A sala do Instituto de Estudos Brasileiros acolhe hoje esta exposição das obras publicadas por Pires Laranjeira, bem como das teses que orientou ao longo da sua carreira académica. Na minha qualidade de coordenador do IEB, sugeri empenhadamente à Professora Doris Wieser que a exposição tivesse lugar aqui. Fi-lo, para começar, por sentimento elementar de retribuição, pois quando a lecionação da literatura brasileira no nosso departamento necessitou de ajuda, o Professor Pires Laranjeira esteve na primeira linha desse serviço, de forma inteiramente voluntária. Mas fi-lo também porque os vínculos entre o Brasil e a África de língua portuguesa são um dos roteiros obrigatórios do trabalho dos especialistas nessas literaturas africanas, e Pires Laranjeira não deixou de, também ele, os assinalar e destacar no seu trabalho historiográfico ou crítico. Esta sala, digamos assim, realiza hoje, por meio desta exposição, a triangulação entre Portugal, Brasil e África em que o trabalho, e a vida pessoal, de Pires Laranjeira teve lugar na nossa universidade, uma universidade que é cada vez mais um locus privilegiado para a realização quotidiana dessa triangulação, bem como para a reflexão crítica sobre as suas dimensões múltiplas. Continue reading
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Vítor Aguiar e Silva, prémio Camões
Vítor Aguiar e Silva foi ontem distinguido com o Prémio Camões. Creio poder dizer que para os que tiveram o privilégio de ser seus alunos, o dia de ontem foi um dia feliz. Se calhar porque todos sentimos, uma vez por outra, que o deslumbramento que nos tomou na sala de aula não chegou nunca a ganhar tradução fiel, ou sequer aproximada, na vasta produção escrita do nosso mestre. Não é fenómeno único, como se sabe, e muitos falaram antes da forma como a experiência irredutível da sala de aula, experiência formativa sobre todas, parece ter dificuldade em viver para lá da voz e da presença do professor. O que dificulta, ou mesmo impossibilita, a tradução da lição dos mestres em método replicável, coisa por que a escola tanto (erroneamente) anseia, como inversamente o ensino, enquanto encontro com o singular de cada estudante, tanto põe em causa. Continue reading
Dois amigos: Lucas & Manuel
Tínhamos chegado a casa, após a viagem desde a vivenda do Manuel e da Piocha na Atalaia, quando o telemóvel tocou. Era o Manuel, perguntando pela viagem, mas na verdade excitado e ansioso por contar uma história. Tinha a ver com o Lucas, que como sempre correra atrás do nosso carro à saída, bem para lá do portão da casa, até que acelerei para ele desistir e deixámos de o ver. Desta vez, porém, não voltara para casa no prazo habitual, pelo que a certa altura o Manuel teve de sair à sua procura. Primeiro a pé, depois de carro, quando percebeu que ele não estava por perto. “E sabe onde o encontrei? No viaduto sobre a auto-estrada, a olhar no sentido do Norte. Estava a olhar para a estrada que vocês tinham tomado e estava ali parado. Não é incrível?” Concordei, claro, assombrado mais uma vez com o Lucas, e fui contar à Carolina, que ficou tão comovida como eu e como o Manuel.
O episódio que desejo agora acrescentar, saltando uns anos, foi o telefonema do Manuel anunciando a morte do Lucas. Estava velho e alquebrado já na nossa última visita, o passeio que fazíamos os dois ao fim da tarde por alguns quilómetros já lhe custava, parava muitas vezes e bebia água onde e sempre que podia. Continuava a desaparecer da vista de vez em quando, suponho que para perseguir algum coelho ou apenas e só a sua memória olfativa. Naquele dia o Manuel estava abalado, deu-me a notícia da eutanásia do Lucas por meias palavras, fiquei sem saber o que dizer, acho que disse apenas “Que notícia tão triste, um grande abraço, Manuel”, ele tartamudeou alguma coisa, “Pois, pois”, desliguei e fui dizer à Carolina, ficámos abraçados a pensar no Lucas. Continue reading
Um grande do nosso tempo: Andrea Camilleri
La forma dell’acqua, o extraordinário romance com que se iniciam as aventuras do comissário Montalbano, abre com a descoberta, num baldio usado para fins de comércio sexual, de uma importante figura da política siciliana, o engenheiro Luparello, morto dentro do seu carro, aparentemente vitimado por um ataque cardíaco durante o ato sexual. Os dois “operatori ecologici” (homens do lixo) que o descobrem, Pino e Saro (uma daquelas parelhas de que Camilleri extrai todas as possibilidades involuntariamente cómicas), reconhecem-no e decidem telefonar a uma outra importante figura do partido de Luparello, o advogado Rizzo, braço direito do falecido. O telefonema revela-se surpreendente, pois o dito advogado não só não mostra qualquer comoção, como se limita a sugerir que quem lhe telefona “cumpra o seu dever” junto das autoridades. Cumprido o dever, prestadas as declarações à polícia, com a omissão do telefonema ao advogado, os amigos regressam a casa. Mas Pino nessa noite não consegue dormir. Oiçamos o narrador:
Cabeça especulativa, era dado ao teatro e tinha representado como ator nas voluntariosas mas cada vez mais raras companhias dramáticas de Vigàta e arredores. Gostava de ler teatro: mal o escasso salário lho permitia, corria à única livraria de Montelusa a fornecer-se de comédias e dramas (eu traduzo).