Seminário VOX Media: A Voz na Literatura

O seminário VOX MEDIA: A Voz na Literatura é parte do projeto que, com o mesmo nome, integra o elenco de projetos do Centro de Literatura Portuguesa, sendo uma extensão, no domínio da pesquisa, do Programa de Doutoramento em Materialidades da Literatura e do MATLIT Lab.

O seminário faz suas as implicações do programa de trabalho do projeto, tal como elas se manifestam no seu texto descritivo: “O projeto VOX MEDIA explora as dimensões do fenómeno literário afetadas pela voz enquanto medium da literatura, bem como pelas perturbações que esse meio sofre por efeito combinado da performance e das tecnologias de mediação, representação e reprodução. A intenção deste projeto é, pois, não apenas a de produzir o catálogo e compêndio dos efeitos contemporâneos da VOX MEDIA sobre a noção de literatura, mas também a de produzir uma arqueologia da VOX MEDIA e de todos os fenómenos recalcados pela sua invisibilidade histórica”. Continue reading


A verdade da fantasmagoria

No criptopórtico do Museu Machado de Castro, está desde 17 de maio uma exposição a todos os títulos excecional, intitulada Insomnia.[1] No título oficial, a “Insomnia” segue-se o subtítulo descritivo: “José Luís Neto e utentes do Centro de Apoio Social do Pisão”. Do primeiro são as reproduções fotográficas, impressas em tecido, que se acolhem a certas reentrâncias do criptopórtico. Dos segundos, cujos nomes são elencados na folha de sala, são as centenas de cabeças em terracota, com intenção de autorretrato, que se dispõem sobre um suporte de madeira (portas de casas antigas) acima do solo. A exposição integra a programação convergente da Anozero’24, da Bienal de Arte de Coimbra e tem curadoria do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. Continue reading


A Biblioteca na era da indiferenciação entre humanos e máquinas

A minha contribuição para esta mesa-redonda de tema tão ambicioso (1) é deliberadamente modesta, limitando-se a apresentar uma coisa, definível como algo entre um dispositivo e uma máquina, de que tomei conhecimento na Biblioteca da Universidade de Maastricht, na Holanda. A coisa chama-se Mindfulnest [uma extensão e brincadeira com Mindfulness], que traduzirei por Ninho de Meditação, descrita online como “uma cabina concebida com um propósito de relaxamento”. “Aqui, afirma-se, você pode recuperar o fôlego, escutar os exercícios de meditação e mindfulness oferecidos, sentar-se em silêncio ou usar a sua própria app de meditação”. Na mesma página, pode ler-se que “Dentro do Ninho de Meditação há um iPad que pode ser usado para selecionar meditações, entre outras coisas”. O Ninho esteve instalado temporariamente na Biblioteca e a sua utilização era grátis.  Continue reading


Um glossário (não alfabético) de trabalhos de orientação

Antes de mais, agradeço o convite da Área de Filología Gallega y Portuguesa do Departamento de Filología Moderna, da Universidade de Salamanca, para participar nesta iniciativa tão notável, que nos permite confrontar práticas e ouvir estudantes de doutoramento sobre os seus trabalhos de tese. A minha participação consiste numa reflexão, um tanto autobiográfica e não tanto teórica, sobre alguns (poucos) tópicos relacionados com trabalhos de orientação de teses, um momento fundamental do trabalho na universidadeda investigação, que é ao mesmo tempo, como sabemos, a universidade da burocratização (é uma constatação, não um lamento). Como o meu título sugere, vou abordar os tópicos não por ordem alfabética, mas por ordem de relevância. Continue reading


Eduardo Lourenço: Pensar / Escrever com o Outro

Quando o texto é mais extenso e o espaço o permite, reconhece-se uma chuva oblíqua de qq, pp, ff e gg alongados, sobretudo se a escrita recorre à caneta de tinta permanente, que parece libertar um ímpeto esvoaçante. Quando a margem é mais apertada, as abreviações dominam, o tamanho da letra encolhe, a mensagem triunfa sobre o meio, que perde autonomia e afirmação. O recurso, mais tardio, a esferográfica, concorre ainda mais para esse efeito. Já o recurso ao lápis situa-se num ponto intermédio, em termos de investimento caligráfico. Continue reading


M/M. Colóquio Internacional sobre Max Martins

As pessoas que aceitaram o convite para hoje e amanhã se reunirem nesta sala em torno de Max Martins fizeram-no, estou certo, na convicção de que a sua obra é um segredo mal guardado. Até há pouco tempo, devo admitir, o meu caso era o daqueles para quem o nome Max Martins era realmente da ordem do segredo, situação que se alterou em função direta da lógica de intercâmbio e cooperação que rege o atual sistema científico internacional, do qual os universitários tanto apreciam desmerecer (por vezes com razão), esquecendo porém as suas virtudes. De facto, foi na sequência de uma proposta para acolher em Coimbra uma estudante de doutoramento do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, a Leila Coroa, naquilo a que o génio institucional e linguístico brasileiro chama “doutorado sanduíche”, que decidi adquirir para a biblioteca do IEB a obra do poeta, na edição atual da Universidade Federal do Pará. O efeito da sua leitura foi não apenas surpreendente, mas pessoalmente deslumbrante e devemos, pois, à Capes, que financiou a vinda da Leila (que ainda por cima apareceu com o André Aquino, que eu conhecera numa estada atribulada no IEL, e cujo objeto de estudo é também Max Martins), esta reunião que a certa altura se me impôs como obrigatória – uma reunião que integra Leila e André entre os seus conferencistas e que pressupõe o seu trabalho em várias áreas da conceção e organização, como entendo que deveria ocorrer sempre na universidade de hoje. Continue reading


Obsessão e fenomenologia do Brasil

Creio que a primeira vez que estive num evento académico com Eduardo Lourenço foi justamente aqui, em Salamanca, há demasiados anos, num colóquio organizado pela área de Português, então coordenada por Ángel Marcos de Dios. Se não erro, Lourenço tentou nessa ocasião um paralelo contrastivo entre a literatura espanhola e a portuguesa, gesto apenas ao alcance de quem possua um repertório de leituras ao nível daquele que o definia – e sempre, se também o recordo bem, em torno das diversas formas de vivência do trágico dos dois lados da fronteira. É, por isso, auspicioso que esta sessão de apresentação de um livro coletivo sobre a relação entre Eduardo Lourenço e o Brasil decorra em Salamanca, ou seja, naquela Espanha tão próxima historicamente de nós quanto a Universidade de Coimbra, que foi a Alma Mater de Lourenço, está próxima da de Salamanca, universidade que formou as primeiras gerações de mestres de Coimbra. Continue reading


VIDAS PASSADAS: ‘Isn’t it pretty to think so?’

Vidas Passadas relança a questão do ‘filme de argumento’, enquanto filme no qual o plano da imagem manifesta alguma dificuldade de autonomização, para lá do ilustrativo, face ao núcleo (muito escrito) da narrativa. Quando duas das três personagens centrais são escritores e a própria realizadora é dramaturga e argumentista, a sombra desse género, se lhe podemos chamar assim, abate-se sobre um filme que, ainda por cima, percorre territórios que nos habituámos a reconhecer em filmes de Woody Allen (Manhattan, basicamente), um dos expoentes de tudo isto, se descontarmos a sua verbosidade, que Celine Song não perfilha. Ir por aí, contudo, não nos leva longe, pois as opções de Song moram antes do lado da arte da ‘mise-en-scène’ enquanto composição da cena e do plano, como por exemplo naquele plano fundamental quando as duas crianças se separam em Seul e cada uma sobe para a estreita rua em que aquela em que vinham até aí se bifurca: o cinema é também isto, ou seja, a dispensa de montagem, ou de linguagem verbal, perante a evidência espacial e física da separação, uma arte à qual os cineastas que fizeram a transição do mudo para o sonoro nunca deixaram de recorrer. Continue reading


Dos usos do Jardim Botânico

Apercebi-me não há muito tempo de que não existe provavelmente um único banco confortável no Jardim Botânico. Em todos eles a ergonomia do assento deixa a desejar: ripas demasiado separadas ou desniveladas, ondulação provocada pela acção dos elementos, a harmonia que falta entre assento e costas: quando uma dessas partes do banco nos acolhe, a outra parece mostrar-nos a face da sua indiferença, ou mesmo desprezo. No dia em que a suspeita me tomou, regressei ao jardim e verifiquei demoradamente os bancos um a um. Experimentei assim bancos que nunca usara até então – e que desconfio não voltarei a usar – e apercebi-me de que na verdade só usara ao longo da minha vida uma meia dúzia deles, nos lugares da minha eleição: o patamar abaixo da estufa e logo acima do quadrado central, de um lado e do outro, a alameda das tílias, o primeiro patamar (as «Jardinetas») quando se sobe da alameda para a saída do lado do infantário João de Deus. Apercebi-me também da devastação que foi tomando conta dos bancos, patente na sua pura e simples eliminação de vários lugares que sem eles me parecem agora incompletos. O mundo – é apenas uma questão de tempo – vai repelindo a nossa memória. Continue reading


A DESTRUIÇÃO DE UNIVERSIDADES NA FAIXA DE GAZA

A tempestade de destruição e morte que se abateu sobre a Faixa de Gaza, em retaliação pelo trágico e condenável ataque do Hamas no passado dia 7 de outubro de 2023, causou vítimas infindáveis em Gaza, mas também um pouco por todo o mundo. Em Portugal, uma das vítimas mais notórias do conflito foi a universidade que, ao contrário do que vem sucedendo na Europa, nas Américas e nos restantes continentes, se manteve silenciosa perante esta última e devastadora manifestação de um conflito tão complexo quanto longo.

Sinal dos tempos, porventura, a universidade portuguesa parece consumir grande parte da sua energia na resposta ao permanente rateio das fontes de financiamento, esquecendo demasiadas vezes as suas responsabilidades cívicas e o seu compromisso para com a Humanidade, na sua aceção mais lata. Para quê, de facto, fazer da autonomia universitária um cavalo de batalha político se, quando os eventos do mundo caótico em que vivemos neste início de século XXI exigem que essa autonomia se traduza em desempenho cívico, a universidade fica retraída e calada, permitindo mesmo que essa sua atitude seja interpretada como indiferença? Continue reading


DANÇA PRIMEIRO, PENSA DEPOIS, de James Marsh: filmar o mito

A questão estimulante que o filme de James Marsh sobre Samuel Beckett coloca não é, de modo nenhum, nova e é quase obrigatória em filmes sobre escritores, podendo ser formulada deste modo: como mostrar a atividade literária? A resposta de Marsh, também não rara, consiste em deslocar a questão da criação propriamente dita (e de que no filme se oferecem muito escassas ocorrências) para o mundo da literatura, o que o filme resolve começando pela cerimónia de atribuição do prémio Nobel a Beckett, ou seja, externalizando maximamente a questão da literatura, substituindo a representação da escrita pela forma como ela produz um Autor e como este se impõe no mundo. O Nobel é a consagração de todo esse devir que traduz a literatura num conjunto de instituições caucionadas publicamente e que permitem que a história de um autor até lá, e também a de Beckett, seja narrável como um romance cujo título oscilaria entre “A educação sentimental” e “As ilusões perdidas”. Sobre isto é possível fazer um filme dentro das convenções narrativas e industriais que sustentam a arte de levar pessoas à sala escura, o que se complica infinitamente a partir do momento em que se tenta representar a escrita como pulsão além de qualquer moral, como potência crítica de todo o significado transcendental, previamente depositado numa “mente brilhante”, ou como desestabilização das (supostas) evidências miméticas da linguagem (tudo tópicos reportáveis a um grande moderno como Beckett). Ou seja, o que não se filma de um autor quando se resume a sua literatura a um estar no mundo é justamente tudo o que na escrita, e na tão intransitiva atividade literária, é uma questionação, mais ou menos profunda, do pacto que nos permite nomear coisas com nomes que acrescentam coisas que só existem enquanto nomes, ou que só existem porque há nomeação. Continue reading


FECHAR OS OLHOS, de Victor Érice: da visão interior

Quando já ninguém esperava uma obra de tal fôlego, eis que Victor Erice renasce para a sua quarta longa-metragem, colocada sob o signo da velhice, ou melhor, do Jano bifronte que, como no busto que surge logo a abrir, no filme dentro do filme, tem um rosto voltado para a juventude e outro para a velhice. Não se trata, contudo, de revisitar a juventude, explorando as implicações de um aforismo como aquele de Novalis segundo o qual “Tudo é romântico quando visto à distância”. Nada, na verdade, neste filme aspira a sê-lo, nem do passado brota a fonte da melancolia, ainda que o luto irrealizado inunde o filme e sufoque a personagem central, Miguel Garay, romancista e cineasta com uma obra escassa e abruptamente interrompida. O regresso ao passado, motivado por um programa de TV dedicado a casos não resolvidos, permite perceber a que ponto a interrupção define não apenas a obra, literária e fílmica, mas também a vida de Garay, que se suspende no momento da desaparição do ator principal, e seu maior amigo, do seu filme “La mirada del adiós”. Esse facto leva-o a deixar Madrid (e o século), entregando-se a uma reclusão em regime de vida alternativo, numa casa-caravana à beira-mar, sobrevivendo de traduções e do trabalho num barco de pesca. Continue reading


MAESTRO, de Bradley Cooper: filmar a relação

Os filmes sobre maestros tendem a representações, mais ou menos alegóricas, do poder. É o caso do recente Tár (2022, Todd Field), no qual o poder se traduz em assédio, e do remoto Prova d’orchestra (1978) de Fellini, reflexão em ato sobre os conflitos de poder numa orquestra, que terminava, já no escuro dos créditos finais, com um discurso perturbador do maestro, cujo idioma alemão permitia associações políticas funestas (sem surpresa, falou-se de uma inspiração em Karajan). Não assim com Maestro, filme que coloca Bradley Cooper, ator e realizador, na linha da frente do atual cinema americano. Trata-se de narrar a relação amorosa e conjugal de Leonard Bernstein e Felicia Montealegre e o filme poupa-nos ao uso e abuso do contrapicado no tratamento da posição do maestro em palco, decerto por estar menos interessado na questão da sacralização e do poder que na da vivência dionisíaca da música, definidora da personagem de Bernstein, tipicamente Bigger than Life. De facto, tudo em Bernstein parece ser fruído do lado do excesso, do sexo com parceiros de ambos os sexos, embora com uma preferência homossexual que se vai confirmando com os anos, às solicitações da profissão, que colocam o título do filme no cerne quer do processo de constituição da personagem e do próprio filme, quer no do trabalho de interpretação do espetador. Continue reading


PERFECT DAYS, de Wim Wenders: o que é um evento?

Com ‘Perfect Days’, Wim Wenders regressa ao Japão, mas não a ‘Tokyo Ga’ (1985), apesar de aparências ilusórias. Ozu era o motivo dessa viagem a Tóquio e o princípio gramatical do filme, e agora Wenders permite-se a heresia de colocar a câmara ao nível do solo para filmar o leito japonês da personagem central, fazendo, contudo, travellings sobre o eixo, tão discretos quanto fúteis, indo assim contra o preceito da câmara fixa caro ao mestre. De Ozu resta talvez a arte do raccord, mas não visual e sim sonoro, desde o início do filme: o som do vento nas árvores, a que se segue o da varredora na rua, que funciona como o despertador de Hirayama a cada madrugada, antes de sair para a sua férrea rotina diária de limpador de casas de banho públicas em Tóquio. Continue reading


How to Make an Angel

Não sei se Lester Bangs alguma vez escreveu sobre os Cramps. Psychotic Reactions and Carburetor Dung não lhes dedica uma palavra, mas trata-se, como é sabido, de uma seleção póstuma de textos, levada a cabo por Greil Marcus. Haverá, no espólio da Creem, alguma coisa não incluída em livro? Não faço ideia, mas dada a comum paixão pelo punk e protopunk de ambos os autores, custa-me a crer que um putativo texto sobre os Cramps não fosse selecionado por Marcus. Em todo o caso, não é difícil encontrar nos escritos de Bangs alguma coisa de que nos possamos apropriar para colocar ao serviço dos Cramps. Por exemplo, este excerto de «The Clash», longa reportagem-ensaio sobre os ditos e a cena punk inglesa. Bangs refere um detrator de Joe Strummer, que lhe terá chamado a atenção para o caráter middle-class desse (afinal não tão) líder da classe operária. Continue reading


Eduardo Lourenço: um tempo brasileiro breve mas duradouro

O volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço dedicado ao Brasil, com o título Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem, tem cerca de 700 páginas. Um tal volume de escrita é, obviamente, justificação bastante para um colóquio como este. Mas o que surpreende é a constatação de que toda essa reflexão sobre matéria brasileira parte de um conhecimento direto de apenas um ano, em 1958-59, quando Lourenço foi docente de filosofia na Universidade da Bahia, ainda que acrescentado por alguns outros períodos mais ou menos breves (um semestre como professor visitante no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, nos anos 80, por exemplo). Daí o título proposto para este evento: um tempo brasileiro breve, enquanto experiência direta, mas duradouro nos seus efeitos e ressonância. Continue reading


A Teoria da Literatura no Brasil

A designação deste colóquio, na sua aparente neutralidade descritiva, não foi fácil, já que por um tempo, e mesmo à data dos primeiros contactos, o título final – A Teoria da Literatura no Brasil – conviveu com uma outra versão, A Teoria Literária no Brasil. A certa altura, porém, tendo-me apercebido da confusão, percebi também que nada se ganharia em admitir à discussão a latitude da expressão “teoria literária”, muito embora ficasse claro para mim que essa outra versão estava condenada a funcionar como um recalcado que, mais ou menos fatalmente, regressa para nos assombrar. Em todo o caso, a disciplinaridade do título final tem a vantagem de forçar a uma operação de terraplanagem do campo, exigindo-nos que tomemos decisões (epistemológicas, genealógicas e metodológicas) sobre aquilo que no Brasil foi e é a Teoria da Literatura, enquanto disciplina que, para o bem e o mal, define os estudos literários no século XX. Continue reading


Arguições: “A Margem da Alegria”, de Ruy Belo, por Ana Maria Pereira Soares

A quinta arguição que aqui publico teve lugar a 28 de junho de 2017, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e foi seu objeto a tese que Ana Maria Pereira Soares apresentou sobre A Alegria e o Mal em Ruy Belo. Estudo da Composição Hipertextual d’A Margem da Alegria, no doutoramento em Literaturas e Culturas Românicas, especialidade de Estética Literária, sob orientação de Luís Adriano Carlos.
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A tese de doutoramento em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos, na especialidade em Estética Literária, apresentada à FLUP por Ana Maria Pereira Soares, sobre composição hipertextual no livro de Ruy Belo A margem da alegria, revela, antes de mais, citando o poeta, “um grande trabalho e um grande talento”, o que pressupõe, para continuar a citar o poeta, “um grande amor pela obra lida”. A Margem da Alegria que conhecíamos até aqui não é, de modo algum, idêntica à que Ana Soares, com denodo, paixão e perversidade, coisas muitas vezes não separáveis, como sabemos, nos apresenta neste trabalho que marca uma época nos estudos de Ruy Belo – estudos que, se somarmos esta tese à que muito recentemente Manaíra Athayde apresentou ao Programa de Doutoramento em Materialidades da Literatura em Coimbra, estão nitidamente a entrar na “era do arquivo”. O que impressiona no trabalho de Ana Soares é que nem a sua frequência do espólio parece ter sido tão decisiva para esta tese como foi no caso da tese de Manaíra Athayde, significativamente subtitulada “Poesia Espólio”, nem a autora recorreu (ou necessitou de recorrer) aos prodígios da pesquisa em modo Google para produzir o monstruoso trabalho detectivesco que se patenteia no falso “Anexo”, ou volume 2, da tese. Continue reading


A verdadeira INTERNACIONAL

A entrevista saiu no caderno Ipsilon do Público na passada sexta-feira, é de Mário Lopes e tem o título “A eterna inquietação rock’n’roll de Victor Torpedo”. É uma grande entrevista e dava para outra longa conversa, como é típico das grandes entrevistas. Sobre bandas (Cramps, Clash, Devo, etc.), cidades (Londres, NY, Memphis, LA, Coimbra), atitudes (a seriedade das bandas do rock tuga), Robert Fripp versus King Crimson, o sono provocado pela duração dos solos de bateria de John Bonham… Sobre aquilo a que Alcir Pécora chama a “contra-universidade roqueira” de Coimbra. Ou sobre as fotos dos Tédio Boys na América, instantaneamente mitológicas (“Aquilo [os EUA] já é tão psicotrópico que quem toma drogas na América é imbecil”). Mas eu queria apenas deixar aqui uma nota sobre um episódio discreto, mas que ficou a ressoar em mim. Continue reading


Uma PASTORAL renovada

No passado sábado, 28 de janeiro, foi objeto de apresentação pública, no Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira, um conjunto de dois livros preparados por Rosa Maria Martelo e editados pela Averno e pela Alambique – uma edição conjunta que atribui à primeira a publicação de uma nova versão de Pastoral, de Carlos de Oliveira, e à segunda a de Matérias Difusas, Poderosas Coisas, de Rosa Maria Martelo, obra com o subtítulo “Uma Leitura de Pastoral, de Carlos de Oliveira”. Os livros têm a mesma proposta gráfica e formato, embora com cores diferentes, Pastoral em verde e Matérias Difusas, Poderosas Coisas em tom alaranjado.

Para esta reedição, que é de facto uma edição nova, de Pastoral, foi decisiva a utilização do “exemplar intervencionado” (termos de Rosa Maria Martelo) da plaquete da edição autónoma de 1977 constante do espólio do autor, exemplar esse que acrescenta aos 10 poemas a sua versão escrita à mão e ainda 10 ilustrações a lápis de cera do autor. O “exemplar intervencionado” é oferta do autor a Ângela de Oliveira, cuja inscrição na obra constava já do poema “Chave”, dedicado a Anne Gall, um outronímico aí usado por Carlos de Oliveira para a sua companheira. Continue reading


Arguições: José Fernando de Castro Branco sobre Adolfo Casais Monteiro

A quarta arguição que aqui publico teve lugar a 20/06/2014, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e foi seu objeto a tese que José Fernando de Castro Branco apresentou sobre Adolfo Casais Monteiro e a doutrina estética da Presença, no doutoramento em Literaturas e Culturas Românicas, especialidade de Estética Literária, sob orientação de Luís Adriano Carlos.
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A dissertação de doutoramento de José Fernando de Castro Branco, apresentada com o título «Adolfo Casais Monteiro e a Doutrina Estética da presença», é um trabalho de grande fôlego e revelador de um certo número de qualidades que a universidade deve esperar de uma dissertação de doutoramento: capacidade de produção de um objeto; informação bibliográfica atualizada e capacidade de discriminação e hierarquização dessa bibliografia; capacidade analítica e argumentativa; pensamento estrutural na composição da obra e na sintaxe da argumentação; enfim, capacidade de escrita. Continue reading


John Mercy & The Dead Beats: West of the American Night

Com este concerto, encerram-se as comemorações do centenário de Jack Kerouac protagonizadas pela Secção de Estudos Anglo-Americanos do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas desta Faculdade de Letras. E encerram-se deste modo porque a articulação de texto e música atravessa e define toda a Beat Generation, como pudemos ver mesmo no final do concerto no vídeo da espantosa leitura, pelo próprio Kerouac, da última frase de On The Road, com acompanhamento musical.

Quando convidei o João Rui, aliás John Mercy, a fazer alguma coisa em torno de On The Road para este dia, a sua primeira reação, tenho de confessar, não foi muito entusiástica, tendo o João pedido uns dias para pensar no assunto. Passou quase uma semana e, de repente, comecei a receber sms e mails em catadupa. Nessas mensagens, e para resumir, John Mercy confessava não apreciar a modalidade hoje popular da spoken word ou da leitura com música, no fundo por ser essa uma modalidade, em seu entender, desprovida de forma. E como a forma por excelência da articulação entre texto e música é a canção, o que ele propunha era um conjunto de canções a partir do romance de Kerouac – um conjunto de canções que pudesse vir a dar um disco, a forma (e a duração) por excelência da música na era da reprodução. As mensagens vinham aliás acompanhadas de uma sinopse das canções a extrair do livro e também já do espetáculo. Como bónus, uma demo da primeira canção, “Holding On”, que achei belíssima. Continue reading


Kerouac 100

I had intended to mention, briefly, in this opening, the nature of the debt I incurred with Jack Kerouac long years ago, when at the end of On the Road I read that qualification of  Dean Moriarty as “the father we never found”. Maybe because although my father is still alive, and in spite of the fact he was always a good and loving father, I have always felt that Dean Moriarty was, also for me, “the father we never found”, at that age when we all need a second father, preferably almost our own age, preferably someone who will lead us to the other side of the mirror and away from the meek life. Professional burdens and personal contingencies, however, have conspired to rob me of the time that would allow me to state the reasons why, as director of the department of languages, literatures, and cultures, I am wholeheartedly behind this event. But that’s okay, because I believe this conference will be enlightening enough in itself. Because to celebrate Kerouac’s work is to celebrate an idea of writing as a crossing of this vast and unsettled continent that we mistakenly call life, and that we can only endure because we know it is a journey with a thousand paths, but no destination. And that is what great literature teaches us, even, or especially, when it does not wish to teach us anything – and thank God for that. Continue reading


Conferência Paulo Quintela

Ao fundo deste palco, a projeção de uma foto de Paulo Quintela. É uma imagem solar, de alguém em plena maturidade, naquele momento em que corpo e espírito parecem estar ainda em perfeita sintonia, um pouco antes do envelhecimento que força à autonomização progressiva do espírito em relação ao corpo. É também uma imagem de confiança, de alguém que enfrenta o futuro na crença nas suas capacidades, mesmo se em tempos pouco favoráveis, que exigem um olhar avisado e perscrutador. E, como se constata pela indumentária, ou pela cigarrilha na mão direita, é a imagem de alguém confortável no seu papel, social e institucional, de alguém que, tudo somado, acredita na sua missão. Em resumo, esta é a imagem de um Mestre e é também para celebrarmos os nossos mestres que hoje nos reunimos aqui, estudantes e professores. Em Paulo Quintela, o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas homenageia todos aqueles e todas aquelas que nos marcaram no nosso percurso escolar e académico nesta Faculdade e nesta Universidade, nas salas de aula e de seminário para começar, mas também nos gabinetes, nos corredores e outros espaços comuns e, em certas ocorrências, no próprio espaço público. Aqueles e aquelas que nos fazem dizer com reverência, com orgulho e, por vezes, com a nostalgia que é, em rigor, a nostalgia da nossa própria juventude, “Eu fui aluna de Maria Helena da Rocha Pereira”, “Eu fui aluno de José Gonçalo Herculano de Carvalho”, “Eu fui aluna de Ofélia Paiva Monteiro”, “Eu fui aluna de Maria Irene Ramalho de Sousa Santos”, “Eu fui aluna de Paulo Quintela”, “Eu fui aluno de Vítor Aguiar e Silva”. Continue reading


Jornadas Literárias de Sharjah em Coimbra

O volume Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, importante escritor português do período romântico, inclui um texto, intitulado “Destruição de Áuria – Lendas Espanholas (Século VIII)”, publicado pela primeira vez na revista Panorama em 1838. O texto abre com uma espantosa prosopopeia que unifica “as províncias de Espanha”, ou seja, toda a Península Ibérica, num grito de dor ante a invasão muçulmana: “Um som de queixume e pavor – um grito tremendo e doloroso se escutava em todas as províncias de Espanha. Desde os fraguedos de Gibraltar, até os distantes desvios das Astúrias, não se via senão desespero, aflição e luto. O império fugira das mãos dos Godos, o trono de Rodrigo jazia por terra, e estava fadado que a altiva Espanha sofresse o jugo do invasor muçulmano”[1]. Mais adiante, descrevendo as vagas da invasão da península, afirma-se que “Diante deles, o país parecia os jardins do Éden; atrás deles, um ermo despido”[2]. Alexandre Herculano, que foi também um importantíssimo historiador, sempre empenhado em usar a Razão para desfazer mitos historiográficos, cede aqui, como de resto em muitos outros passos da sua produção literária, à visão cristã do processo histórico, na verdade anunciada desde o século IX, quando se começa a produzir a narrativa que, definindo a Hispânia como essencialmente cristã, considera a presença árabo-islâmica “uma intrusão que cumpria à monarquia asturiana eliminar”[3]. Esta narrativa fundamentará depois a construção das monarquias hispânicas, incluindo a portuguesa, e justificará a descrição de todo o processo como “Reconquista”, uma imagem problemática, por muitas razões. Continue reading


Sobre o ensino da literatura. A partir de Paulo Franchetti

O elenco incompleto de livros de Paulo Franchetti expostos na mesa grande do IEB termina, neste momento, no pequeno volume Sobre o Ensino de Literatura, editado pela UNESP em 2021. Um volume pequeno, de pouco mais de 100 páginas, mas que percorre toda uma vida de dedicação a uma atividade que só parece ser dotada de uma justificação quando não pensamos nessa questão, o que de resto define a prática dos professores de literatura: fazem uma coisa em que acreditam, mas só até ao momento em que interrogam as razões da sua crença. A situação seria análoga à do estudante de teologia que, na descrição de Karl Popper, seria justamente aquele que o faz porque duvida da sua fé. Contudo, e como sabemos há muito, a dúvida, metódica ou não, tem uma produtividade própria, ainda que neste caso essa produtividade seja estranhamente assimétrica. De facto, a disparidade entre a prática definidora de uma profissão – o ensino da literatura – e o volume de reflexão sobre essa prática manifesta-se, desde logo, na escassez de produção sobre o assunto, quando confrontada com a abundância de escrita sobre literatura. Esse é, aliás, um tópico inicial deste mais recente livro de Paulo Franchetti, que também por essa razão funciona como fonte e pretexto para a jornada de debate que o Instituto de Estudos Brasileiros promove neste dia, aproveitando para homenagear o trabalho do autor (visita recorrente no IEB nos últimos anos) no domínio dos estudos brasileiros e portugueses. Continue reading


REI ÉDIPO (1967), de Pier Paolo Pasolini

No texto do Rei Édipo, de Sófocles, que Pier Paolo Pasolini tratou com máxima liberdade no seu filme de 1967, após vazar os olhos Édipo afirma que o fez por ter deixado de ter prazer em contemplar os filhos, a cidade, com as suas muralhas, e as imagens sagradas dos deuses. E acrescenta que desejaria ter cortado também as orelhas se isso lhe garantisse deixar de ouvir. A frase é esta: “Houvesse ainda para a fonte dos sons uma barreira na senda dos ouvidos, e não me teria contido, sem aferrolhar o meu pobre corpo, para que fosse, além de cego, incapaz de ouvir; é doce para o espírito habitar longe dos seus males”[1]. O filme de Pasolini é a denegação, ponto por ponto, desta renúncia trágica ao mundo, já que, da infância à cegueira da velhice, o que permanece é o apelo da realidade primordial, ou melhor, e indo ao encontro do pensamento do cineasta, o apelo primordial da realidade. Esse apelo para cuja reprodução, como defendeu nos seus textos teóricos sobre o cinema, nenhuma linguagem existe mais bem apetrechada do que a linguagem do cinema, a que chamou “a língua escrita da realidade”, uma linguagem que “exprime a realidade com a realidade”[2]. A realidade primordial, neste filme, é a infância, o que é o mesmo que dizer, com Freud, autor que Pasolini leu toda a vida, o mundo turvo e perverso das origens ao qual, como se aprende lendo o Rei Édipo, é perigoso remontar. Continue reading


Falar mau inglês a bem da paz perpétua

Duas colegas que muito prezo pediram-me para intervir na apresentação e debate deste livro na FLUC. Não entendi bem, confesso, um dos aspetos do pedido, que depois percebi quando no cartaz vi ao meu nome atribuída a função de “provocador”. Lamento desiludir quem aqui veio para assistir a uma provocação pública a um provocador nato, mas farei apenas aquilo que faço sempre, e que consiste em ler o livro que me foi proposto o melhor que sei. O que implica ler sem preconceitos, mas também sem receio de ofender a delicada sensibilidade do autor (todo o autor é por definição uma alma delicada). Continue reading


Desbundados e Porraloucas. A Contracultura Revisitada

Um colega estrangeiro (e residente no estrangeiro, embora nem sempre), a quem o meu convite para participar neste colóquio não seduziu o bastante, comentou por mail que o elenco de intervenientes era já bastante bom, sobretudo por incluir estudantes e recém-doutorados. E acrescentou: “Que os estudantes falem e que o debate se torne autobiográfico! ‘O que é que o Sr Doutor fez durante a primeira grande guerra cultural?’” [1] No meu caso, era demasiado jovem para fazer outra coisa do que dançar, com calças de boca de sino e sapatos de tacão alto, ao som de La décadanse de Serge Gainsbourg. Sem grande consciência de estar a participar na Primeira Grande Guerra Cultural, pois aquela era simplesmente a cultura em que me movia e respirava, na pré-adolescência. Continue reading


A Tradução na Prática – A Prática da Tradução

Na conclusão de um famoso ensaio de 1952, “Filologia da Weltliteratur”, o grande filólogo romanista Erich Auerbach afirma: “De qualquer modo, a nossa pátria filológica é a Terra – a Nação já não pode sê-lo. É certo que a coisa mais preciosa e indispensável que o filólogo herda é a língua e a cultura de sua nação; mas é preciso afastar-se delas e superá-las para que se tornem eficazes. Temos de retornar, em circunstâncias diferentes, ao que a cultura pré-nacional da Idade Média já possuía: à consciência de que o espírito não é nacional” [1]. Estas palavras, escritas sete anos após o final da Segunda Guerra Mundial, num Festschrift dedicado a Fritz Strich, um dos grandes pensadores da goethiana Weltliteratur, ressoam com um dramatismo particular de novo neste ano de 2022. Mas não é tanto a nota kantiana, de apelo ao cosmopolitismo como condição da paz perpétua, que desejo realçar, e sim a implicação que elas carregam consigo dentro do paradigma filológico: pois admitir que a nossa pátria filológica é a Terra inteira exige de nós o imperativo de um poliglotismo ilimitado, única forma de fazer justiça a essa pátria babélica que é o mundo humano. Continue reading