‘Viva la Muerte’, um Oratório da Resistência

O Festival Vapor ocorre anualmente no Entroncamento, mais propriamente no Museu Nacional Ferroviário, um dos lugares extraordinários de Portugal, dada a riqueza patrimonial e inteligência expositiva desse museu enorme, em todos os sentidos do termo. Embora o festival se coloque sob a égide da cultura Steampunk – algo que os expositores, barraquinhas de artesanato ou feira do livro deixam claro –, a sensação com que se fica é a de que, no que toca à fauna humana, o Steampunk tem de se bater com todos os extraviados do universo de Tim Burton, entre outros mundos do fantástico e do extravagante. O restante público oscila entre a velha guarda que hoje é o público natural dos concertos rock, sobretudo quando se trata de bandas tão lendárias como os Mão Morta, as culturas alternativas, e ainda aquela gente que quer simplesmente divertir-se ouvindo música e bebendo cerveja – pela qual, registe-se, não tem de se pagar barbaridades, como é da praxe nos festivais de verão, cujos tempos de glória parecem ser já passado. O Vapor é, para concluir, uma festa, uma surpresa e um fenómeno (mais um!) do Entroncamento.

O concerto dos Mão Morta teve lugar no fabuloso Palco Naves, um vasto hangar cheio de locomotivas e carruagens, devidamente afastadas para o público poder ocupar o vasto espaço central. É um local especial, para não dizer mágico, pois nele se concentra todo o fetichismo da modernidade ferroviária, com a máquina pesada no centro, ao mesmo tempo que se dispõe como mausoléu e arqueologia dessa modernidade exausta. À noite, a iluminação interior de algumas carruagens, banhando-as de verde, azul ou vermelho, fazia delas uma espécie de aquários elétricos, numa sinalização feérica que dava a tudo o aspeto hoje irreal do mundo operário e metalomecânico em que no Ocidente se viveu por dois séculos. Nem de propósito, na tournée dedicada ao seu último disco, Viva la Muerte, os Mão Morta apresentam-se numa versão de fato-macaco e boné (com griffe), figurino que é impossível não associar a uma genealogia que remonta a várias linhagens de vanguardistas do século XX, entre as quais o Almada Negreiros do Teatro República em 1917; as imaginações distópicas do tipo 1984, de Orwell; mas também a uma Unidade Coletiva de Produção (associação reforçada pelo lado intensamente masculino do pessoal em palco: seis membros dos Mão Morta, mais o reforço de um coro de cinco vozes), sem esquecer os Devo, mas neste caso uns Devo pouco dados a paródias. Continue reading


John Mercy & The Dead Beats: West of the American Night

Com este concerto, encerram-se as comemorações do centenário de Jack Kerouac protagonizadas pela Secção de Estudos Anglo-Americanos do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas desta Faculdade de Letras. E encerram-se deste modo porque a articulação de texto e música atravessa e define toda a Beat Generation, como pudemos ver mesmo no final do concerto no vídeo da espantosa leitura, pelo próprio Kerouac, da última frase de On The Road, com acompanhamento musical.

Quando convidei o João Rui, aliás John Mercy, a fazer alguma coisa em torno de On The Road para este dia, a sua primeira reação, tenho de confessar, não foi muito entusiástica, tendo o João pedido uns dias para pensar no assunto. Passou quase uma semana e, de repente, comecei a receber sms e mails em catadupa. Nessas mensagens, e para resumir, John Mercy confessava não apreciar a modalidade hoje popular da spoken word ou da leitura com música, no fundo por ser essa uma modalidade, em seu entender, desprovida de forma. E como a forma por excelência da articulação entre texto e música é a canção, o que ele propunha era um conjunto de canções a partir do romance de Kerouac – um conjunto de canções que pudesse vir a dar um disco, a forma (e a duração) por excelência da música na era da reprodução. As mensagens vinham aliás acompanhadas de uma sinopse das canções a extrair do livro e também já do espetáculo. Como bónus, uma demo da primeira canção, “Holding On”, que achei belíssima. Continue reading