Se não erro (se não erramos, eu e os motores de busca), o texto que aqui se republica, sobre Daniel Jonas, encomendado em 2011 pela Direção Geral do Livro e das Bibliotecas e em seguida editado online, em tradução em inglês, numa espécie de dicionário de poetas da nova geração, não se encontra já disponível (desconheço as razões). Os livros subsequentes de Jonas tornaram-no talvez o caso mais sério da sua geração na poesia portuguesa, e condenaram o texto ao reconhecível destino de «tentativa de ensaio sobre as primícias de um poeta». O que é simplesmente o preço a pagar pelo trabalho de sondagem do presente, que na altura me mobilizava – tanto quanto me mobiliza o anacronismo, que é também parte do mundo de Jonas. Por exemplo, no teatro de que é também autor: ainda em 2011 escrevi sobre a sua peça Estocolmo, para o Teatro Nacional S. João (o link encontra-se na página Publicações, deste site, secção Outros).
Daniel Jonas (Porto, 1973) publicou até ao momento quatro livros de poesia – O Corpo Está com o Rei (1997), Moça Formosa, Lençóis de Veludo (2002), Os Fantasmas Inquilinos (2005) e Sonótono (2007, Prémio PEN de Poesia 2008) – e uma peça de teatro, Nenhures (2008). Tem actividade vasta e significativa como tradutor, destacando-se naturalmente a sua tradução do Paraíso Perdido (2006), de John Milton. A «irrupção» de Daniel Jonas na cena literária portuguesa foi retardada pelo facto de os seus dois primeiros livros terem sido editados em circuito restrito, pelo que a sua «revelação» ocorreu apenas com a edição de Os Fantasmas Inquilinos pela editora Livros Cotovia. Se esse facto não faz (ou não fez) justiça à qualidade sobretudo de Moça Formosa, Lençóis de Veludo, por outro lado permitiu que o autor viesse a público já com uma obra maior, embora o perfil da sua poesia, pouco coadunável com o devir maioritário da poesia portuguesa recente, suscitasse estranheza e alguma resistência.
A estranheza começa no nome, de clara ascendência profética, e aliás congruente (uma congruência produzida ou buscada pelo autor) com as ressonâncias, e por vezes com uma certa arquitectura, teológica, em que os deuses, nada católicos, parecem provindos dos universos de Blake ou Milton – ou, então, quando gregos e romanos, (a)parecem filtrados por aqueles poetas ingleses. Num poema de Moça Formosa, Lençóis de Veludo, a carga mitológica e narrativa do nome próprio é explorado, numa reescrita do tópico de Jonas e a baleia que joga também visualmente com um esgarçar do sujeito e seu nome, explorando brilhantemente esse topos moderno:
Jonas
dei
x
ar
-te
foi
como
fos
se
Jonas
a
vom
it
ar
o
pei
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Jonas integra a estirpe dos poetas para quem a palavra poética «confere dissemelhança / em relação ao uso comum» («ut lingua poiesis», ainda de Moça Formosa, Lençóis de Veludo), questão que aborda repetidamente e sempre com a rara competência da sua formação teórica, em poemas estratégicos como «Os fantasmas inquilinos», do livro homónimo, em que, da realidade, se declara que «A ideia aqui é deformá-la, depois de um intervalo / de tempo, e passar à generalização / ou, como cápsula de segurança, deformar / o enunciado, a fala (…)». Nenhuma ilusão mimética, pois, nenhuma apetência pela dessublimação programática de grande parte da poesia portuguesa das últimas décadas. Antes uma dicção em que o épico parece conviver parodicamente com a experiência da decepção – o caso maior de «estou tão triste que nem uma guerra púnica me animaria», do segundo livro -, ou em que a dicção corrente aparece sempre recoberta pelo envoi para uma memória literária excepcionalmente produtiva na sua motivação, como sucede na solicitação camoniana de «Anda lá, meu relógio, despacha-te», ainda de Moça Formosa, Lençóis de Veludo (poema recuperado em Sonótono): «Anda lá, meu relógio, despacha-te. /Por que te alongas nessa cama d’horas / quando nestoutra cama de demoras / dela a falta já me atrasa e desanima?»
O estranhamento desta poesia alonga-se por um espectro cromático vasto, tendendo muitas vezes ao saturado, em momentos em que o visionarismo romântico (sempre tão raro na poesia portuguesa) se hipertrofia numa revisitação do gótico, muitas vezes de teor auto-paródico, como em «Ó Noite, vale umbroso, com teu xaile de corvos», de Os Fantasmas Inquilinos:
Ó Noite, vale umbroso, com teu xaile de corvos,
Com tuas mãos, cobre-me!
Vem sobre mim, ó noite mãe, enterra-me!
Sob teus alçapões medonhos de estéreis fundos,
Dá-me à tua negra luz,
Tecedora aracnídea, cigana,
Este homem tuas saias escondam,
Imitações, influências, lençóis sidéreos,
De lacre espesso as lágrimas:
A gruta nupcial!, a gruta nupcial!
O notável autodomínio com que o poeta percorre as zonas da tradição alto-poética do visionarismo é bem revelador do «monstro» de técnica poética que é Daniel Jonas, provavelmente o caso mais impressionante de domínio de formas e metros da poesia portuguesa de hoje. Trata-se de uma arte retórica para a qual a intimidade com práticas de tradução foi claramente propiciatória; mas, mais do que isso, trata-se de uma poesia que vive em estado de intermediação idiomática (sobretudo o português e o inglês), figural e imagética, como se Jonas vivesse de facto no ventre da baleia da poesia ocidental. Desse ponto de vista, Sonótono é um dos mais extraordinários livros da poesia portuguesa da última década, deslumbrando o leitor pela forma como a fixidez do soneto é objecto de um tratamento que, a golpes de talento e intensa cultura poética, o desdobra numa plasticidade insuspeitada. Por exemplo, no soneto em que Jonas evoca uma das suas sombras portuguesas, Luís Miguel Nava, não por acaso outro poeta habitado por visões (d)e trevas:
Como um metalúrgico da Luísnava
Que uma musa metálica redime
E faz dum vulcão cama e os lençóis lava,
Soldo a métrica, malho p’ra que rime.
Ou o soneto em que revisita o «Soneto já antigo» de Álvaro de Campos e em que todos os versos se iniciam por «Que»: «Que ela voltasse. Diz ao rapazinho / que lhe sinto a falta, ah, espada tão tíbia / Que ao rádio obriga, a tez diz-lhe tão nívea / Que lhe guardo p’ra sempre o retratinho (…)». Ou o grande soneto sobre o Pessoa-Sebastião da Mensagem:
Eu queria que tu viesses, mas não vens.
Como Milton p’ra Wordsworth, Portugal
Precisa de ti, estamos sós, o mal
Já grassa, é lama. Queria, mas não vens.
Um mundo de desgraças te reclama,
Paquetes, cais, arcádias, reis, armentos,
Ofélias andam loucas em conventos,
Camões (quem é Camões?), nem mesmo o Gama!
É Hora! Onde estás? Quem te detém?
Um sono, uma modorra? Quem te amarra?
Pior país não houve, jaz aqui,
Solo nem é, é sola de Bandarra.
Vem, salva-nos de nós, dos quintos vem!
Ou um Consolador manda por ti
É fácil, numa cultura poética como a portuguesa actual, recusar ou denegrir esta poesia, justamente pelos seus méritos e conseguimentos. Porque com Jonas poesia & visão, poesia & cultura, poesia & versificação voltam a restabelecer vínculos quebrados com demasiada facilidade por todos aqueles que se exaltam ainda hoje com as supostas revoluções do «verso livre» e com mais um episódio póstumo da longa sequência da dessublimação baudelairiana. A alta exigência da poesia de Jonas, a sua intransigente atitude antimimética, têm um gume crítico para o qual talvez o melhor nome seja o nome «feio» que os apressados usam para ele: «anacronismo». De facto, no sentido em que se trata de uma poesia que não se quer com o tempo, por isso que é habitada por todos os tempos da poesia, esta poesia apresenta uma fundura temporal e estética que é ilegível sem o recurso à noção de «estilo tardio»: um estilo que nos mostra, como diria Adorno, que a verdade da harmonia é a dissonância. Uma dissonância que mora em todos os poemas de Jonas, mesmo quando eles são retoricamente perfeitos (et pour cause); mas sobretudo, uma dissonância que ela conquista face à harmonia dos consensos reinantes justamente por ser o que é: uma poesia absolutamente singular, porque não-contemporânea, na poesia portuguesa de hoje.