A fotografia, uma arte com cadastro, por Roberto Franco

Entre 1998 e 2001 o site Ciberkiosk, fundado e produzido em Coimbra – arduamente, dada a inexistência do que viriam a ser depois os templates, que permitem hoje dar por adquiridos uma série de requisitos que então tinham de ser gerados para cada texto e número do site-jornal -, mas com colaboradores por todo o país e, depois, pelo estrangeiro, com destaque para Espanha e Brasil, foi uma experiência inesquecível naquilo que era então o continente ainda misterioso da hiper-mediação proposta pelo mundo digital. O Ciberkiosk, ou simplesmente Kiosk para os mais próximos, aproximou gente de várias latitudes geográficas e intelectuais e marcou brevemente essa época em que o digital parecia apenas acrescentar possibilidades, coisa que entretanto percebemos não ser exata, já que a ecologia do digital se revelou também altamente destrutiva, como sucede com todas as revoluções. Na fase inicial do Ciberkiosk, quando os colaboradores ainda eram em número reduzido, assinei alguns textos com pseudónimos, distribuindo-os por várias disciplinas. Recupero aqui um desses textos, sobre fotografia, assinado por Roberto Franco (nome inspirado em Robert Frank, que uma tarde vi, incrédulo, na Rua Ferreira Borges, no contexto dos Encontros de Fotografia de então), no nº 1 do Ciberkiosk, de março de 1998.


1. No Porto, e após um longo folhetim «camiliano», o Centro Nacional de Fotografia estreou as suas actividades com duas exposições no edifício da antiga Cadeia da Relação, local que a partir de agora albergará regularmente as exposições promovidas pelo Centro.

O edifício da Cadeia da Relação é, como se sabe, um espaço mítico. Todas as cadeias o são, pelo que pressupõem da suspensão do tempo de que se faz o mito. A cadeia é a redoma em que a cidade preserva o inominável, preservando-se a si mesma (ou julgando fazê-lo) nesse gesto. Mas a cadeia é também um poderoso dispositivo hermenêutico das sociedades com que convive. Ela dá-nos a ler a historicidade da moral e dos valores, o relativismo da justiça e a naturalização da crueldade. De certo e inadmissível modo, necessitamos dela para nos conhecermos enquanto animais morais, sociais e políticos. Como se vê na regressão global do pensamento judicial contemporâneo em matéria prisional, nela se concentram o nosso optimismo ou, hoje, o nosso cepticismo sobre nada mais nada menos do que a natureza humana. A cadeia é, pois, o nosso mais impiedoso photomaton: ela fala por nós.

2. Exteriormente, o edifício da Cadeia inclui-se na categoria estética do «imponente»: uma mole granítica, gélida e inabitável. Arquitectonicamente, um elogio da simplicidade racional das formas, pese embora à pontual ornamentação barroca dos frontões. E no entanto, este foi um edifício longamente habitado e apropriado pelos seus habitantes para as suas (im)possíveis formas de vida: no século XVIII e início do XIX, era frequente os reclusos fazerem fogueiras nas celas, o que aliás viria a acelerar a degradação do edifício. [E eis aqui um primeiro tópico de reflexão moral: o que vem primeiro para o cidadão que a revisita em cultuação do património: o tornar o edifício habitável à força de fogueiras, ou a sua preservação que àquelas deveria interditar? De que lado está o visitante, que tipicamente se indigna com o que textos de catálogo lhe contam do lugar, mas aprecia a qualidade do restauro de um edifício «que faz falta à cidade», ou seja, à sua vida cultural? Ou seja: em que medida, e até que ponto, o discurso da Cultura – ou, neste caso, do logos fotográfico -, admite a incomensurabilidade de corpos poluídos (pela historicidade) e poluentes (da a-historicidade patrimonial)?]

O inabitável: demoremo-nos um pouco sobre esta categoria da existência, ou melhor, do existir. Como pensar o inabitável? Ou antes: como admiti-lo ao pensamento sem que este o reduza a conceito, subtraindo-o ao infra-mundo opaco e violento do seu estar aí? O inabitável: local (?) de in-diferença entre ser e não-ser, entre ser e estar, entre o mundo e a sua ausência, entre justiça e injustiça, enfim, entre vida e não-vida.

Como, então, habitar o inabitável? Como redimir o irredimível? Por exemplo, (d)escrevendo-o em literatura. Camilo fê-lo, como é sabido, resgatando-o romanesca e românticamente. Ou ainda – e essa parece ser a nossa resposta, habitantes deste fim-de-século – fazendo-o habitar pela Arte. Habitado por ela, o inabitável devém uma boa definição para a mesma Arte, a qual, ao longo deste século, não perseguiu outro ideal que não o de uma experiência justamente inabitável. Despojadas de tudo, à excepção das fotografias em escala monumental dos rostos dos seus ex-habitantes (na exposição Murmúrios do Tempo), as paredes graníticas e claustrais da Cadeia da Relação dão-nos a ver a operação fenomenológica mais típica do modernismo, a qual, aplicada aos objectos artísticos, os reduz a pura forma. A Cadeia, reduzida às paredes, de um granito sem ornamentação, é um bom exemplo de anacrónica arquitectura modernista, o qual se conjuga, com rara felicidade, com essas reproduções fotográficas cujo efeito de escala ostenta a neutralidade de rostos aos quais foi imposta a lição da forma, seja ela a da instituição carcerária, seja ela a da «desumanização» modernista. Trata-se, como diria Ortega, não de gostar ou desgostar, mas de perceber ou não. Estamos, pois, em território brechtiano: uma representação impassível que pede reacção intelectual (nos termos da arte contemporânea, diríamos tratar-se de uma exposição de arte conceptual).

Acrescente-se o didactismo a que, num claro recuo em relação a este «programa» épico, os textos que acompanham a secção da exposição que faz a história do edifício dão voz, buscando, pelas veredas supostamente neutras da descrição foucaldiana do sistema carcerário, persuadir o espectador do horror da casa e da sociedade envolvente, por meio daquilo a que, à falta de melhor, chamaríamos a retórica (ou moralismo) da indignação. É bem verdade que custa muito ser-se um brechtiano intransigente, ainda quando, dentro dos protocolos do comissário de arte moderna ou contemporânea, se busque produzir uma Dokumenta…

3. Seria talvez altura de recorrer à vulgata benjaminiana, naquele ponto em que ela nos diz como todo o documento de civilização é também um documento de barbárie. A questão é (pesadamente) ética e tem a ver com o potencial des-realizador da obra de arte. Ou melhor, da instituição que a precede e a supõe. Se a Cadeia é Museu, e se o é num regime de abstinência formal compaginável com os grandes paradigmas do museu modernista – o MOMA, por exemplo -, os quais aliás ultrapassa em ascese, então estas (as dos presidiários) são fotos de modelos (e foto de modelo) dotadas de uma pré-destinação artística – revelada esta a posteriori, como sempre sucede, pela decisão que as emoldura na distância necessária ao efeito aurático.

No catálogo que acompanha a exposição, Maria do Carmo Serén enfatiza o facto de que, «Ao despojar as imagens de delinquentes a haver de uma simbólica real ou emprestada, a fotografia retirou-lhes a voz que se podia fazer ouvir através da decoração» (p. 54). Seria caso para contrapor que, ao expô-las na cadeia-museu, dando-lhes aliás, pela monumentalidade da escala, a imponência silenciadora com que o museu cultua a obra de arte – trate-se de um David ou dos detritos da arte povera (e estamos aqui bem mais próximos do primeiro) -, o Centro Nacional de Fotografia recupera para estas fotos aquele simbólico, ou código social, que, segundo a mesma autora, a fotografia exige para falar (cf. p. 8). Passa-se isto, não será nunca de mais recordá-lo, num edifício que, nascido com uma função de reciclagem social (gerir os «desperdícios» do sistema), renasce agora como museu, ou seja, como o mais formidável dispositivo de reciclagem engendrado pelos dois últimos séculos, mas sobretudo pelo nosso. Por um efeito de decreto-lei (chamemos-lhe duchampiano), esta cadeia dá-nos agora, não a tranquilidade distante de a sabermos existente, mas a intranquilidade próxima, e quão «habitável», da arte em que ela recicla (e com que ela recicla) a sua memória inabitável. Ela é, pois, parte de um processo mais global a que vimos assistindo de museificação do mundo e da memória, verifique-se ele na materialidade bruta do granito das paredes da Cadeia da Relação ou na imaterialidade pura de um CD ROM. Aliás, esta cadeia recodificada em museu de fotografia é já um CD ROM virtual: falta apenas realizá-lo informaticamente. Não lhe faltam mais-valias: galerias, percursos, labirintos, saturação memorial, presentificação das origens.

Esta cadeia, enfim, dá-nos arte, começando por uma peculiar «arte da memória». Que esta seja simultaneamente uma «memória da arte», eis o que não é decerto despiciendo. Pois estas fotos são também uma reivindicação genealógica, ou fundacional, da parte de uma instituição que, como todas, dela necessita para se legitimar. Lembremos que se trata do Centro Nacional de Fotografia, o mesmo é dizer, de uma colecção e/ou museu da fotografia lusa. Ora, como sucede com todas as artes emergentes ou pobres – pensemos, por comodidade de exemplo, nas literaturas pós-coloniais -, a magreza do espólio exige uma canonização retroactiva, o mais «anexadora» possível. Trata-se pois, embora a coberto de uma demonstração das virtualidades supostamente críticas da «hermenêutica da suspeita», de reivindicar um corpus, impondo-lhe o código social do artístico. Que no catálogo os nomes dos prisioneiros tenham sido apagados, num gesto ético e político destinado a resgatar a anonímia imposta pelo sistema carcerário em favor do irredutível humano (esse inominável) – é o que se afigura, pelo menos, equívoco. Pois na verdade, tal gesto reforça a apropriação destes rostos e destes corpos pelo inominável artístico, o qual, como se sabe, procede por uma neutralização das singularidades do existente em favor da universalidade das representações.

Voltamos, neste ponto, ao já apontado cunho conceptual do empreendimento: toda a exposição, na sua serialidade «branca», como na sua «neutralidade» representacional, é um enunciado metadiscursivo cujo objecto poderia ser designado como sendo «a fotografia e a questão da reprodutibilidade técnica». Os painéis em que, em tamanho bastante mais reduzido, se justapõem séries de fotos, não deixam de evocar o serialismo de Warhol, lido embora na óptica ascética do minimalismo. E toda a exposição é uma celebração da reprodutibilidade como triunfo total da representação sobre o representado. Aonde supostamente se encontraria um resgate das trevas da história, o Museu diz-nos antes, numa tão epocal crítica ou desconstrução da ilusão mimética, do triunfo da re-presentação, a qual relega o objecto representado para um a posteriori insituável. Vegetando nessa no mans land, o recluso não vem até nós, como nos fora prometido: em vez dele, chega-nos a mensagem da ontologia da arte (fotográfica), que o recluso, e sobretudo a reclusão, afinal servem.

4. O percurso pela exposição, que o mesmo é dizer: pelo edifício, revela-se algo inóspito. Não só porque num pátio interior a chuva caia como lá fora, no que é um efeito de realidade aproximável da força deíctica da arte pobre, ou por, como sucede com a arte conceptual, não ter aqui o espectador um reduto, ainda que mínimo, em que reencontre a corporeidade impura da experiência do mundo. Mas talvez sobretudo porque este edifício reconfigurado em galeria de arte nos vá sugerindo a que ponto são as grandes ideologias estéticas do modernismo inabitáveis. É aqui, quer-nos parecer, que os relógios do museu e das «obras» que expõe se revelam dessincronizados, a bem de uma mútua e radical sincronização. Pois estas são obras que, pela redução do seu «objecto» a isso mesmo – um objecto decomponível e apreensível em perspectivas tão básicas quanto fenomenologicamente englobantes (frontal e lateral) -, o elevam, mortificando-o, à categoria de entidade transcendental intencionada pela consciência do fotógrafo ou sujeito desta relação epistémica. Não é só o fotógrafo que, quanto mais anónimo, mais se configura aqui como um verdadeiro e cartesiano herói da modernidade; é a própria fotografia que nos dá a ver a sua crença ilimitada na sua capacidade de esvaziar o real de qualquer resquício de realidade, assim revelando o seu vezo e vício metafísicos.

Na sua obra de 1890, La photographie judiciaire, Alphonse Bertillon afirma, digamos que a este propósito, que «sauf exception, l’objectif ne saurait mentir» (apud Du bom usage de la photographie, Photopoche, 1987, p. 95). Para o (não) fazer, contudo, ela necessita de alguma ajuda (e de muitos truques, uns mais «mentirosos» do que outros): uma iluminação uniforme e totalmente homogénea, a completa imobilização do modelo, de forma a obter uma pose que reproduza «a imagem mental e ideal» (p. 94) do indivíduo fotografado. Finalmente, ela implica a adopção de um certo ângulo no qual se diz o eidos: o perfil. Como nos diz Bertillon, «É o perfil de linhas precisas que dá a individualidade fixa de cada figura. A silhueta permite-nos medir os altos e baixos da figura humana de que a face oferece apenas uma projecção» (p. 99, itálico meu). O perfil é o lugar da resistência à temporalidade, pois «as transformações incidem apenas sobre as aparências da face sem modificar em nada o perfil» (id.). De perfil (ou no perfil), o homem não é ser para a morte: é sim a morte como transparência gráfica do ser. O perfil, «fotografia abrupta» (p. 102), é um «corte anatómico» (id.): é o corpo enquanto entidade discreta, fenomenologicamente distinta e por isso «indexável». É o homem enquanto cadastrado, na medida em que todo o perfil é cadastro. A fotografia judiciária não é pois um uso desviante dessa arte moderna: ela diz-nos, muito pelo contrário, como toda a fotografia é uma arte do cadastro.

É, assim, no mínimo discutível que, como pretende Teresa Siza na «Introdução» ao catálogo, «Todo este processo de exclusão tenha sido armadilhado pela prática dos fotógrafos, que defendiam já a especificidade estética e produzida da fotografia, e tinham transferido para os seus cenários os signos de poder, riqueza e a sugestão que a pintura acumulara na sua longa história de reconstituição pela simbólica» (p. 3). Se há uma fotografia apta a despertar-nos para a evidência, nunca aliás resolvida em sede teórica, da sua especificidade ontológica, ela não é a dos filhos e netos de Nadar, mas antes esta com que nos confrontamos nas paredes da Cadeia da Relação. A qual, diga-se, não parece carecer de simbólica, a não ser que entendamos que a Joana d’Arc de Dreyer dela também careça, na sua nudez facial e contextual. Esta fotografia é tão mais radicalmente simbólica na sua assimbolia, a qual nos dá todas as reificações do humanismo e da metafísica: o Homem, a Natureza Humana, o Ser (e o ser para a morte), enfim, o Espírito. De tudo o que ela nos dá, o corpo é justamente o que não consta, mortificado que foi e diluído num processo de indexação numérica, que é também um processo de colecção fotográfica. Assim, em vez de um corpo que, na exibição da sua mundanidade impura, contestasse o império desta Razão fotográfica, fica-nos apenas o olhar desalmado destes espectros que se despediram já do mundo, passando agora a existir apenas no (seu) negativo. Eis o que nos simboliza o advento da técnica de presentificação (ou de representação) desse Espírito cuja fenomenologia histórica a modernidade colocou sob a égide do progresso técnico, numa dialéctica cujo devir, como com todos os processos históricos sucede, só pode ser mortal.

Este relógio «moderno» das obras expostas, que ao sê-lo deveras o devêm, manifesta, à primeira vista, uma dessincronização com o do museu a que se acolhem, o qual, edificando-se sobre um edifício histórico, dir-se-ia desejar recuperar com ele, ou por ele, a historicidade das representações fotográficas, a começar pelas dos seus próprios habitantes. Em vez da incorpórea Razão moderna, a fuligem e os detritos da História; em vez da alquimia da arte, o retorno do recalcado (antes de mais, por essa mesma arte); enfim, em vez do Museu, a recontextualização do património, num gesto de vasto alcance no domínio da política cultural: lutar contra a amnésia crescente, reintegrando o património no fluxo contemporâneo das práticas artísticas e discursivas, questionando-o e apelando à interrogação crítica do cidadão sobre o passado da cidade. Ou seja: um museu pós-moderno para um objecto tipicamente moderno, a fotografia.

Existe, porém, alguma diferença entre um edifício histórico e um edifício restaurado. Como é visível no caso da Cadeia, essa diferença redunda num efeito de hiper-realismo, ou de trompe loeil, directamente proporcional ao esforço para pôr em evidência a estrutura mesma do edifício, despojado de lixo e ornamentações espúrias. As portas de vidro acrescentadas apenas reforçam a evidência da nudez dos materiais, sejam eles o granito ou as barras de ferro (elas são o signo visível do «olho invisível» da fotografia clássica). E por fim este edifício, que se queria recuperado no seu peso memorial, sucumbe ao International Style que é a convenção arquitectónica universal da instituição museológica, apresentando-se-nos tão clean quanto cool. Os relógios do museu e das obras expostas sincronizam-se afinal no tempo acrónico daquilo a que chamamos Arte, denominação que, com excessiva frequência, acorre às páginas do catálogo. Dir-se-ia, pois, que se as ideologias do modernismo se revelam pouco habitáveis, ainda assim, e como neste caso sucede, elas compensam da inabitabilidade histórica do edifício, na medida em que dela dão uma versão suspendida no valor de eternidade da obra de arte. Esta, transcendendo o tempo, vale dizer: a memória dos lugares, redime-os, redimindo no mesmo passo o Museu da sua má consciência espacial (e o que é esta exposição senão uma consequência dela?). Instala-o, pois, na forma espacial modernista, a qual, no seu espacejamento, acaba por reificar a memória em artefactos, ou fotos, expostos à contemplação pública.

5. Continuando o seu percurso, o visitante depara-se com uma segunda exposição, esta de Jorge Molder, intitulada «Anatomia & Boxe». A exposição, espalhada por várias salas, abarca cerca de 40 fotografias, em reproduções de grande dimensão. O objecto reproduzido é sempre o mesmo: o rosto, e por vezes parte do corpo, do fotógrafo, encenando diversamente o seu auto-retrato.

Passámos, pois, dos retratos de reclusos para o auto-retrato do fotógrafo. Continuamos todavia face a um homólogo programa de mortificação dos corpos, mais assumidamente platónico no caso de Molder. E, ponto importante, continuamos ainda no estúdio fotográfico, o qual, na obra de Molder, sempre se mostrou disponível a assumir-se como reencarnação da caverna platónica. Nesse sentido, a obra de Molder, desde o inicial «Um Dia Cinzento», parece-nos pedir para moto a frase de abertura de On Phtography, de Susan Sontag: «Humankind lingers unregenerately in Plato’s cave, still reveling, its age-old habit, in mere images of the truth».

Mais uma vez, é o que sucede nesta exposição, cujas fotos, no duro fazer do preto e branco, encenam o rosto (o ser, a imagem) como aquilo que emerge das trevas do não-ser, num vir ao mundo sempre violento e precário. Daí toda a ambiguidade irónica da «Anatomia» do título: de facto, esta é uma anatomia do espírito, ou da alma, em processo de evasão de um corpo no qual apenas se deteve provisoriamente – restando saber se apenas no espaço infinitesimal do registo fotográfico, ou se num processo de que a fotografia regista o momento fúnebre. Ou ainda, se se quiser, uma anatomia do corpo como encenação (fotográfica) de uma alma só apreensível nele e na sua encenação escatológica. Esta não é pois uma fotografia empenhada no registo comportamental do sujeito ou na sua circunstância; a sua meta é mais alta – é uma meta-física.

É certo que esta exposição não nos parece abrir novas veredas na obra do autor. Ela representa antes o culminar de todo um caminho que vem reduzindo a sua prática fotográfica ao enfrentamento da sua situação ontológica: o fotógrafo, a câmara (e o enquadramento), o objecto. E, de certo modo, ao «reduzir» o objecto ao sujeito do processo fotográfico, ela vem afirmando a irrisão do objecto fotográfico, ou, se se quiser, a sua equipolência com qualquer outro, venha ele a ser, em solução de «recurso», o próprio fotógrafo, sem o qual, pelos vistos, não pode haver fotografia. Por outro lado, esta exposição é uma afirmação feliz de minimalismo: não só porque dispensa toda a contribuição exterior à do fotógrafo, mas ainda porque toda a obra anterior do autor parece estar contida nestas fotos, as quais a absorvem e, a um tempo, esgotam. Daí, decerto, o caleidoscópio de soluções «anatómicas» que nela nos é proposto, funcione ele embora dentro do mesmo registo metafísico.

6. Na verdade, este indivíduo que todas as fotografias nos devolvem impecavelmente vestido de fato e gravata, não é sempre o mesmo. Regressando à frase de Sontag, eis-nos perante as múltiplas e meras «imagens da verdade» que o estúdio-caverna nos disponibiliza a título de revelação. Seguindo a sintaxe não linear da exposição, dir-se-ia que nos deparamos com o «moribundo», o «morto», o «ressuscitado», o «humilhado», o «extático», o «interrogativo», o «visitado», o «inumano», o «encenador», o «inquiridor».

De uma foto inicial em que sujeito e fotografia são atravessados pela luz crua do holofote da revelação, até a uma foto final em que o rosto, mal emergindo das trevas, compõe um ricto ameaçador, sugerindo-se como Drácula desta busca da verdade (ou da sua imagem), a física (a encenação) desta metafísica é contudo por demais evidente. Trata-se, em bom rigor, de teatro, termo que aliás explicitamente encontramos no glossário que acompanha o catálogo da exposição. Chamemos-lhe teatro do ser, na consciência porém de que se trata simultaneamente de desvendar o ser do teatro, nesta sua modalidade particular a que damos o nome algo vacilante de fotografia. Vimos já como este teatro abunda em personagens. Mas acrescentemos-lhe outras, regressando para tal da metafísica à corporeidade da ficção literária. Provavelmente, a todas elas poderíamos chamar K., dado o anonimato do trajo, a abstracção situacional e a ominosidade inexplicada. A algumas cabe o nome de Borges, ou mais remotamente de Homero, enquanto homens que no sono e na cegueira escutam. A outras, Pessoa, definido por Herberto Helder: «O actor põe e tira a cabeça/ de búfalo./ De veado./ De rinoceronte». E acrescente-se ainda o fotógrafo, encenador-mor, e o já referido Drácula.

Digamos que este teatro oscila entre o teatro do absurdo (versão Beckett) e um teatro da humilhação, um e outro contaminados por uma escatologia mais do que pontualmente cristã. O seu roteiro, o mais adequado a este universo de reclusão conventual, poderia encontrar-se em São João da Cruz ou em Santa Teresa. Pois trata-se de moradas e de noite obscura – ou desta como a única morada. Com uma significativa ressalva, todavia: é que se trata, justamente, da encenação desse teatro, ou melhor, dessa escatologia, como sendo o irredutível fotográfico. A primeira e última fotos, com o sujeito abismado (mas sem espanto) na contemplação do seu duplo, são o comentário e mise en abyme do que se vai seguir. Assim, entre a noite obscura do estúdio e a do ser não há aqui uma relação simbólica ou mimética: ela é antes de natureza tautológica, dando-nos a ver a materialidade da encenação na imaterialidade da metafísica.

É aqui que estas fotos vão destilando uma certa ironia transcendental. Pois o fotógrafo, que aliás se arroga o direito de se apresentar como o objecto único da sua câmara, não deixa de se ir configurando à imagem de um produtor dos que fizeram a glória do studio system em Hollywood (um Zanuck, digamos). De facto, esta fotografia é, em toda a sua extensão, o studio system; como ele, convive estreitamente com o star system, aqui à primeira vista traduzido como complexo narcísico. É certo que a estrela se apresenta anódina e pardacenta de trajos ou signos distintivos. Mas ainda assim, convirá não esquecer que esta é a distinção «clássica» do burguês, enquanto espírito do mundo moderno. O mesmo é dizer: enquanto seu demiurgo.

Ora, o que caracteriza o demiurgo é justamente a ausência de individuação que é o cerne do «programa» desta exposição. O trabalho do demiurgo é ostensivamente posto a nu na secção em que a personagem do fotógrafo, ao proteger-se da violência da câmara, colocando as mãos à frente do rosto numa simulação de boxe, ao mesmo tempo nos dá o enquadramento, isto é, o seu poder e violência sobre o mundo. Toda essa secção parece ser «comentada» pela extraordinária foto em que o fotógrafo nos contempla com o rosto enquadrado a 3/4, o braço direito cruzado sobre o esquerdo, a mão esquerda tapando o olho direito, enquadrando e dando a ver o jogo fotográfico. O demiurgo não anda aqui longe do dândi, essa outra figuração «transcendental» do burguês; mas, mais proximamente, di-lo-íamos um clown fatigado e algo patético na visibilidade dos seus truques.

7. Será necessário insistir no carácter metadiscursivo de «Anatomia & Boxe»? Demoremo-nos, para tal, um pouco sobre a questão do enquadramento desta (e nesta) exposição. Diversamente do que nas salas da Cadeia da Relação acontece, o catálogo acrescenta às fotos um «Breve Glossário» que, em ordem não alfabética, nos esclarece sobre os significados literais e figurados de «Luta», «Ring», «Teatro», «Sono», «Dissecar», «Brilhar», «Agonia», «Inerte», «Derrota», Ilusão», etc. Os dois últimos termos são «Glossário» – «Livro ou vocabulário em que se explicam palavras obscuras. Por ext. Dicionário de termos técnicos, poéticos, etc., fora do comum» – e «Breve».

Este glossário é, pois, um metatexto que nos ensina a ler o que se segue, ensinando também o seu próprio significado. Uma tal circularidade é em extremo coincidente com uma exposição em que o fotógrafo se fotografa a si mesmo, dissecando-se por meio de uma obsessiva luta com a câmara. Uma tal circularidade, enfim, reforçada pelas primeira e última fotos, ambas auto-reflexivas, dá-nos o fechamento da obra, análogo perfeito do fechamento do estúdio ou ainda da geometria implacável do enquadramento. De facto, este não hesita em seccionar o objecto enquadrado (o que mais notavelmente ocorre nos grandes planos do rosto), ou em forçá-lo a uma acomodação não raro humilhante aos seus desígnios inquiridores.

O glossário, criatura livresca, comanda a transformação da exposição em livro, forma derradeira e mais que perfeita da obra auto-suficiente. Eis o que é um gesto institucional, antes de ser mais uma das muitas cedências na obra de Molder ao imaginário do livro, ou, noutra formulação, da literatura. Diga-se aliás, a propósito desta, que não parece cobrar especial pertinência a declarada intenção de homenagem dialogante ao Photomaton & Vox, de Herberto Helder. «Caminhamos para fora da cultura», diz Herberto nesse livro. Bem ao contrário, Molder é um criador enclausurado na cultura, a começar, e a acabar, na fotográfica. Mas busquemos uma outra linha de aproximação, centrada agora no livro:

«O livro. Eu mesmo fecho o espaço. As massas de silêncio sobrepõem-se; as mais pesadas descem e as mais leves tornam-se pesadas, até o silêncio ser indestrutível. É fascinante, debaixo de uma luz que me veda a toda a volta. Lá fora ferve a terra das criaturas que se aproximam umas das outras, se tocam e falam. Depois chega o verão, uma intensidade nova: os aromas, os aros luminosos, uma agudeza, uma instransigência das coisas, a forma das cores que me fortalecem. E uma noite começo a escrever. Tenho uma memória. Nada foi esquecido, vem adequado agora aos vindicativos sentidos da expressão e da representação. E assim caminho para o esgotamento, no centro da fecundidade. As pessoas perdem o nome, as coisas limpam-se, cessa a fuga do espaço e o movimento dispersivo do tempo. Fica um núcleo cerrado. Fico eu» (p. 38, 1ª ed.).

Caminhar para o esgotamento, no centro da fecundidade, poderia ser um enunciado descritivo de «Anatomia & Boxe». Mais ainda se esse caminho, «debaixo de uma luz que … veda a toda a volta», se depara por fim com o núcleo cerrado do seu sujeito. Com uma significativa diferença, porém: enquanto em Helder «Nada foi esquecido, vem adequado agora aos vindicativos sentidos da expressão e da representação», em Molder o sujeito busca desesperadamente o reencontro com a sua reminiscência, activando para tal uma estratégia representativa que na sua redução abrupta nos diz toda a extensão do seu falhanço. A reminiscência, ou alma, ou ideia, só parece ser capturável em Molder enquanto encenação por demais visível daquele «engano dos sentidos ou da mente» que no Glossário define o termo «Ilusão». Ela comparece na sua pura negatividade, enquanto irrepresentável, ou sublime, activado por uma metafísica de cenário de papelão. O Livro, enfim, daria a necessária consistência material a esta démarche, na medida em que a compacta e encaderna numa mise en abyme infindável que nos dá a um tempo a ilusão, ou engano, e a ilusão da metafísica.

Nesse sentido, talvez a verdadeira remissão a estabelecer para com Photomaton & Vox resida no quadro de Magritte reproduzido na capa da primeira edição da obra, no qual um indivíduo, de costas e de fato preto, se vê a um espelho que o reproduz igualmente de costas. Complexo narcísico e metafísica de algibeira, como sempre em Magritte, cena mínima e encenação máxima, depuração formalista e ironia transcendental, inescrutabilidade e mise en abyme: onde encontrar um melhor comentário para «Anatomia & Boxe»?

8. Dos retratos de «Murmúrios do Tempo» aos auto-retratos de «Anatomia & Boxe», de um fim-de-século a outro, eis-nos perante uma fotografia a diversos títulos institucional. Vimos já como a primeira, dando-nos a cena primitiva da Razão fotográfica, acaba reconduzida, nas paredes da Cadeia, à cena modernista por excelência, na qual a obra se reduz e confunde com a determinação da sua essência ou forma, ponto em que coincide com a própria razão museológica. A segunda, num outro extremo do tempo, consiste em toda uma encenação da própria cena primitiva da fotografia, a qual nos dá o fotógrafo como oficiante dum ritual paródico exigindo-lhe a consumpção do corpo para que o espírito da fotografia se possa, ainda que fugidiamente, manifestar.

As fotos dos reclusos dão-nos a ver a fotografia em toda a inocência da sua crença iluminista no triunfo da razão por sobre as empiricidades do mundo; elas são a fotografia como «olho invisível», metáfora fundante de toda a ciência moderna. As fotos de Molder revelam-nos o carácter instrumental da razão fotográfica, buscando, como em duas fotos situadas a meio da exposição, deslocá-la ou desfocá-la, de modo a evidenciar o seu carácter simultaneamente mecânico e desvanecedor. Talvez por essa razão, enquanto os corpos dos reclusos sofrem o efeito de uma uniformização representacional que os agrega e dilui sobre o fundo neutro, tornando-os um produto unidimensional e epifenoménico do enquadramento, o corpo das personagens de Molder, ainda que lívido e agredido pela luz, possui o peso ontológico de uma silenciosa estatuária de mármore, evidenciando o enquadramento e evidenciando-se nele por um efeito de quase estranhamento.

Ambas são, pois, exposições demonstrativas, de todo impensáveis sem o discurso (e a instituição) que as envolve. O serem cada uma a melhor leitura da outra, não se deve apenas ao carácter moderno da primeira e pós-moderno da segunda, mas talvez ao facto de serem ambas filhas naturais de um Centro Nacional de Fotografia. Ambas acreditam, ao seu diverso modo, na ontologia da imagem fotográfica, sem a qual (ou sem cuja crença) um Centro destes não poderia (ou não deveria?) existir. A descontextualização de que ambas as colecções de fotos sofrem, ou vivem, é bem o signo dessa concentração no seu irredutível ontológico. Dir-se-ia, entretanto, que Molder, encenando-se e dando-se à avidez do público, se vai rindo em surdina de tal exigência prévia. Rindo ou não, porém, fá-lo de fato e gravata, numa encenação demasiado séria, e num local de grave memória, para nos podermos rir nós inteiramente da questão. Porque aquilo de que Molder nos fala é do devir enclausurado, no palácio da Arte, da (aos seus inícios) tão banal fotografia.

Tem pois a exposição de Molder muito por onde extrair lições conclusivas. Porque se o cadastro prisional pode ser recuperado como arte fundadora, sendo como toda a arte questão de discurso e de mundo, o boxe de Molder confessa-se limitado ao ring oferecido pelos mundos do discurso histórico da fotografia: e é, nisso, um boxe indolor (uma modalidade do tão epocal Jailhouse Blues). É uma admissão de envelhecimento precoce (ou súbito) de uma arte recente, no que segue o destino, embora não pelas mesmas vias, das artes do século (o cinema, o jazz ou a BD). E é uma arte envelhecida por se desejar adulta, o mesmo é dizer, legitimada lá onde todas as artes recentes se sonham: no ambiente rarefeito do artístico. Dir-se-ia que ela não faz mais do que seguir o rumo pós-moderno das representações fotográficas mais auto-centradas (como é fatal) no seu sujeito e tema; e que entre Molder e Cindy Sherman a diferença reside na física da segunda e na metafísica do primeiro. Ou melhor, na gravidade europeia do primeiro e na ligeireza americana da segunda. Ambos são porém fruto da mesma destinação artística, a qual vive já do mecenato institucional sem o qual não são pensáveis.

Mais localmente, Molder participa do processo de nulificação referencial da fotografia portuguesa contemporânea, a qual, passada a «década doirada» de 50, não cessou de se despedir do mundo da «banalidade» quotidiana. Nada como observar, a este propósito, o percurso de Gérard Castello-Lopes, transformado, na última década, num epígono dos nossos fotógrafos de 80. Ou o devir, entre o melancólico e o metafísico debole, de fotógrafos antes promissores como Paolo Nozolino, integrados na mais global errância esteticista da foto e da cultura portuguesa contemporâneas (dê-se ainda como exemplo a paisagística decorativa de José Afonso Furtado, a qual desempenha hoje, para os salões da burguesia, a mesma função da foto pictorial de há um século, adquirida entretanto, como o evidencia o seu despojamento de gente e referências, a gramática da impessoalidade modernista, relida pelo sublime decorativo pós-moderno).

Como vimos, a arte do cadastro de Murmúrios do Tempo é-nos exibida, nas paredes frias da Cadeia, dentro de uma escatologia que nos propõe uma redenção pela Arte. Contudo, esta redenção – do sofrimento, do existente, do inabitável – acaba por se defrontar com a suficiência modernista de uma Arte por definição auto-redimida na sua celebração dos limites da forma: isto é, acaba por se defrontar com o trabalho do Komissário, esse herói vanguardista da arte contemporânea. Ainda assim, e talvez pela sua origem desviada, estas fotos não podem deixar de nos evocar a ontologia desviante da fotografia, enquanto banal operação de registo das evidências mortificantes de um real que ela mesma se encarregará de mortificar na sua constitutiva celebração da ausência. De modo já bem diverso, Jorge Molder propõe-nos a anatomia (ou o espectáculo) de toda a tentativa daquilo a que Kracauer, a propósito do cinema, chamou a redenção da realidade física. Digamos que ele sabe qual o destino das ilusões da Física Fotográfica que comandava o trabalho dos fotógrafos carcerários. Este mais saber, que é a sua marca, ou a sua posição transcendental, ganha nele o perfil de um cadastro de arte, o qual não o afasta muito dos esforços iniciais, ainda que ingénuos, de Nadar & Co. Em bom rigor, a sua fotografia, que visivelmente se pensa como um combate contra os seus demónios (do fotógrafo, i.e., da fotografia), não é senão a longa e nunca acabada enunciação de uma cedência ao mais aprisionador dos demónios fotográficos: o da Arte.

Ciberkiosk, nº 1, 1998