Depois do livro

A rubrica que agora se inicia será dedicada às formas de vida (em rigor, sobrevida) do livro em papel na era da proclamação da sua morte. Não é, de modo algum, minha intenção inverter o sentido de uma proclamação que, bem vistas as coisas, se revelaria apressada ou superficial. Nada há de apressado ou superficial nessa proclamação, cuja exatidão de diagnóstico podemos constatar na extensão da paisagem de catástrofe que é hoje a do livro: livrarias e alfarrabistas que encerram em série, alterando a paisagem urbana em que crescemos, tiragens que se reduzem, brindes e saldos permanentes, bibliotecas privadas deitadas ao lixo por desinteresse ou de instituições que as acolham ou do mercado, uma economia sectorial em perda global, tanto mais que a passagem ao e-book em nenhum lado se traduz em economia sustentável, até porque em cada um de nós mora hoje um pirata digital. Acrescentemos a idade dos leitores, que vai subindo à medida que se aproxima o tempo em que os millenials, desprovidos de qualquer tipo de relação com o livro, manifestarão o impacto da sua ausência na ecologia deste.

Porém, calma: ainda não é o fim nem o princípio, é apenas um pouco tarde. O biblioclasmo já teve lugar, mas depois dele há ainda livros e leitores, se bem que a nossa relação com eles ocorra hoje neste tempo de depois do livro. Ler hoje um livro é praticar um gesto anacrónico, como percebemos quando o fazemos num espaço (um café, uma carruagem de comboio) em que 4 ou 5 outras pessoas leem, mas no telemóvel. Trata-se, em rigor, do devir póstumo de uma série de meios e práticas significantes que fizeram o nosso mundo. Bastaria agregar ao livro o filme e a guitarra elétrica, e ficaríamos na posse de uma série de entidades que nos ajudam a pensar como o momento hegeliano de todos eles, já ultrapassado, os dispensa do regime de necessidade histórica em que ocorreram, tornando-os a um tempo dinossáuricos e disponíveis – cadáveres adiados que procriam sem cessar. Pois, assim como o filme não resume todos os dispositivos da ilusão ótica, ou como o cinema não esgota todo o espectro do cinemático, também a guitarra elétrica não mantém uma relação necessária com o mundo do rock: ambos são, juntamente com o livro, meios que se emancipam dos seus fins, vivendo hoje nesse tempo fora dos eixos em que todos os anacronismos convivem, mais ou menos remediados. [1]

Depois do livro, no regime pós-digital em que vivemos, o livro recupera de súbito todo o seu arquivo, alargando o seu repertório de possibilidades até ao livro-objeto, que uma ideologia da transparência dos meios tanto desvalorizou, regressando à tipografia a chumbo, opacizando o meio e propondo irónicas economias de escala ou ocupações heterotópicas de territórios e géneros reativados: livro ilustrado, livro de poesia manufaturado, microlivro, livro sem formato arrumável, livro-catálogo, livro tátil e, sempre, mais ou menos, livro de artista. E sobretudo, e pelo menos enquanto o e-book não for além da melancólica emulação atual do livro em papel, uma situação de “transição inacabada” do analógico para o digital. Como escrevi num outro texto, por “transição inacabada” entendo “não um processo inexorável mas um processo que se define por não terminar”.

Esta rubrica ganhará, pois, em ser entendida como uma celebração apocalíptica do livro na era da sua explosão – ao retardador, como convém, para que possamos fruir lenta e mentalmente a indispensável experiência das ruínas de que se faz e refaz o presente fugidio que habitamos.

[1] Refiro-me à teoria da remediação proposta em 1999 por Richard Bolter e David Grusin, no seu livro de referência intitulado Remediation. Understanding New Media.