A Tipografia Damasceno, depois da tipografia

Situada na Rua de Montarroio, 45B, em Coimbra, a Tipografia Damasceno, dirigida já há anos por Rui Damasceno, e que se promove com um belo logótipo que reproduz um prelo de madeira antigo e com a frase “Execução rápida e perfeita de todos os trabalhos tipográficos que exigem qualidade”, atingiu em 2019 a idade redonda de 50 anos. Por ocasião da efeméride foi lançado um volume, cuja conceção gráfica pertence à Editora dos Tipos, de Joana Monteiro. O volume existe em duas cores de capa – amarela e vermelha, a segunda de maior impacto mas menor legibilidade, como tantas vezes ocorre – e o primeiro desafio que lança ao leitor é o de decifrar o seu código de leitura, o mesmo é dizer, de manuseamento. É possível abrir o livro, desencaixando a dobra da capa, e percorrê-lo na sequência “normal” de um livro, que logo nos permite constatar que este livro consiste em dois grossos cadernos agrafados, o primeiro com 64 páginas e o segundo com 80, em cores diferentes, o primeiro, azul e em papel de 50 gramas, o segundo, marfim e em papel de 70 gramas. A diferente gramagem adequa-se à função de cada caderno ou parte do livro: o caderno azul comporta sobretudo texto, com algumas reproduções a preto e branco (cartas, trabalhos tipográficos, fotografias), destinando-se a recuperar a história e o contexto da Tipografia Damasceno; o caderno marfim recupera basicamente o arquivo da tipografia: cartazes, material escolar, cadernos de registo e contas, comunicados sindicais, livros (com destaque para os da Fenda, nos anos 80), em reproduções a cores.

Caso o leitor decida explorar o objeto, sem se preocupar a priori com o regime ortopédico de leitura suscitado pela forma-livro, pode desdobrá-lo uma e outra vez, já que o livro não possui a espinha rígida que define a esmagadora produção de livros, e deparará com uma espécie de cartaz ou mural de extensão e dobra variável, mas também, tratando-se de mural ou cartaz, com uma exibição, em panorama (um outro medium), de meios diversos: logótipo, fotografia, ilustração de Ana Biscaia aspirando a graffiti auto-irónico, lettering, etc.

O objeto, digamos, oscila entre raiz e rizoma, exibindo na extrema-esquerda o logótipo e “assinatura” comercial e, logo a seguir, a fotografia do local (ambos figuras da origem), mas espraiando-se por uma parataxe de soluções gráficas que coloca no mesmo plano o dizer popular e a sua revisitação trendy, a tipografia e a sua reinvenção, o arquivo analógico e o trabalho de design digital, para regressar por fim, e por via do culto e celebração do material – a rugosidade da cartolina Fedrigoni Freelife Merida 250 g, como podemos ler na ficha técnica – àquela situação pós-digital de que um livro como este é um produto exemplar.

Essa indecisão entre raiz e rizoma prolonga-se no corpo central da obra, já que a dobra ou harmónio que afasta e aproxima os dois cadernos – a história, mas também a teoria, no primeiro; o acervo, no segundo – permite que o leitor opte por ler (1) o primeiro ou por ver o segundo, sem que uma precedência seja claramente estipulada.

Não se trata, pois, de passar da história e teoria ao corpus, mas de, por meio dessa figura da relação que é o harmónio, gerir um vaivém entre os dois, que não faz do corpus necessariamente o exemplum ou a demonstração do estipulado no caderno azul. Como sempre ocorre nesta relação, aliás, o corpus resiste razoavelmente bem aos discursos do primeiro caderno, funcionando como o reduto ontológico e empírico que contrasta ou falsifica esses discursos, embora possamos suspeitar que, como é natural, a seleção apresentada pressupõe já as posições expendidas no caderno azul.

Significativamente, porém, o texto de Joana Monteiro que abre o caderno azul após uma breve seleção de documentos, começa pelo fim, ou seja, por um momento de revelação:

Finalmente, conseguimos colocar a escada de acesso à prateleira dos tesouros, junto ao tecto da Tipografia Damasceno, por cima da porta do escritório do Rui. Ele subiu e foi passando pastas e pastas e caixas com materiais gráficos compostos e impressos na Tipografia. Ficámos rapidamente fascinadas (eu e a Carina Correia) com os cartazes de anúncio de bailes, a audácia dos dizeres de auto-promoção e toda a beleza simples das composições tipográficas feitas com os mesmos tipos de madeira e chumbo que ainda hoje se encontram disponíveis nos cavaletes da Tipografia. (p. 9)

O passado, ou thesaurus, devém “arca do tesouro” exatamente pelo gesto de exumação levado a cabo por uma designer que confessa apreciar pouco o trabalho de elaboração de grelhas – admitindo embora que “No trabalho com tipos de chumbo, não há como não usar uma grelha. As letras são peças de chumbo em forma de paralelepípedo, que encostam umas às outras. Todos os espaços em branco da composição impressa correspondem também a espaços em chumbo” (p. 10) – e que confessa ainda usar “muitas vezes os tipos apenas como imagem (recorrendo à fotografia) ou recorr[endo] à impressão tosca que consigo obter com o prelo mais antigo da Tipografia, sem necessitar de imprimir nas máquinas impressoras, seguindo depois para a digitalização e manipulação digital” (id.). A descoberta das pastas e caixas com materiais gráficos representa muito bem esta situação póstuma de uma arte tipográfica na qual uma designer digital não consegue deixar de reconhecer toda a “beleza simples”, que é tanto das composições como dos tipos de madeira e chumbo que a permitem. Aliás, é inevitável supormos que para a arte desta designer é mais relevante a beleza simples dos tipos, ou seja, da tipografia decomposta ou reduzida a materiais reutilizáveis digitalmente, do que a das composições propriamente ditas: trata-se de reduzir fenomenologicamente, como veremos, uma linguagem (uma grelha) até ao seu elemento mínimo, fazendo com que o tipo se torne uma plasticidade contemplável, mesmo que à custa do seu esvaziamento semântico (o significado, aprende-se na linguística estrutural, é justamente função da diferença produzida pela grelha da linguagem, sendo que é essa grelha enquanto linguagem que é aqui objeto de desmonte). A eleição da “impressão tosca” seria não tanto o fetichismo do primitivo e sim uma técnica equivalente à do frottage, que torna quase indistinto o referente, e a grelha, mas apenas o suficiente para que essa quase-indistinção signifique algo como “a arte tipográfica enquanto antepassado do design gráfico”.

O próprio livro, no caderno dois, acolhe exemplos do trabalho de Joana Monteiro nos quais os tipos, e mais latamente a tipografia a chumbo, com a gestão da sua quadrícula, são apropriados imageticamente de um modo que pressupõe também boa parte do arquivo da arte do século XX, da colagem à montagem e aos efeitos mediaticamente reversíveis de, por exemplo, letrismos vários.

Essa apropriação pressupõe, como se viu antes, fotografia e manipulação digital, bem como a reutilização, ao mesmo tempo material e semiótica, de tipos, caixas e ferramentas de composição, que assim se tornam de novo meios desprovidos de finalidade ou, se se preferir, remediados, quer enquanto meios (tipos destinados à contemplação) quer enquanto finalidade (não tanto funcional mas estética e arqueológica). Joana Monteiro afirma, a certa altura, nesse texto introdutório, que “Revelar uma imagem, no processo fotográfico, é fazer com que ela apareça. A função de um livro também pode ser essa: dar acesso a conteúdos” (p. 11). Eu diria antes, afastando-me um pouco deste jogo de linguagem do tempo da “economia digital de conteúdos”, que a função deste livro é antes o acesso às formas (e fôrmas) de que se faz a tipografia enquanto “arte menor”, revisitadas embora por aquele olhar literalmente anacrónico que a desfuncionaliza o suficiente para que ela possa permitir-nos a fruição distante, porventura nostálgica, de um regime de inscrição material hoje praticamente extinto – e, por isso mesmo, recuperável na beleza arruinada, que é a sua, de um parque industrial arqueológico.

Vários dos textos recolhidos no caderno azul abordam os regimes específicos da materialidade tipográfica, como o de João Maria André, que explora a articulação entre materialidade da escrita e materialidade dos afetos. Mas nenhum aborda, como o de José António Bandeirinha, a imbricação de regimes materiais, simbólicos e políticos rastreáveis na tipografia e, em particular, na Tipografia Damasceno. Bandeirinha começa por situar a Damasceno num reiterado percurso citadino, pessoal e afetivo, que se vai alargando ao urbanístico e histórico, lendo nela três fases da Coimbra contemporânea: a da ditadura, a da revolução e, por fim, a da passagem ao capitalismo neoliberal. No momento em que aborda a redescoberta da tipografia por pessoas como Joana Monteiro, Bandeirinha dá o salto final no seu argumento, fazendo da Damasceno o símbolo de uma revalorização não apenas da tipografia mas da memória histórica que a aceleração liberal e digital parecem desprezar:

Se não for a tipografia tradicional a conduzir as nossas referências e a legitimar os nossos valores, deixamos de perceber como chegámos a este mundo do digital, perdemos a cultura histórica. E a História é a mais importante das ciências. Grande parte das ameaças e das perversidades que assolam a Polis contemporânea alimenta-se da ignorância histórica e preconiza uma “evolução tecnológica” a-histórica e a-cultural. (p. 24)

Bandeirinha parece depositar na materialidade maquínica e sensorial do “turbilhão de sonoridade tonitruante” (p. 21) da tipografia uma esperança, paradoxalmente futurista na sua descrição (e a tipografia foi um local de eleição do futurismo), de que o passado não seja objeto da imaterialização que o presente supostamente arrastou (2). Que a tipografia sempre foi muito mais do que tipografia, é o que o “cólofon” do caderno azul nos lembra, evocando a forma como o 1º de maio de 1886, em Chicago, que está na origem da institucionalização do Dia do Trabalhador, foi liderado por tipógrafos, que pela causa deram a liberdade e a vida.

Não por acaso, também, a página anterior ao cólofon apresenta os nomes dos Trabalhadores da Tipografia Damasceno, o que permite recordar a militância comunista de João Damasceno, que o levou à prisão nos anos 50, e permite integrar a tipografia na história da resistência portuguesa à ditadura, bem como na história da revolução industrial, vista pelo lado de uma das mais relevantes classes do operariado.

No único texto inteiramente académico que acompanha o volume, fechando o caderno azul, o projeto de investigação Anti-Amnésia, que se dedica à “auscultação, viabilização e replicabilidade de contextos tradicionais de produção industrial e artesanal no universo contemporâneo” (p. 53), apresenta o seu modelo histórico (em rigor historicista), para o qual o triunfo contemporâneo do design produz uma típica retroação que legitima a arte tipográfica como arqueologia do campo, fazendo dela “um laboratório da história da comunicação visual” (p. 56), despertando “nos seus estudantes uma curiosidade que advém da materialidade e dos seus contextos informais de ensino” (id.). Mais adiante, o Anti-Amnésia apresenta a sua “fé” na “re-operacionalização do saber-fazer ancestral” (p. 57), argumentando que

Esta fé não é um fetichizar da produção, não é um fetichizar do consumo, não é um fetichizar do objeto: é antes a convicção de que o progresso e a obsolescência ditada, a par da tão advogada liquidez da contemporaneidade, têm sido demasiadas vezes processos de desenraizamento semântico. Qual a autoridade do imperativo da alfabetização digital, se esta não é recíproca relativamente aos ecossistemas sobre os quais pousa, possuidores dos seus próprios modos de decifrar? (id.)

O desenraizamento, convenhamos, é semântico porque é político, económico e social, e não apenas tecnológico, como José António Bandeirinha tão bem demonstrara algumas páginas antes. À situação descrita pelos Anti-Amnésia, que em rigor coincide com a do pós-digital na descrição de Florian Kramer, falta o reconhecimento pleno de que a sobrevivência de uma tipografia como a Damasceno, enquanto “laboratório da história da comunicação visual” (significativa retroação tropológica produzida a partir da universidade, o locus dos laboratórios por excelência, ao contrário das tipografias, em que as experiências saem demasiado caro e em rigor só são plenamente admissíveis na fase de formação dos tipógrafos), só é possível hoje dentro do aparato de uma instituição de Ensino Superior, de preferência com muita I&D, já que o fundamento económico dessa atividade, e com ela o seu horizonte político de referência, se evaporou. Para o percebermos basta regressar ao texto de Joana Monteiro, que após nos falar da “forte atração física por aquele espaço de trabalho” (p. 10) que é a tipografia, o que todos os textos mais ou menos referem, passa à descrição da Damasceno como espaço economicamente desfuncionalizado, lugar de ócio e não de negócio, ao arrepio da Razão Instrumental e da mais valia:

São os meus sentidos, uma necessidade de bem-estar e as possibilidades infinitas que se reflectem num fazer vagaroso e me levam a passar horas seguidas na Tipografia. (p. 10)

Num certo sentido, a mais valia desta atividade económica evaporou-se tanto como a tipografia a chumbo se sumiu do trabalho de Joana Monteiro, que nos seus momentos mais intensamente autorais (a conceção geral do livro, a sua capa e estrutura desdobrável, em harmónio), e ao contrário das aparências, pouco mima, de facto, da arte tipográfica do passado. Os agrafos que, em cada caderno, resolvem de forma expedita um problema técnico para o qual a tipografia produziu soluções mais investidas em mão de obra e técnica artesanal, vale dizer, tempo (coser e/ou colar, sobretudo: veja-se a diferença, prática e programática, em relação ao livro de Leminski analisado antes nesta rubrica), revelam bem a que ponto o fetichismo receado pelos Anti-Amnésia se deslocou do saber-fazer para a re-operacionalização do arquivo. É o que acontece na capa, que nos oferece um espécime de deliberada tipografia pobre, com a frase-título “A melhor propaganda da TIPOGRAFIA DAMASCENO é a qualidade dos seus trabalhos”, que ao mesmo tempo que resolve a questão do título recorrendo simplesmente à caixa alta, exige leitura na horizontal, que contudo a marca histórica – “50 anos” – corrige, exigindo também a verticalidade do objeto-livro. Abrindo o livro, porém, o que temos nele escondido é um objeto de design sofisticado, cuja expansão horizontal parece não ter fim, desmultiplicando o objeto quatro vezes, num livro mole, e também por isso rizomático, que afinal é antes um catálogo em harmónio.

Se acaso optarmos por recolher o harmónio à forma-livro, folheando-o desde o início, a progressão, bastante simétrica, decorre entre os documentos que abrem o caderno azul, entre eles o exercício tipográfico escolar de João Damasceno acima reproduzido, e os trabalhos que preenchem todo o caderno marfim, que, aliás, recua de 1969 a 1958, agregando o período em que Damasceno co-dirigiu a Tipografia Progresso.

61 anos, no total, de produção de um vocabulário e de constituição de uma linguagem que, no final do segundo caderno, são revisitados no trabalho de Joana Monteiro, regressando à fonte e à sua materialidade, disponibilizando-a para a nossa contemplação e para um conjunto de reapropriações e ressignificações que só podemos qualificar como pós-históricas (convém levar a sério o título do texto da designer: “Estes 50 anos, que não vivi”). A perspetiva usada nestes trabalhos tende a ser a de um olhar de cima, e em rigor holístico, naqueles casos em que as suas caixas e conjuntos replicam dispositivos da arte contemporânea, com destaque para a Pop de Rauschenberg ou Jasper Johns, ou atomizada em letrismos de tipografia “escolar”, num cromatismo elementar e com a legibilidade que a opção anterior menospreza.

O caderno marfim termina, assim, com a peculiar revisão a que a designer submete a prática histórica da Damasceno, mostrando como o seu trabalho operou longamente, por dentro, nesse thesaurus, antes de se achar preparada para esta impressionante revisitação global da Tipografia (e da tipografia).

Fechemos, ou dobremos, pois, o livro, regressando à ilusão, que acabou de ser mais um pouco sabotada, de que sabemos o que é a arte tipográfica, o que é uma tipografia – e, sobretudo, o que é um livro.

(1) Suspendo aqui as sofisticações semióticas do uso do verbo “ler”, que vão até aos campos de futebol, reportando-me unicamente à sua aceção técnica.

(2) A minha reserva refere-se à tese subjacente segundo a qual o mundo digital é definível pela sua suposta imaterialidade.

Nesta rubrica:

  1. Depois do livro
  2. Um Leminski para ler com as mãos