Quando o texto é mais extenso e o espaço o permite, reconhece-se uma chuva oblíqua de qq, pp, ff e gg alongados, sobretudo se a escrita recorre à caneta de tinta permanente, que parece libertar um ímpeto esvoaçante. Quando a margem é mais apertada, as abreviações dominam, o tamanho da letra encolhe, a mensagem triunfa sobre o meio, que perde autonomia e afirmação. O recurso, mais tardio, a esferográfica, concorre ainda mais para esse efeito. Já o recurso ao lápis situa-se num ponto intermédio, em termos de investimento caligráfico.
O objeto-livro, cuja veneração nos foi transmitida na escola, é aqui desrespeitado de forma ostensiva, já que o grau máximo de intervenção, ainda dentro dessa pedagogia escolar do livro, não é o lápis – por definição eliminável –, mas a caneta, que de facto se configura como um mínimo da relação com o objeto. O livro, tal como a biblioteca de Eduardo Lourenço revela, existe para ser intervencionado, desde o sublinhado até à anotação, mais ou menos ostensiva – e isso seria a sua maneira de respeitar o labor que em cada livro se manifesta. Lourenço lê escrevendo, fazendo proliferar notas que são, em boa verdade, o ficheiro que seguramente nunca teve. Num texto famoso, com o título “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira” (1980), o intelectual brasileiro Haroldo de Campos refere o labor dos “novos bárbaros” latino-americanos, esses intelectuais que devoram a Razão ocidental e a (res)sintetizam, descrevendo-os nos seguintes termos: “São bárbaros alexandrinos, aprovisionados de bibliotecas caóticas e de fichários labirínticos”. Descontando o “bárbaro” que o europeísta Lourenço nunca foi, não custa reconhecer nele o perfil alexandrino do sábio sumido na sua biblioteca caótica e nos seus ficheiros labirínticos, ficheiros que num certo sentido nunca descolam nem da biblioteca nem do caos produtivo que ela gera: tudo se passa dentro dos livros, nessa atividade de “lecto-escrita” (cito o grande pensador da situação tardia do livro que é Fernando Rodríguez de la Flor) que, para utilizar uma imagem de alguém próximo, Carlos de Oliveira, se expande como uma maranha da qual Lourenço nunca desejou sair.
Ainda assim, é indispensável produzir um distinguo, fazendo justiça à relação entre a “escrita privada” de Lourenço e a escrita pública dos seus artigos e livros. A marginália de Lourenço surpreende, por vezes, pela sua agressiva franqueza, que é a franqueza de quem fala consigo mesmo no silêncio dos livros e da biblioteca, sem (ou com um mínimo de) superego. Com raras exceções, esse teor de agressividade não transborda para a sua escrita pública, não pondo assim em causa a imagem cordial de um intelectual que soube ser polémico sem ser quase nunca deselegante ou gratuitamente violento. Não se trata, em rigor, de uma imagem apenas, mas antes de uma ética, que quem privou com Lourenço reconhece, desde logo na diferença entre o humor em privado e a gravitas da sua pessoa pública. Essa franqueza agressiva da marginália não passa para o espaço público, pois o que passa é aquilo que o filtro da ética intelectual de Lourenço admite, enquanto saldo de um combate de pensamento que é muitas vezes também um combate pela História. Convirá, pois, agora que podemos entrever a cena agonística de um grande intelectual no seu trabalho de lecto-escrita, não confundir: nem a nuvem com Juno, nem a pesquisa com a bisbilhotice. Trata-se, como sempre em Lourenço, de um pensamento de ensaísta, ou seja, de uma escrita pensante e que presta ao outro, mais ou menos adversarial, essa homenagem fundadora de todo o ensaio: a de escrever a partir do outro e, sempre, com o outro.
[Este breve texto integra a exposição “O Esplendor do Caos – Livros e Bibliotecas de Eduardo Lourenço”, com fotografias de Duarte Belo e Rui Jacinto, que estreou hoje, dia 23 de maio, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda]