Com Viagem ao Sol, agora em co-realização com Ansgar Schäfer [AD], Susana de Sousa Dias [SSD] prossegue o seu trabalho de mais de duas décadas sobre Trauma & Memória do Estado Novo português. Talvez possamos sintetizar esse trabalho singular no cinema documental contemporâneo em três traços fundamentais: (i) um trabalho sobre o arquivo, restringindo ao máximo o registo de novas imagens pela realizadora; (ii) uma tendência ao trabalho sobre imagens fixas, radicalizando a ideia de slow cinema até ao limite de um cinema “não animado”; (iii) um alto grau de concetualização do seu trabalho, patente quer nos próprios filmes, quer na produção ensaística de que a realizadora os faz acompanhar. Um quarto ponto, em rigor consequência dos anteriores, explica a centralidade da obra nos debates contemporâneos: a forma como ela sobrepõe a uma intensidade política, patente no seu obsessivo “trabalho forense” sobre a longa ditadura portuguesa, uma intensidade formal, manifesta num projeto de estranhamento do visível ou, se se preferir, de desestabilização do arquivo. Isto faz com que a ostensiva presença do político nos filmes de SSD seja não apenas temática, mas também, para não dizer sobretudo, formal, na medida em que o trabalho de desnaturalização das imagens nos coloca em plena dialética das formas, interrogando os regimes – histórico, técnico, fenomenológico, ideológico – subjacentes à constituição dessas imagens e à sua inscrição nos estratos cada vez mais profundos da consciência individual e coletiva. Não há combate político sem combate pelas formas, parece dizer o cinema de SSD, ecoando Maiakovski – restando saber, e entramos aqui no domínio dos problemas desta obra, que tipo de destinação política permite a radicalização formal deste cinema, que nunca consegue abandonar plenamente o seu local de origem, situado algures entre a sala de seminário, a sala de cinema de Arte & Ensaio e a galeria de arte.
Neste momento, o trabalho de SSD em torno do Estado Novo encontra-se polarizado entre as opções patentes em dois filmes extremos, digamos: Natureza Morta: Visages d’une dictature [2005] e 48 [2010]. No primeiro, a realizadora optou por percorrer todo o âmbito temporal da ditadura, mas também a geografia do império, com alguma demora na África da guerra colonial, cruzando ambas as dimensões no final, com as imagens e os sons da revolução de 1974, que extingue a ditadura e o império colonial. Esta latitude máxima do objeto é reforçada pela decisão de retirar da banda sonora qualquer ocorrência de linguagem verbal, substituída pela música eletroacústica de António de Sousa Dias, que permite à realizadora produzir toda uma rearticulação da relação imagem-som. Por exemplo, o tratamento das imagens fílmicas de Salazar combina um slow motion em staccato com efeitos sonoros que produzem uma efetiva desnaturalização do regime audiovisual em que tais imagens ocorriam no cinema de propaganda do regime: ou com música, ou com discurso apologético em off, ou com as duas juntamente. Acresce que o tempo (longo) e o espaço do Estado Novo são abordados sem sequência narrativa, antes por pequenos blocos temáticos justapostos, que vão sendo pontuados ao longo do filme por fotografias de cadastro de presos políticos. O efeito final é poderoso enquanto deflagração imagética ao retardador na mente do espetador, mas a sua performatividade pedagógica revela-se problemática, já que a marcação referencial (e rítmica) produzida pelas fotos de cadastro não é suficiente para que o espetador não se perca neste Atlas Mnemosyne da “longa noite fascista”, expressão que SSD reabilita, dando-a a ver na sua espessura de treva fotográfica.
O filme foi posteriormente transformado em exposição pela realizadora, o que, em declarações suas na inauguração da exposição, em vídeo disponível online, foi uma decisão que acompanhou o projeto desde o início: ‘Vou fazer este filme como se fosse uma exposição’. Faz sentido, mas não é possível deixar de pensar que essa opção coloca de imediato o problema político do Povo a que este filme se destina, pois não é possível conceber tal filme sem imaginar o povo que ele visa esclarecer (uso o termo em aceção aufklärer), o que em SSD significa não tanto “libertar das trevas”, mas antes fazer “atravessar de novo” todo o longo caminho das trevas, numa pedagogia política de teor homeopático. Num filme desprovido de discurso verbal, o regime contemplativo desta exposição warburguiana só alcança pleno desempenho político naqueles espetadores cuja idade dispensa legendas, dado o efeito de reconhecimento das imagens. O problema é que para todos os outros, que tendem a crescer em número, à medida que os primeiros diminuem, o filme ganha os contornos de uma obra de “arte contemporânea”, algures entre o cinema experimental e a arte sonora. O próprio silêncio ruidoso do filme alegoriza essa antinomia que o percorre, entre o máximo investimento no trabalho sobre a desfamiliarização de imagens e sons e a confiança de quem deposita nesse antidiscurso todo o alcance político do filme. Por outras palavras, em nenhum filme como este o trabalho de SSD corre o perigo de se transformar numa “pregação aos conversos”, sejam eles “o povo de abril” ou os consumidores da mais avançada teoria do documentário atual (o contexto fortemente académico da produção do filme talvez explique quer esse lado de “teoria aplicada”, quer o desequilíbrio da forma em relação ao conteúdo político).
A (maior ou menor) felicidade do dispositivo
Já 48 [2010] é porventura o ‘momento feliz’ do programa estético-político de SSD. O minimalismo do dispositivo (a exibição de fotos de cadastro de cada prisioneiro político – perfil esquerdo, frontal, perfil direito – acompanhado pelo testemunho em off sobre a experiência da tortura) produz a um tempo rigor formal e ressonância humana. Provavelmente, é na articulação entre um e outra que mora o forte impacto político do filme, que desarma resistências por meio da empatia de testemunhos que se concentram na experiência humana da violência e do sofrimento, mais do que no discurso explicitamente político. A recusa de outras imagens para lá das fotos de cadastro, a sua lenta emergência matérica de dentro das trevas da memória, às quais por fim regressam, tudo bate certo com essa reflexão em ato sobre a ontologia fotográfica do filme que percorre todo o cinema de SSD, um cinema que é uma longa e obsessiva variação sobre a imagem-tempo.
Este momento feliz tem-se revelado, contudo, de posteridade difícil, como ficou claro com Luz Obscura [2016], filme que pode ser lido como uma derivação de 48, mas focando-se agora na família do dirigente comunista Octávio Pato. O filme restringe por um lado o foco em relação ao filme anterior, já que elege apenas uma família de resistentes ao Estado Novo, e distende por outro lado o programa formal, já que combina fotos de cadastro com imagens tomadas por SSD, passando mesmo episodicamente do preto e branco à cor. Percebe-se que a autora desejou interrogar os efeitos disruptivos da longa separação dos filhos em relação ao pai, mas é justamente a captação de imagens atuais dos filhos que se revela problemática, já que os planos frontais mostram a dificuldade de manter os traços da gramática da foto de cadastro em planos de “retrato a cores”, pois a rigidez pré-estabelecida (a da instituição prisional e a da foto de cadastro que ela segregou desde cedo) é substituída pelo mundo exterior de hoje, substituindo imagens “memoráveis”, ainda que infames, por imagens triviais, ainda que terapêuticas.
Com Viagem ao Sol o políptico de SSD incorpora o olhar estrangeiro, e suponho ser essa a razão pela qual AS, historiador com trabalho publicado sobre os refugiados em Portugal durante a segunda Guerra Mundial, integra agora a equipa de realização, após uma série de filmes em que a sua colaboração ocorria na produção. Um olhar duplamente estrangeiro, em rigor, já que se trata do olhar de estrangeiros e crianças, e um olhar de conteúdo problemático, por ter sido recuperado, com sucesso variável, na sua atual velhice, o que acarreta, na maioria dos casos, algum volume de encantamento retroativo com a estadia portuguesa. Formalmente, as estratégias de SSD permanecem reconhecíveis, embora a montagem dentro do plano proceda agora, nos casos mais interessantes, por uma espécie de split screen ocultado, de que resta iluminado um pequeno quadrado, impondo-se ao resto do frame uma velatura que faz com que o quadrado iluminado sobressaia duplamente. Descontando a educação e orientação do olhar implícita no processo, ele torna-se sobretudo estimulante se lido como tradução ótica de um regime da memória que funcionaria por incisões e inserts ou, se se preferir, por fragmentos (ruínas) de panoramas irrecuperáveis na sua integridade. O processo recorda, aliás, aqueles versos de Carlos de Oliveira no poema “Líquenes”, de Micropaisagem, em que “Algures / no lugar / mais frio / da memória, / mas / nítido / como um centímetro / quadrado de neve / que pede / a própria luz / à algidez interior, / surge / a paisagem / de líquenes” – um Fade-in que introduz a micronarrativa que preenche os segmentos 2 a 5 do poema. O processo encerra-se em Fade-out, estabelecendo-se um manifesto paralelismo com a emergência e dissolução das imagens da memória nos filmes de SSD e, em particular, com o quadrado iluminado do frame de Viagem ao Sol: “assim / se cumpre / o eclipse / gradual / sobre o centímetro / quadrado que / os líquenes / cobrem / na memória, / assim / a luz e a neve / se ocultam / pouco a pouco, assim / se esquece”.
O filme reitera o Diktat contemporâneo contra a voz off, o que, contudo, em função dos testemunhos orais, bem como da diversidade de fontes usadas (fotos, filmes de propaganda do regime, etc.), mas também porque a história a contar decorre num lapso de tempo bem delimitado, não produz os efeitos de desorientação do espetador referidos a propósito de Natureza Morta. O filme, aliás, foi exibido em salas à porta das quais foram colocados expositores (em tipologia Roll-Up) produzidos pela embaixada da Áustria, nos quais se descreve, com auxílio de documentos e excertos de testemunhos, o episódio da estadia das crianças austríacas em Portugal no pós-guerra. Ou seja, quer o aparato pedagógico que o envolve, quer a estrutura reconhecível da narrativa, compensam a ausência da voz off ou os experimentalismos, de resto quase sempre funcionais, que pratica. Ainda assim, a ausência da voz off, neste como nos restantes filmes, não dispensa, antes exige, o breve texto preambular inscrito na imagem a negro, que situa os eventos e, inevitavelmente, orienta (e condiciona) o espetador. O que produz uma contradição performativa entre a militância (inteiramente legítima) deste cinema e a abstinência em relação a uma voz off que, denunciada na teoria do documentário contemporâneo como Significante-Mestre da ordem falogocrática, é em rigor substituída por um outro significante que compensa o silêncio do Pai com a evidência da moldura hermenêutica produzida pela mensagem preambular. A que deveríamos acrescentar todos os esforços para desfamiliarizar imagens (por reenquadramento ou trabalho sobre a sua velocidade, sobre a articulação com o som ou sobre a sua própria estabilidade retiniana) que não deixam dúvidas sobre a posição ideológica da manipuladora, mesmo que se declare aspirar a um trabalho que não produza détournement nem mude o sentido da imagem. A manipulação, digamos, é demasiado evidente para que não compense largamente a supressão da manipulação produzida pela voz off d’antanho. O facto de o processo seguir agora a lógica modernista de uma crítica interna dos materiais, sabotando o seu significado manifesto para reativar a sua latência, já em clave “emancipada”, do outro lado do túnel da História (ou da “mesa de montagem” digital), não afeta substancialmente as coordenadas da questão – embora lhe atribua um suplemento de boa consciência, como se a bondade desta manipulação (um descritor inevitável para um trabalho cujo cenário é obstinadamente o arquivo) compensasse a priori da contradição antes referida. Tanto mais que, ao contrário da manipulação produzida pela propaganda, a que resulta das estratégias de estranhamento de SSD pressupõe um espetador conquistado, não por afetos, mas por um moroso e árduo trabalho de aprendizagem, cuja cena pedagógica é instituída pelo permanente Fade-in e Fade-out da imagem, como se a lição recomeçasse sem cessar – e como se a lição da História (ou melhor: a História enquanto lição) fosse apenas o imperativo, e a efetiva monotonia, desse recomeço.
Obscuridade e alucinação do real
Visto em perspetiva a partir de Viagem ao Sol, o cinema de Susana de Sousa Dias dispõe-se como uma oscilação entre dois pontos extremos da ontologia da imagem-tempo – a fotografia e a imagem ao ralenti –, dentro da grande tradição da “luz obscura”, de Caravaggio ou Goya a Paulo Nozolino, David Lynch, Bela Tarr ou Pedro Costa. A fotografia (em rigor, o corpus) que melhor traduz essa luz obscura no seu cinema é obviamente a da foto de cadastro da polícia política da ditadura, cujas funções (e temporização) nos vários filmes tentei elencar antes. Quanto à imagem ao ralenti, elejo dois grandes momentos, um deles exterior à questão da luz obscura, a breve cena do macaquinho que abre Natureza Morta, início fulgurante que, no desamparo e pânico do animal, reforçado pela eletroacústica de António Sousa Dias e pelo esfumar fantasmagórico da imagem em hiper-staccato, consegue figurar um Unheimlich que se inscreve em abismo em todas as imagens que se seguem. O segundo momento é o plano inicial de Luz Obscura, logo após uma voz feminina declarar: “Eu nasci numa aldeiazinha que se chama Cabo do Mundo. Na clandestinidade”. Seguem-se imagens do mar, em super slow motion, um mar de uma viscosidade de treva, desenhada a carvão grosso e iluminada tenuemente por reflexos sublunares, enquanto a mesma voz evoca memórias da infância que são memórias de enclausuramento na casa da clandestinidade no Cabo do Mundo. Este é talvez o mais extraordinário momento do cinema de SSD, propondo-nos no plano fixo do negrume oleoso do mar a equivalência não dialética entre o que a janela da casa clandestina permite ver e não ver: a negatividade que o fascismo faz descer sobre a natureza (morta).
São momentos, digamos, em que estes filmes, que são sempre (para o bem e para o mal) filmes de uma professora de cinema, se enredam na obscuridade e alucinação do real, derrotando assim, ainda que pontualmente (ou no regime em abismo antes referido), essa pulsão forense que não desiste de o domesticar.