No passado sábado, 28 de janeiro, foi objeto de apresentação pública, no Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira, um conjunto de dois livros preparados por Rosa Maria Martelo e editados pela Averno e pela Alambique – uma edição conjunta que atribui à primeira a publicação de uma nova versão de Pastoral, de Carlos de Oliveira, e à segunda a de Matérias Difusas, Poderosas Coisas, de Rosa Maria Martelo, obra com o subtítulo “Uma Leitura de Pastoral, de Carlos de Oliveira”. Os livros têm a mesma proposta gráfica e formato, embora com cores diferentes, Pastoral em verde e Matérias Difusas, Poderosas Coisas em tom alaranjado. Para esta reedição, que é de facto uma edição nova, de Pastoral, foi decisiva a utilização do “exemplar intervencionado” (termos de Rosa Maria Martelo) da plaquete da edição autónoma de 1977 constante do espólio do autor, exemplar esse que acrescenta aos 10 poemas a sua versão escrita à mão e ainda 10 ilustrações a lápis de cera do autor. O “exemplar intervencionado” é oferta do autor a Ângela de Oliveira, cuja inscrição na obra constava já do poema “Chave”, dedicado a Anne Gall, um outronímico aí usado por Carlos de Oliveira para a sua companheira.
UMA “FORMA PENSANTE”
A primeira questão que esta importante edição coloca desde logo, na confrontação suscitada pelos dois livros, é a de saber se se trata realmente de dois livros ou de um. Em rigor, qualquer deles é novo, mas nenhum deles o é plenamente. Não conhecíamos ainda esta Pastoral, mesmo aqueles que tinham tido acesso ao “exemplar intervencionado”, pois o que do exemplar agora resulta é um livro, isto é, a transformação operada pelo processo gráfico e tipográfico sobre uma intervenção autoral e artística. A transformação destina agora a um uso público, como é típico do livro, o que até aqui tinha uma destinação estritamente privada, para não dizer íntima (uma ocorrência mais da “cumplicidade amorosa” entre o casal, para regressar à descrição de Rosa Maria Martelo). O “exemplar intervencionado” é um Livro de Artista no qual a intervenção manual e caseira produz um détournement artesanal sobre uma plaquete que, à partida, se destinava já a um público restrito e cúmplice (150 exemplares, supostamente coincidentes com 150 leitores). Esta edição nova dobra a tiragem da plaquete inicial, aspirando a 300 leitores (um irónico triunfo póstumo de um livro a priori póstumo em relação a qualquer regime de historicidade que usemos para o ler), mas revela-nos um mundo de implicações e consequências que, como Rosa Maria Martelo afirma a abrir Matérias Difusas, Poderosas Coisas, cria um novo modo de ler a obra, o mesmo é dizer, um novo modo de a relacionar, quer com a Obra do autor, quer com outras obras (em particular a de Paul Klee) e meios, sobretudo a pintura. Continue reading