A Tipografia Damasceno, depois da tipografia

Situada na Rua de Montarroio, 45B, em Coimbra, a Tipografia Damasceno, dirigida já há anos por Rui Damasceno, e que se promove com um belo logótipo que reproduz um prelo de madeira antigo e com a frase “Execução rápida e perfeita de todos os trabalhos tipográficos que exigem qualidade”, atingiu em 2019 a idade redonda de 50 anos. Por ocasião da efeméride foi lançado um volume, cuja conceção gráfica pertence à Editora dos Tipos, de Joana Monteiro. O volume existe em duas cores de capa – amarela e vermelha, a segunda de maior impacto mas menor legibilidade, como tantas vezes ocorre – e o primeiro desafio que lança ao leitor é o de decifrar o seu código de leitura, o mesmo é dizer, de manuseamento. É possível abrir o livro, desencaixando a dobra da capa, e percorrê-lo na sequência “normal” de um livro, que logo nos permite constatar que este livro consiste em dois grossos cadernos agrafados, o primeiro com 64 páginas e o segundo com 80, em cores diferentes, o primeiro, azul e em papel de 50 gramas, o segundo, marfim e em papel de 70 gramas. Continue reading


Um Leminski para ler com as mãos

Editado em 2017 em Londrina pelo coletivo sem fins lucrativos Grafatório, o último livro de Paulo Leminski é um segredo bem guardado, contrabalançando assim, na ciosa lógica eletiva dos Happy Few, o enorme êxito de público que foi a edição, em 2013, de Toda Poesia. O livro recolhe os últimos textos jornalísticos de Leminski, publicados na Folha de Londrina, entre abril e junho de 1989, mês da sua morte. São apenas oito textos, nem todos à data inéditos (há republicações), todos eles, contudo, dignos espécimes do género a que o autor chamou “textos-ninja”, tendencialmente “curtos, ligeiros, ágeis, mas também ferinos, ácidos, arrebatadores”, para citar Felipe Melhado na sua excelente “Apresentação: A pedestre arte da guerra de viver” (p. 9). Todo o Leminski se reconhece neste punhado de textos em que a desenvoltura estilística se casa com um pensamento tão epocal quanto livre. Por exemplo, quando celebra as bandas de garagem da sua juventude, bem como o desejo de ser parte de uma delas, que resume o ethos do rock, não deixando, contudo, de denunciar a submissão do rock à indústria e ao mercado. Continue reading


Depois do livro

A rubrica que agora se inicia será dedicada às formas de vida (em rigor, sobrevida) do livro em papel na era da proclamação da sua morte. Não é, de modo algum, minha intenção inverter o sentido de uma proclamação que, bem vistas as coisas, se revelaria apressada ou superficial. Nada há de apressado ou superficial nessa proclamação, cuja exatidão de diagnóstico podemos constatar na extensão da paisagem de catástrofe que é hoje a do livro: livrarias e alfarrabistas que encerram em série, alterando a paisagem urbana em que crescemos, tiragens que se reduzem, brindes e saldos permanentes, bibliotecas privadas deitadas ao lixo por desinteresse ou de instituições que as acolham ou do mercado, uma economia sectorial em perda global, tanto mais que a passagem ao e-book em nenhum lado se traduz em economia sustentável, até porque em cada um de nós mora hoje um pirata digital. Acrescentemos a idade dos leitores, que vai subindo à medida que se aproxima o tempo em que os millenials, desprovidos de qualquer tipo de relação com o livro, manifestarão o impacto da sua ausência na ecologia deste.

Porém, calma: ainda não é o fim nem o princípio, é apenas um pouco tarde. O biblioclasmo já teve lugar, mas depois dele há ainda livros e leitores, se bem que a nossa relação com eles ocorra hoje neste tempo de depois do livro. Ler hoje um livro é praticar um gesto anacrónico, como percebemos quando o fazemos num espaço (um café, uma carruagem de comboio) em que 4 ou 5 outras pessoas leem, mas no telemóvel. Trata-se, em rigor, do devir póstumo de uma série de meios e práticas significantes que fizeram o nosso mundo. Bastaria agregar ao livro o filme e a guitarra elétrica, e ficaríamos na posse de uma série de entidades que nos ajudam a pensar como o momento hegeliano de todos eles, já ultrapassado, os dispensa do regime de necessidade histórica em que ocorreram, tornando-os a um tempo dinossáuricos e disponíveis – cadáveres adiados que procriam sem cessar. Pois, assim como o filme não resume todos os dispositivos da ilusão ótica, ou como o cinema não esgota todo o espectro do cinemático, também a guitarra elétrica não mantém uma relação necessária com o mundo do rock: ambos são, juntamente com o livro, meios que se emancipam dos seus fins, vivendo hoje nesse tempo fora dos eixos em que todos os anacronismos convivem, mais ou menos remediados. [1] Continue reading