Arguições: “A Margem da Alegria”, de Ruy Belo, por Ana Maria Pereira Soares

A quinta arguição que aqui publico teve lugar a 28 de junho de 2017, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e foi seu objeto a tese que Ana Maria Pereira Soares apresentou sobre A Alegria e o Mal em Ruy Belo. Estudo da Composição Hipertextual d’A Margem da Alegria, no doutoramento em Literaturas e Culturas Românicas, especialidade de Estética Literária, sob orientação de Luís Adriano Carlos.
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A tese de doutoramento em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos, na especialidade em Estética Literária, apresentada à FLUP por Ana Maria Pereira Soares, sobre composição hipertextual no livro de Ruy Belo A margem da alegria, revela, antes de mais, citando o poeta, “um grande trabalho e um grande talento”, o que pressupõe, para continuar a citar o poeta, “um grande amor pela obra lida”. A Margem da Alegria que conhecíamos até aqui não é, de modo algum, idêntica à que Ana Soares, com denodo, paixão e perversidade, coisas muitas vezes não separáveis, como sabemos, nos apresenta neste trabalho que marca uma época nos estudos de Ruy Belo – estudos que, se somarmos esta tese à que muito recentemente Manaíra Athayde apresentou ao Programa de Doutoramento em Materialidades da Literatura em Coimbra, estão nitidamente a entrar na “era do arquivo”. O que impressiona no trabalho de Ana Soares é que nem a sua frequência do espólio parece ter sido tão decisiva para esta tese como foi no caso da tese de Manaíra Athayde, significativamente subtitulada “Poesia Espólio”, nem a autora recorreu (ou necessitou de recorrer) aos prodígios da pesquisa em modo Google para produzir o monstruoso trabalho detectivesco que se patenteia no falso “Anexo”, ou volume 2, da tese.

Porquê falso? Porque, em boa verdade, a tese está no Anexo, que é como quem diz, no desfile de hipotextos que, em regime mais ou menos fragmentado e cerzido, a autora conseguiu devolver ao laboratório poético de Ruy Belo, laboratório que o Anexo nos permite agora visitar enquanto “estaleiro a céu aberto”. A diferença entre Eliot e Ruy Belo é que o primeiro punha as citações em notas finais, enquanto o segundo ia apagando o seu rasto, destruindo manuscritos, por exemplo. O problema é que o fazia ao mesmo tempo em que declarava que cabia aos leitores reconstituir esse rasto, fazendo a sua própria pesquisa de fontes: “Que aprendam, se quiserem”, dizia, nos seus momentos de pedagogo cruel. Ana Soares, que manifestamente aprecia esta pedagogia, comenta, na p. 75: “Só a persistência e a tenacidade permitirão ao leitor deste tipo de palimpsesto obter resultados e finalmente aceder ao entusiasmo e ao triunfo da descoberta, assim como a um outro patamar de leitura”. O poeta não quereria tanto esconder como incitar o leitor ao trabalho, trabalho que Ana Soares descreve deste modo, que eu diria autobiográfico, na p. 76: “O leitor terá de trilhar o seu próprio caminho, de estabelecer as conexões necessárias, de se perder e de desesperar, de acompanhar o turbilhão de emoções que se debatem no poema e que tornam o percurso de leitura moroso mas esteticamente intenso”.

Abre-se aqui, digamos, uma primeira clivagem para um debate: a de saber como descrever ou definir esse “patamar de leitura” a que o trabalho da leitora Ana Soares nos permite agora aceder. A autora declara, na p. 96, que o seu propósito é o de “comprovar a força” de uma tese de Manuel Gusmão, segundo a qual a poesia de Belo resulta de uma “omnívora memória da cultura”. E assim, após o momento em que, na p. 102, descreve A margem da alegria como “um magnífico hipertexto”, logo conclui, uma página adiante, que “Este poema demonstra no mais elevado grau a genialidade do seu autor, a sua singular erudição, o seu conhecimento voraz e enciclopédico, a sua exímia capacidade de manusear grandes superfícies textuais”, etc. Sempre que está em pauta esta questão, segue-se, na análise de Ana Soares, um elenco de atributos, sobretudo macroestruturais, que definiriam o génio, vale dizer, o poder ou a violência criadora do poeta. Que Ana Soares não duvida do génio de Ruy Belo, é o que se percebe pela profusão de usos do termo na sua tese, que se abona quase sempre no estudo de Luís Adriano Carlos sobre a questão, que não tive ainda o privilégio de ler (1). Pessoalmente, e sem negar pertinência à presença da tópica do Génio em Belo, acho revelador esse uso (e abuso), que a meu ver acaba por deslocar a caraterização de Belo mais para o terreno de uma épica do sujeito poético do que, em termos estéticos rigorosos, para o do génio. É a dimensão do empreendimento, a voracidade do autor, o seu devir de Grande Máquina poética, que está sempre subjacente a estas descrições, que naturalmente pressupõem, na esteira de Gusmão, que o poeta é grande porque a sua memória cultural é omnívora, e que em nenhum dos seus livros essa memória se presentifica como em A margem da alegria, o que seria um decisivo critério de eleição da grandeza da obra. Pessoalmente, tenho algumas reservas a esta descrição e classificação do livro (preferiria, até contra Gusmão, acentuar a forma como nele se revela o específico drama histórico de Belo – e Sena, e Manuel António Pina – enquanto poeta tardio), no qual várias vezes reconheço a pertinência daquele diagnóstico, demasiado esquecido, produzido em tempos por Américo Lindeza Diogo, segundo o qual a espantosa fluência de Ruy Belo teria aberto à poesia portuguesa uma era de facilidade versificatória (uma era, aliás, corretiva, após um certo período de prisão de ventre do verso, nos anos 60). O problema, desde logo, está em saber se a cultura é critério de grandeza, estética ou outra. Proponho um pequeno exercício. Peguemos nos versos que transcreve nas pp. 197 e 198, e que começam por

Inês de pedro presa mais que súbdita é princesa
e mais branca que a própria dona branca
que vinda de navarra cedo volta à sua terra

Permita-me que leia alguns deles em ritmo (muito aproximativo) de rap (2):

Não pode descrevê-la bem / alguém / mesmo depois de vê-la
pois ela tem / de bela quanto / de mortal / a bala
qu’ a vida vela e / p’ra sempre / abala
e atinge o coração / mais que a razão
e ao ver a sua pele / tão alva / ouve-se a salva
do mais recente sol / qu’ extingu’ o rouxinol
e tão redondo dia / qu’ arredond’ a alegria

O que aconteceu agora à cultura como critério de legitimação estética? Não podemos, pelo contrário, ler estes versos como rimas de rap com uma saturação rimática que, a um leitor de gosto exigente e sofisticado, ou “moderno”, parecem demasiado redundantes e fáceis? Mas façamos agora o percurso inverso, se a Ana Soares me permite: vamos supor que é a indiferença à cultura que nos permite ler Ruy Belo em modo rap e que, pela força (ou energeia, ou violência) dessa indiferença, sabotamos a melopeia de Belo e a forma como ela se adequa, como uma luva, à retórica da exaltação amorosa que, nas palavras de Ana Soares, “O fôlego dificilmente consegue conter”. Mas será mesmo o fôlego ou pneuma, enquanto restituição de um estado do mundo? Ou antes uma filologia histórica do ritmo e da melodia do verso que Belo vai supostamente buscar algures, à literatura do passado, para nos fazer crer que estamos mesmo ante Inês, nos seus tempos felizes muito idos, e medievais (o que implica uma certa musicalidade, de preferência em instrumentos de época)? E se eu preferir resgatar Belo à mística (e mistificação) da música em instrumentos de época, tal como Richard Tarushkin fez em tempos, num ensaio demolidor para essa insaciável filologia (3)?

Onde quero eu chegar? A dois ou três pontos, sendo o primeiro o que tem a ver com a noção central da sua tese, a intertextualidade. A sua análise repousa sobre uma convicção, amplamente tematizada na tese, segundo a qual a obscuridade de certos passos do poema se resolve no momento da descoberta da fonte hipotextual e do seu encaixe hipertextual. Como se percebe ao ler o Anexo, e sobretudo a forma como o rentabiliza no vol. I, a sua pesquisa vive de uma ideia forte de saturação do contexto, ideia cuja procedência e pertinência filológica é manifesta. O problema, contudo, reside em que não há contextos mas contextualizações, pelo que o sentido que Belo atribuiu a esses encaixes e que a sua pesquisa acredita poder desentranhar é função da contextualização que ele produziu e intencionou, mas que não conseguiremos nunca saturar ou recuperar plenamente (neste ponto eu diria que há uma tensão não resolvida na sua tese entre intertextualidade e filologia, uma situação relativamente frequente nos estudos literários). Para o dizer de outro modo: gostei do agonismo do capítulo em que enfrenta a crítica produzida até hoje sobre A margem da alegria (acho sempre bem que a nova geração bata sem piedade na anterior), mas apreciei menos o argumento recorrente de que os erros hermenêuticos dos leitores que a precederam têm todos um fundamento filológico: falta a todos o conhecimento da fonte A ou B para que a sua crítica possa ser realmente pertinente. A Ana Soares chama a isto intertextualidade, mas de facto o que está em causa é filologia. Ora, a leitura intertexual (ou filológica) de A margem da alegria é um importante regime de leitura da obra, mas não pode pretender afirmar-se como o único regime aceitável, exatamente porque eu posso preferir ouvir as Variações Goldberg tocadas ao piano por Glenn Gould, em que pese a Gustav Leonhardt e ao seu cravo de época. Gostava de a ouvir sobre isto.

O segundo ponto pode ser introduzido por uma nota pessoal. Não consigo encarar este seu feito sem uma sensação, tão moderna, ou seja, tão anacrónica quanto perdurável, de desencantamento, já que aquilo que o poeta quis esconder, Ana Soares fez questão de, com muito encarniçamento, revelar: e voltamos ao Anexo, que decompõe as fontes em “materiais”, expressão que a Ana Soares vai usando em diversos contextos ao longo da tese. Por ex., na p. 106: “muitos foram os obstáculos encontrados para a identificação do material que serviu de base à composição deste hipertexto”. Ou, na p. 128, sobre a leitura enquanto “fonte imprescindível da inventio”, quando se refere à “estratégia singular de reunir material extremamente diverso e improvável”. O tópico é intensamente moderno e podemos descrevê-lo com a linguagem de Freud, nos termos de uma passagem do latente ao manifesto, sabendo embora que o moderno a quem devemos a explícita rentabilização estética e política deste processo foi Brecht, com toda a sua abordagem da desnaturalização e do estranhamento. Mas se o tópico é moderno, a abordagem de Ana Soares não me parece sê-lo, e mais uma vez voltamos à questão polémica da cultura omnívora enquanto critério descritivo de Ruy Belo. O problema é que na lógica desse critério faz sentido fazer aquilo que fez: recuperar os hipotextos, ou seja, denunciar a latência, mas não para a tornar inteiramente manifesta e sim para de novo cerzir esses hipotextos num textus que só se constitui como tal pela força épica de um sujeito de cultura, ou melhor, pela força da cultura enquanto texto que tudo apaga e recobre, até mesmo sujeitos fortes em luta com o ingovernável quilt da tradição. No meu caso, e fazendo agora a autocrítica do meu self romântico, eu diria que a diferença que uma caraterização de Belo como “poeta tardio” ou, nos termos de Harold Bloom, revisionista, introduziria no seu trabalho seria, justamente, a evidência do caráter ingovernável da tradição enquanto “depósito de materiais” e do texto como uma “crítica interna dos materiais”, em aceção adorniana, que, contudo, e um tanto contra Adorno, não garante a forma orgânica. Como leitor, sempre reagi assim a A margem da alegria: um poema com excesso de informação, ou de materiais, e com truques de composição mais ou menos reconhecíveis, uns mais felizes que outros, como sempre ocorre. Tenho reservas à forma orgânica do livro, que me parece tão premeditada quanto, aqui e ali, falhada, e tenho, por isso, reservas à sua leitura, na qual o conseguimento da forma orgânica é uma espécie de pré-determinação de leitura. Consegue-o em vários momentos notáveis, por exemplo o episódio de Erasmo Montano, mas a meu ver falha-o de modo espetacular na longa secção (demasiado longa) sobre a presença do Livro de Job no final do poema, ainda que por intermédio de Agustina: não fiquei convencido, apesar do longo esforço. Gostava de a ouvir sobre isto.

Para terminar, agradeço-lhe tudo o que o seu muito trabalho, talento e amor nos fez aprender sobre A margem da alegria.

  1. Trata-se da lição de agregação de Luís Adriano Carlos, com o título “Poética do Génio e Estética do Sublime em Ruy Belo”, à data não publicada e que o autor me fez simpaticamente chegar logo após.
  2. A partição dos versos com / exprime aproximadamente o débito rap por blocos métricos.
  3. Refiro-me ao texto “The Modern Sound of Early Music”, publicado em 1990 no New York Times e hoje reunido no livro Text & Act. Essays on Music and Performance. Oxford University Press, 1995. A Introdução ao volume retoma a questão, de resto presente em vários outros ensaios de Tarushkin nesse livro.