Editado em 2017 em Londrina pelo coletivo sem fins lucrativos Grafatório, o último livro de Paulo Leminski é um segredo bem guardado, contrabalançando assim, na ciosa lógica eletiva dos Happy Few, o enorme êxito de público que foi a edição, em 2013, de Toda Poesia. O livro recolhe os últimos textos jornalísticos de Leminski, publicados na Folha de Londrina, entre abril e junho de 1989, mês da sua morte. São apenas oito textos, nem todos à data inéditos (há republicações), todos eles, contudo, dignos espécimes do género a que o autor chamou “textos-ninja”, tendencialmente “curtos, ligeiros, ágeis, mas também ferinos, ácidos, arrebatadores”, para citar Felipe Melhado na sua excelente “Apresentação: A pedestre arte da guerra de viver” (p. 9). Todo o Leminski se reconhece neste punhado de textos em que a desenvoltura estilística se casa com um pensamento tão epocal quanto livre. Por exemplo, quando celebra as bandas de garagem da sua juventude, bem como o desejo de ser parte de uma delas, que resume o ethos do rock, não deixando, contudo, de denunciar a submissão do rock à indústria e ao mercado.
O mesmo quando trata o Zen, matéria em que a sua competência é notória, permitindo-lhe um catálogo vivo dos paradoxos dessa prática oriental entre, por exemplo, a recusa do livro e da biblioteca e a sua proliferação nos templos zen. Ou quando recorre à arte da guerra como dispositivo ao serviço de toda uma estratégia de subjetivação, de que dá eloquente exemplo neste livro.
Nada disto, porém, define a diferença específica deste livro, que dificilmente poderia ser candidato a peça central da bibliografia de Leminski – não estamos, esclareça-se, ante um novo Catatau, até na extensão –, não se desse o caso de se tratar de uma preciosidade justamente bibliográfica, num regime em que se diria que, mais uma vez, menos é mais. Oito textos apenas, mas, a partir desse escasso número de textos, um livro deslumbrante nas suas modalidades de celebração da arte tipográfica.
Por arte tipográfica entenda-se não apenas a escolha dos tipos e a impressão a chumbo, mas o papel de gramagem e índice de mão altos, a gestão sumptuosa do branco da página, a estranheza de um livro composto por 4 cadernos de 20 páginas (e não 16, como é de lei), os desenhos que o ilustram, a preto e branco e na melhor tradição da “linha clara”, culminando no magnífico retrato com que o livro encerra, do samurai-Leminski sentado no tapete, representado de costas, impondo a opacidade da sua presença muda, que seria talvez a da morte, bem como a aura do mito, próximo mas sempre único e enigmático.
Desenho e página com que o livro abruptamente termina, sem a bondade de um separador que diferisse o confronto com a capa final, que nos surge, também ela, sem qualquer ocultação do seu regime de fabricação: o samurai-Leminski de costas, na página da esquerda, abrindo com o olhar uma linha de fuga para a direita, como se contemplando a capa ostensivamente cartonada e cosida do lado direito, com que tudo se encerra. Ou seja, a magia e, sem qualquer separação ou interlúdio, a revelação do truque que a permite.
Este é um livro destinado ao momento háptico de uma fruição que é bem mais do que leitura, apenas. É difícil lê-lo sem passar as mãos (as pontas dos dedos) pelo texto, sentindo o recorte tridimensional, em rigor orográfico, da impressão, as modalidades de afundamento do tipo na generosa espessura do papel. A experiência começa logo quando pegamos no livro e sentimos a textura rugosa da capa, feita de tecido colado sobre cartão – a arte da encadernadora, Danieli Barbara, que se apresenta como uma encadernadora não tradicional e que não liga “para o jeito correto de fazer as coisas”, pode ser visitada, com muito proveito, na sua página no Facebook, que disponibiliza vídeos esclarecedores.
Mas o efeito da capa prolonga-se na lombada, uma estreita régua envolta em tecido negro, que, por efeito de corte & costura, se equilibra entre as duas telas da capa, frente e verso, desmontando, desmanchando e remanchando a coisa-livro nos seus componentes mínimos: telas e cartão, régua de lombada, cadernos e linha grossa para manter tudo apertado e junto, numa crítica interna dos materiais que é, ao mesmo tempo, uma didática bem brechtiana na sua desocultação programática.
Acrescentemos a isto o efeito produzido por aqueles intervalos entre os cadernos que, ao longo da leitura, nos permitem o contraste entre o muito branco do papel e o negro da lombada que espreita, por essa irregularidade que é fissura e fenda e erotismo, na aceção barthesiana: não a perfeição ilusória do livro sem costuras nem fissuras, ou seja, um todo contínuo, no qual a árdua produção do contínuo apaga dobras, juntas, articulações, nem a destruição biblioclasta do todo-livro ou a sua desagregação em folhas soltas, porventura numa caixa, para darmos um exemplo que nos faria traduzi-lo em Livro de Artista. Em vez disso, a proposta deste livro é a de dar a ver os andaimes da construção, o esqueleto da criatura, a forma como história e cultura dão as mãos, agregando materiais num todo que se torna coisa muito conspícua numa paisagem milenar (a do livro). O sentido deste livro resulta, pois, da esforçada produção de um todo “cosido à linha” e tão coeso como uma coisa cosida à linha o pode ser.
No meu exemplar, o envelhecimento do objeto nota-se na impressão do texto sobre o tecido do verso da capa, que se vai desbotando.
E não duvido que algo de semelhante ocorrerá com o autocolante que, colado verticalmente na capa, nos informa sobre autor e título, e cujos bordos tenderão a descolar. Assim como um dia a linha grossa que tudo reúne e força a reunir, se soltará numa das pontas e depois por aí fora. Não importa. Não há, aliás, razão para que um livro não envelheça, sendo essa a lei geral que nos governa. O que não envelhece, contudo, nem se degrada, é a sensação inicial de pôr a vista e as mãos neste livro, que tem o dom de relançar a experiência adormecida do livro, neste nosso tempo saturado de livros. Uma experiência de artesanato pós-industrial ao serviço de uma lição ilustrada de história e resistência dos materiais à sua tradução em Ideia e, ao mesmo tempo, à forma como essa ideia (de livro) não se confina ou esgota em qualquer concreção material.