No texto do Rei Édipo, de Sófocles, que Pier Paolo Pasolini tratou com máxima liberdade no seu filme de 1967, após vazar os olhos Édipo afirma que o fez por ter deixado de ter prazer em contemplar os filhos, a cidade, com as suas muralhas, e as imagens sagradas dos deuses. E acrescenta que desejaria ter cortado também as orelhas se isso lhe garantisse deixar de ouvir. A frase é esta: “Houvesse ainda para a fonte dos sons uma barreira na senda dos ouvidos, e não me teria contido, sem aferrolhar o meu pobre corpo, para que fosse, além de cego, incapaz de ouvir; é doce para o espírito habitar longe dos seus males”[1]. O filme de Pasolini é a denegação, ponto por ponto, desta renúncia trágica ao mundo, já que, da infância à cegueira da velhice, o que permanece é o apelo da realidade primordial, ou melhor, e indo ao encontro do pensamento do cineasta, o apelo primordial da realidade. Esse apelo para cuja reprodução, como defendeu nos seus textos teóricos sobre o cinema, nenhuma linguagem existe mais bem apetrechada do que a linguagem do cinema, a que chamou “a língua escrita da realidade”, uma linguagem que “exprime a realidade com a realidade”[2]. A realidade primordial, neste filme, é a infância, o que é o mesmo que dizer, com Freud, autor que Pasolini leu toda a vida, o mundo turvo e perverso das origens ao qual, como se aprende lendo o Rei Édipo, é perigoso remontar. Como, a este propósito, Jocasta diz a certa altura a Édipo, respondendo à inquietação deste sobre a possibilidade de ter dormido com a mãe, “não vivas no temor das núpcias de tua mãe: é que muitos foram já os mortais que em sonhos a sua mãe se uniram. Mas quem destas coisas não cuida, a esse mais fácil lhe é suportar a vida” (op. cit, p. 258). Como é amplamente sabido, uma das pessoas que se dedicou a cuidar destas coisas (coisas como sonhos e como o desejo pela mãe) foi justamente Sigmund Freud, que nos ajudou a recuperar para os tempos modernos a peça de Sófocles, ainda que lendo-o com a falta de respeito que carateriza os grandes leitores. O filme de Pasolini é mais um daqueles elementos que nos faz perceber a que ponto é inútil tentar hoje ler o Édipo sem Freud, pois o filme, como toda a crítica percebeu desde o início, é de facto o resultado da sobreposição de três textos: o de Sófocles, muito amputado e modernizado na sua dicção, o da leitura de Sófocles por Freud e a autobiografia da revisitação da sua infância por Pasolini. Continue reading
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“Fahrenheit 451”: ler menos?
“Basta filmar um livro a arder para que as pessoas o amem”. A frase, bem denunciadora da sacralização do livro na nossa cultura, é de François Truffaut e aparece quer nas entrevistas que deu quando do lançamento de Fahrenheit 451, em Veneza, em setembro de 1966, quer nos seus depoimentos e livros, quando se refere ao filme. O problema técnico, aliás – como incendiar livros – suscita vários comentários empenhados a Truffaut nos quais chama a atenção para a dificuldade de queimar livros, pois os livros ardem mal, por serem demasiado compactos, mas também para a beleza visual das páginas que se encarquilham como pétalas rubro-negras sob a ação do fogo. A sua excitação com a questão está bem patente nestas palavras: “As cenas de incêndio são formidáveis! Adoro o fogo! Sempre fui um pouco incendiário” (O Cinema segundo François Truffaut, org. de Anne Gillain, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 169). Podíamos reter esse comentário, que sugere desde logo que o amor pelos livros vem sempre acompanhado do fantasma da sua destruição, sobretudo pelo fogo. Ou seja, e se me permitem que use palavras de ascendência antiga, não há bibliofilia sem biblioclasmo: o gráfico da expansão da primeira (o culto e a paixão devoradora pelos livros) é sempre acompanhado pela ocorrência do segundo (o enfado ante os livros e o desejo íntimo da sua eliminação). Continue reading
Roberto Piva, diseur: um exemplo cinematográfico
É a última cena do documentário Assombração urbana com Roberto Piva, de Valesca Canabarro Dios (2004). Um zoom inicial muito desfocado apresenta lateralmente algo que reconhecemos como sendo a extremidade dos óculos de Roberto Piva, num plano banhado numa tonalidade azulada e violácea. Piva parece contemplar um filme, de que nos chega apenas o reflexo intenso da luz e o ruído do projetor, convivendo em fundo com a música de Bach que satura todo o primeiro plano do espectro aural. Em seguida, a câmara desloca-se brevemente para esse objeto de contemplação impossível – uma pura e trémula inundação de luz ou, se se preferir, uma pura emulsão de película –, e por fim, após um corte discreto, o plano fixa-se no perfil de Piva, semimergulhado numa treva apenas quebrada pelos reflexos da luz da projeção no seu rosto. Não nos é concedido ver aquilo que Piva contempla, pois nunca acedemos ao contracampo, com exceção da breve exemplificação acima referida: o perfil recortado de Piva é agora o (nosso) ecrã, consoante o tremeluzir da luz do filme no seu rosto. Que filme será esse que Piva contempla e nele se reflete? Vou alimentando algumas hipóteses, que me ajudam a ver a cena, a pensar Piva e a relação da sua poesia com o mundo da história e, antes dela, com o mundo da mente. Creio que preciso delas para acabar de ver o filme e para que esta cena faça sentido para mim. Mas por agora quero concentrar-me nessa imagem do perfil de Roberto Piva vendo no escuro um filme enquanto o ouvimos dizer o extraordinário texto “O século XXI me dará razão”, que reproduzo aqui: Continue reading
“Or would you rather be a fish?”: sobre ‘Paterson’, de Jim Jarmusch
1. Paterson abre com um plano, e uma cena, de Paterson (a personagem) a acordar, de manhã, na cama com a mulher. O primeiro dia é Monday, e o filme inscreve-o na imagem, naquele registo caligráfico que sugere uma entrada de diário. Começa a semana e começa o filme e começa o diário. O plano e a cena regressam ao longo dos sete dias do filme, em regime de variação (um termo explicitamente usado por Jarmusch em entrevistas sobre o filme), assegurando quer o recorte interno de um bloco diário, quer a continuidade sobre que se estrutura o filme: rotinas diárias, formas de vida, práticas de escrita e de inscrição matérica: os poemas que Paterson escreve no seu caderno, os círculos, traços e manchas a preto e branco que a sua mulher vai pintando pelas superfícies da casa e, por fim, nos cupcakes que leva à feira. Note-se, a propósito disto, que este é um admirável filme sobre o amor (o primeiro poema intitula-se, aliás, “Love Poem”) e, mais ainda, sobre o amor entre duas pessoas particularmente criativas, ainda que com uma diferença: Paterson é um poeta e toda a sua pulsão criativa é canalizada para um meio reconhecível, estável e anacrónico, o seu caderno; a mulher de Paterson, contudo, é uma artista multidisciplinar cujo meio favorito de expressão é a sua casa – mas não apenas, já que a certa altura compra uma guitarra para tentar realizar o seu sonho de ser uma estrela da country –, casa sobre a qual opera com uma tenacidade a um tempo expansiva e muito focada, já que o seu vocabulário é minimalista: preto e branco, círculos e traços.
O quotidiano é o mundo a partir do qual ambos operam, mas se em Paterson tudo se joga num caderno que será ou não um livro de poemas, na sua mulher a casa aspira à instalação e o seu melhor paradigma seria o Merzbau de Kurt Schwitters.
Paterson, personagem, vive em Paterson, cidade, coincidência aqui e ali notada por outras personagens, em regime mais ou menos irónico. E vive, ainda, no poema Paterson, de William Carlos Williams, poeta que é a sua obsessão pessoal e no qual tudo começa e acaba. Mas isso, a auto-reflexividade irónica mas não cerebral, não obsta a um poderoso subtexto político, que nos apresenta a cidade de Paterson como uma comunidade fortemente multicultural (um ponto destacado por Sérgio Dias Branco, em crítica publicada no Avante) cujo contrato social é enunciado exemplarmente pelo condutor de autocarros de nome Paterson: ouvir (ou melhor, escutar), num regime de curiosidade não invasiva, exatamente como um condutor de autocarros que vai discretamente conhecendo aqueles que conduz, dispondo-se a acolher a heterogeneidade dos discursos dos seus passageiros. O condutor de autocarros seria aqui o ponto de apoio de uma alegoria cartográfica da Cidade enquanto posicionalidade infixa. Uma outra versão desse ponto de apoio de uma tal cartografia seria o dono do bar que Paterson todas as noites visita, mas que contudo não consegue atingir a dimensão de emblema do condutor de autocarros. Paterson seria, assim, a América na qual o outro não é codificado a priori como perigo, o que colocaria o condutor de autocarros no ponto simetricamente mais afastado desse outro condutor chamado Donald Trump. E o seu mandamento político poderia ser reportado a um título também ele emblemático de George Michael: Listen without Prejudice. Continue reading