Vidas Passadas relança a questão do ‘filme de argumento’, enquanto filme no qual o plano da imagem manifesta alguma dificuldade de autonomização, para lá do ilustrativo, face ao núcleo (muito escrito) da narrativa. Quando duas das três personagens centrais são escritores e a própria realizadora é dramaturga e argumentista, a sombra desse género, se lhe podemos chamar assim, abate-se sobre um filme que, ainda por cima, percorre territórios que nos habituámos a reconhecer em filmes de Woody Allen (Manhattan, basicamente), um dos expoentes de tudo isto, se descontarmos a sua verbosidade, que Celine Song não perfilha. Ir por aí, contudo, não nos leva longe, pois as opções de Song moram antes do lado da arte da ‘mise-en-scène’ enquanto composição da cena e do plano, como por exemplo naquele plano fundamental quando as duas crianças se separam em Seul e cada uma sobe para a estreita rua em que aquela em que vinham até aí se bifurca: o cinema é também isto, ou seja, a dispensa de montagem, ou de linguagem verbal, perante a evidência espacial e física da separação, uma arte à qual os cineastas que fizeram a transição do mudo para o sonoro nunca deixaram de recorrer.
O mesmo perante uma cena que explora um paralelismo central no filme, o da escultura ou mobiliário público em que as crianças brincam num parque em Seul (a mãe da menina confessa à mãe do rapaz que o encontro se destina a ‘produzir memórias’, na ótica muito instrumental de quem emigrará em breve para o Canadá), e a escultura que, num parque de Nova Iorque, funciona como pano de fundo do reencontro, 24 anos depois, momento no qual Song renuncia ao campo-contracampo, indo com a câmara dele até ela e vice-versa, travelling lateral que nos não permite ver (apenas intuir, de acordo com o nosso desejo) a reação de cada um às palavras do outro, produzindo assim um correlato visual da opacidade sobre que se constrói toda a história: em que ponto, temporal e afetivo, se encontra cada um deles face ao outro?
De resto, como o marido americano de Na/Nora intui, a história é muito boa e ele está no papel errado, o do norte-americano que bloqueia o reencontro de duas almas gémeas coreanas. O filme denuncia aí o seu contrafactual, anunciado, aliás, logo no primeiro plano, em que uma voz e perspetiva externa interroga a natureza da relação entre as três personagens que preenchem o plano (a cena é noturna e passa-se num bar), sendo que dois comunicam em coreano, ante um (aparente) terceiro excluído. Como é da natureza dos contrafactuais, tudo se edifica sobre um ‘E se?’ que em rigor nenhuma resposta empírica esgota. Recordemos, creio que muito a propósito, o final de Fiesta (1926), de Hemingway, quando num táxi em Paris, Brett diz a Jake, que regressou impotente da guerra, como poderiam ter sido felizes: ‘Oh, Jake,’ Brett said, ‘we could have had such a damned good time together.’ O táxi abranda bruscamente, por ordem do polícia sinaleiro, os corpos dos dois são jogados um contra o outro e Jake responde: ‘Yes,’ I said. ‘Isn’t it pretty to think so?’
Na extraordinária penúltima cena do filme, em que Na/Nora e Hae se despedem – um plano fixo perante um portão com o táxi à espera –, a infinitesimal e muito próxima vacilação silenciosa dos corpos tudo parece prometer, para de tudo enfim desistir, sempre sem uma palavra. Aquilo que parece não permitir que daqui provenha uma sequel à maneira da trilogia de Richard Linklater iniciada com Before Sunrise (1995) é a reação de Na/Nora quando regressa a casa, abraçando-se ao marido e chorando convulsivamente. Porque chora ela e em que termos a pode ele receber perante esse choro? Que amarga vitória é a que o casamento (e a emigração) recolhem nesse momento? Provavelmente, apenas esse choro impede que o ‘E se?’ desta história se resolva na beleza amargo-doce que percorre o filme, uma melancolia que traduz a não-relação lacaniana e que, em termos sexuais e não apenas, dir-se-ia abranger tanto o amigo coreano como o marido norte-americano, já que a libido de Nora parece antes votada à lógica da conquista (o Nobel, o Pulitzer, o Tony) que justificaria a emigração – uma justificação herdada da mãe, tal como a memória do dia no parque com Hue, o que dá a ver o caráter ‘construído’ da identidade (coreana e emigrante) de Nora. Ou, noutros termos, uma lógica que justificaria a sua vida adulta, ao contrário de Hue que por fixação infantil, ou por delicadeza, acaba por perder a vida. Restando-lhe, como no diálogo final, supor que esta vida é um ensaio para a próxima e que nessa, enfim, com a caução de mito e cultura, serão felizes juntos.
‘Isn’t it pretty to think so?’