentido possível. Na verdade, a escrita é-nos apresentada como algo que faz existir o processo crime, sendo este aquilo que sustenta a intransigência epistémica que define o detetive, tal como na definição clássica do policial por Kracauer. Reescrever o diálogo, regressar sem cessar à cena primitiva até ela “soar bem”, alargando em seguida o seu âmbito a pessoas, instituições e mundos, para depois o estreitar de novo até ao funil que conduz ao criminoso, é toda a ética da investigação que Montalbano tempera periodicamente com as pausas gastronómicas herdadas de Montalbán, as quais, pela sua intensidade, nem lhe admitem falar. O processo retoma, após as refeições, toda a tramitação processual e judicial moderna e italiana (polícia científica, patologista, juízes), sem a qual não se consegue sustentar, embora por vezes necessite de lhe aplicar algumas entorses. Mas o lado weberiano é tão omnipresente quanto fastidioso, o que é patente naqueles momentos em que Montalbano é confrontado com a necessidade de assinar os processos que se amontoam na secretária (e poderíamos ver aqui uma reticência especificamente italiana face à racionalização moderna, não se desse o caso de o enfado ante a burocracia ser também um tropo do policial americano contemporâneo). O seu enfado, contudo, é revelador de que aquilo que o entusiasma é a inquirição, a ponto de muitas vezes os criminosos serem “perdoados” pelo comissário ou, pelo menos, compreendidos, sobretudo nos casos que a um leitor português se afiguram mais “camilianos”, e que não são poucos. Intransigência epistémica e transigência humana parecem harmonizar-se como provavelmente só poderia ocorrer numa cultura tão católica como a siciliana.

5. A presença ostensiva da escrita no romance policial de Camilleri vai a par da omnipresença da literatura no ciclo Montalbano. O comissário é homem de muitas leituras e não são raros os casos que resolve por sugestão de uma obra literária. Como se isso não bastasse, em vários dos romances do ciclo Montalbano o metaliterário ganha dimensões inusitadas na chamada Pulp Fiction, suscitando ou o sorriso ou a incredulidade do leitor. Não só tudo é teatro, como tudo é literatura em Montalbano, a começar pela cidade de Vigàta e passando por todas as remissões para e citações de autores do cânone italiano, embora não apenas, de Dante a Manzoni, Leopardi ou Sciascia, citações ou remissões que fluem com a naturalidade das formas da água. E tudo isto ocorre num género que, a priori, parece pedir antes transparência ou o cortejo de truques apto a suscitar credulidade. Talvez ajude a entender este descaramento o facto de Camilleri, à data de edição do primeiro Montalbano, ter já 69 anos, o que explica a intensidade da premeditação da série, com todas as suas personagens recorrentes já constituídas, e a forma como ela deu corpo a uma figura autoral (e pública) cada vez mais marcante, que geriu a sua autoria até ao fim (mesmo apesar da cegueira) e para lá dele, como se vê no facto de o último romance da série, Riccardino, ter sido entregue pelo autor ao editor já há anos.

A última máscara assumida por Camilleri foi a de Tirésias, no monólogo dramático Conversazione su Tiresia, escrito e interpretado pelo autor no Teatro Greco de Siracusa, em 2018. “Chamem-me Tirésias”, pede Camilleri a abrir, invocando o começo famoso do Moby Dick– antes de propor, em alternativa, “Tirésias sou, para o dizer à maneira de um outro” (o comissário Montalbano, por intermédio do qual se abre um produtivo jogo de anacronismos). Trata-se, de novo, de uma inquirição sobre as versões que da história de Tirésias circulam na cultura, tentando, um tanto inutilmente, destrinçar falsidades e verdade, numa permanente derrota filológica que finalmente parece conceder que cada época produz o seu Tirésias. O monólogo percorre a sobrevida de Tirésias, de Tebas aos nossos dias, concluindo com um conto homónimo de Primo Levi, no qual o autor conta que no horror dos campos nazis “arriscou uma metamorfose pior do que a minha [de Tirésias], a de humano em não humano, e que o que o salvou foi justamente a poesia”. O monólogo de Tirésias termina com estas palavras, que é difícil não ler à luz da intervenção cívica de Camilleri, numa Itália que assiste hoje a uma banalização do fascismo:

Devo confessar-vos que nunca eu previ um tal horror. Era um horror para lá até da imaginação exercitada em tantas vidas e aberta a todos os riscos.

Um horror do qual nem a imaginação literária se pôde aproximar, é certo. Mas, como se aprende em Camilleri, sem ela estamos ainda mais desarmados para imaginar as perversidades e os requintes do mal.

 

 

 

 

 

P.S. Nos últimos anos, Andrea Camilleri e Salvo Montalbano acompanharam-me na praia, em cafés, no sofá ou no hospital. No último caso, devo a José Augusto Cardoso Bernardes a requisição de vários dos livros em tradução, que me ajudaram a passar um tempo difícil de passar, antes de me ter rendido às vantagens do Kindle para a leitura dos livros no original. Em todo este período, Alcir Pécora, que permanece fiel ao giallo em papel, foi discutindo comigo os livros de Camilleri, em presença ou ao longe, o que é mais do que se pode desejar.

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