Falar mau inglês a bem da paz perpétua

Duas colegas que muito prezo pediram-me para intervir na apresentação e debate deste livro na FLUC. Não entendi bem, confesso, um dos aspetos do pedido, que depois percebi quando no cartaz vi ao meu nome atribuída a função de “provocador”. Lamento desiludir quem aqui veio para assistir a uma provocação pública a um provocador nato, mas farei apenas aquilo que faço sempre, e que consiste em ler o livro que me foi proposto o melhor que sei. O que implica ler sem preconceitos, mas também sem receio de ofender a delicada sensibilidade do autor (todo o autor é por definição uma alma delicada).

Deixem-me então dizer a abrir que este livro, nas suas 520 pp., trata e não trata do tema que o título enuncia, e que logo na p. 19 se apresenta assim: “Todo este trabalho, toda esta pesquisa, todas estas páginas, resumem-se a uma ideia simples: o princípio de que quantas mais pessoas falarem a mesma língua, menos guerras haverá no mundo”. A minha restrição tem a ver com o facto de este ser um livro sobre isto que assim se descreve, mas ser também um livro sobre quase tudo, o que torna difícil a intervenção de quem tem, como é o meu caso, uma competência limitada e tem de selecionar apenas uma delgada fatia de um bolo com inúmeras camadas. Quanto ao trabalho, convém ser justo e admitir que foi muito. Embora, sendo igualmente justo, convirá confessar que o trabalho de campo do autor decorreu muitas vezes em resorts, hotéis, almoços e jantares na praia ou em lugares turísticos nos vários continentes, em inúmeros países e locais. Rodrigo Moita de Deus, esclareço, não beneficiou de uma generosa bolsa FCT (não estou, de resto, a apelar à denúncia por meio, sei lá, de um Alerta CMTV do tipo “Vejam para que serve o dinheiro dos contribuintes”). Beneficiou sim, e isso percebe-se ao ler o livro, de um inexcedível senso prático, que o levou a usar muito produtivamente as suas ocasiões de trabalho para ir pensando e escrevendo o livro, demonstrando assim mais uma vez como uma obsessão pode comandar e ordenar a nossa relação com o mundo. Quem fez uma tese sabe bem do que estou a falar: lê-se um artigo no jornal O Jogo, o único jornal desportivo que diz a verdade, e ele tem a ver com a tese; come-se iscas de cebolada e elas têm a ver com a tese; e compra-se uma t-shirt com a cara da Nicki Minaj porque ela tem a ver com a tese. É um pouco o que ocorre com este livro, que mistura ocasiões familiares, conversas com amigos, viagens de trabalho ou em turismo, sessões profissionais, com o obsessivo trabalho em torno da ideia central do livro, nas suas muitas ramificações, ou não estivéssemos a falar de um tijolão, como diriam os brasileiros. Continue reading


Leitura de “Sobre o canto” [A Distância, 1969], de António Franco Alexandre

POÉTICA. O livro A Distância (1969) divide-se em duas partes: a primeira, “Poética”, composta por 20 poemas, ou 20 secções de uma longa variação sobre a ideia e experiência de distância, todos eles datados, por mês e ano, de outubro de 1963 a dezembro de 1968, numa progressão descontínua; a segunda, “Discursos”, composta por 9 poemas “Sobre” (por vezes “De”) coisas como a poesia, o amor, o desejo, a simplicidade, a ausência ou mesmo “uma longa marcha”, título do poema final, e também datados entre julho de 1968 e abril de 1969. Trata-se, pois, de poesia dos anos 60 e, em boa medida, sobre os anos 60, esse período de nomadismo, não apenas académico, do autor, aliás evocado em “L’oubli”, um dos grandes poemas do livro seguinte, Sem palavras nem coisas, de 1974, poema no qual se pode ler: “e à entrada de um novo / dicionário: “é impossível escrever português / fora de Portugal. é impossível / escrever”. Ou ainda: “De boston, em resposta a poemas / alheios: ‘estou inocente, é difícil’ ”. Admitindo aquela tese antiga, e forte, de Fredric Jameson, segundo a qual os anos 60 terminaram com a descolonização portuguesa, proponho que se leia o segundo livro como um relançamento das coordenadas delineadas por A Distância,  que se tornam claras em poemas como “Tríptico nómada”, que no livro de 1974 tematiza o nomadismo do livro inicial, dividindo-o por Nova Iorque, Paris e Veneza, bem como pela trilogia “política, sexo & drogas” (deixemos para daqui a pouco o rock’n’roll) patente, na secção “III – Veneza, travessia”, em versos como “il manifesto / deitado sobre a cama, junto ao sexo”, ou “vago, de hashish, o acre / minuto de falar”. Na minha leitura, que é basicamente a de Américo António Lindeza Diogo, os anos 70 chegam de facto com Os Objetos Principais, livro da revolução terminada ou, na formulação mais memorável do livro, “da mesa de piquenique repentinamente abandonada”.

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Um grande do nosso tempo: Andrea Camilleri

La forma dell’acqua, o extraordinário romance com que se iniciam as aventuras do comissário Montalbano, abre com a descoberta, num baldio usado para fins de comércio sexual, de uma importante figura da política siciliana, o engenheiro Luparello, morto dentro do seu carro, aparentemente vitimado por um ataque cardíaco durante o ato sexual. Os dois “operatori ecologici” (homens do lixo) que o descobrem, Pino e Saro (uma daquelas parelhas de que Camilleri extrai todas as possibilidades involuntariamente cómicas), reconhecem-no e decidem telefonar a uma outra importante figura do partido de Luparello, o advogado Rizzo, braço direito do falecido. O telefonema revela-se surpreendente, pois o dito advogado não só não mostra qualquer comoção, como se limita a sugerir que quem lhe telefona “cumpra o seu dever” junto das autoridades. Cumprido o dever, prestadas as declarações à polícia, com a omissão do telefonema ao advogado, os amigos regressam a casa. Mas Pino nessa noite não consegue dormir. Oiçamos o narrador:

Cabeça especulativa, era dado ao teatro e tinha representado como ator nas voluntariosas mas cada vez mais raras companhias dramáticas de Vigàta e arredores. Gostava de ler teatro: mal o escasso salário lho permitia, corria à única livraria de Montelusa a fornecer-se de comédias e dramas (eu traduzo).

Cabeça especulativa que era, não conseguia dormir, pois o telefonema ao advogado Rizzo continuava a perturbá-lo:

Então pegou num papel e numa caneta e transcreveu o diálogo mantido com o advogado, palavra por palavra. Releu-o e corrigiu-o, forçando a memória até transcrever mesmo as pausas, como num guião de teatro. Quando o teve frente a si, releu-o na versão definitiva. Algo não funcionava naquele diálogo.

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A poesia de Cabo Verde em duas antologias recentes

A publicação recente, no vol. LXIII, de 2018, da Atlântida. Revista de Cultura, editada em Angra do Heroísmo, de uma antologia intitulada “Poesia CV – Hoje, séc. XXI ?”, com Seleção, Organização e Nota Breve de António de Névada (90 pp. ilustradas com obras muito marcantes do artista plástico cabo-verdiano Alex da Silva), é uma boa ocasião para tomar o pulso à poesia de Cabo Verde, tal como esta antologia a apresenta.

Sobretudo, tendo em conta que há menos de dois anos, no nº 26 da revista DiVersos, de outubro de 2017, Rui Guilherme Silva apresentou uma outra seleção de poetas, com o título “Dez Poetas de Cabo Verde”, o que permite um exercício comparativo com algum potencial iluminador.

Apesar das aparências, os dois exercícios antológicos são animados por princípios diversos, tal como as publicações, ambas periódicas, são também diferentes nos seus modos de existência: a Atlântida é uma publicação do Instituto Açoriano de Cultura, e graficamente cativante; a DiVersos é uma revista de poesia, stricto sensu, hoje um projeto a cargo de José Carlos Marques, que confia no poder dos versos impressos na página e no apelo da tradução daquilo que, desde sempre, alimentou toda uma série de teorias do intraduzível, resumindo o seu projeto ‘impossível’ no subtítulo da publicação: “Poesia e Tradução”. Rui Guilherme Silva, talvez hoje o melhor estudioso da poesia de Cabo Verde, afirma, numa nota inicial significativamente intitulada (ou ressalvada) “Advertência(s) e Agradecimento(s)”, que “O título muito denotativo deste número da DiVersos – Dez Poetas de Cabo Verde – tem também o propósito de declinar qualquer propósito antológico”. No caso da Atlântida, quer o título da secção, quer a “Nota Breve” final de António de Névada (não tão breve, aliás), denunciam o propósito não apenas antológico, mas também hermenêutico, de oferecer uma visão e uma leitura do curso da poesia cabo-verdiana posterior à Claridade. Porque é esse um dos pontos em que ambos os antologiadores coincidem: a supressão da poesia “fundacional” da Claridade, no que respeita à ideia moderna de literatura cabo-verdiana. Não, seguramente, por reserva mental ou propósito de desqualificação da posição canónica de um Jorge Barbosa ou de um Osvaldo Alcântara, mas antes porque essa fundação é o pressuposto (e pré-conceito) sobre o qual se edifica a poesia cabo-verdiana contemporânea, cujo marco mais remoto Névada situa entre João Vário, Oswaldo Osório e Corsino Fortes e Rui Guilherme situa entre Vário e Mário Fonseca (Corsino não consta, nem da seleção de Rui Guilherme, nem da sua antologia virtual, para a qual, como veremos, refere alguns nomes que acrescentaria aos 10 poetas selecionados, sem mencionar Corsino). Continue reading


“Or would you rather be a fish?”: sobre ‘Paterson’, de Jim Jarmusch

1. Paterson abre com um plano, e uma cena, de Paterson (a personagem) a acordar, de manhã, na cama com a mulher. O primeiro dia é Monday, e o filme inscreve-o na imagem, naquele registo caligráfico que sugere uma entrada de diário. Começa a semana e começa o filme e começa o diário. O plano e a cena regressam ao longo dos sete dias do filme, em regime de variação (um termo explicitamente usado por Jarmusch em entrevistas sobre o filme), assegurando quer o recorte interno de um bloco diário, quer a continuidade sobre que se estrutura o filme: rotinas diárias, formas de vida, práticas de escrita e de inscrição matérica: os poemas que Paterson escreve no seu caderno, os círculos, traços e manchas a preto e branco que a sua mulher vai pintando pelas superfícies da casa e, por fim, nos cupcakes que leva à feira. Note-se, a propósito disto, que este é um admirável filme sobre o amor (o primeiro poema intitula-se, aliás, “Love Poem”) e, mais ainda, sobre o amor entre duas pessoas particularmente criativas, ainda que com uma diferença: Paterson é um poeta e toda a sua pulsão criativa é canalizada para um meio reconhecível, estável e anacrónico, o seu caderno; a mulher de Paterson, contudo, é uma artista multidisciplinar cujo meio favorito de expressão é a sua casa – mas não apenas, já que a certa altura compra uma guitarra para tentar realizar o seu sonho de ser uma estrela da country –, casa sobre a qual opera com uma tenacidade a um tempo expansiva e muito focada, já que o seu vocabulário é minimalista: preto e branco, círculos e traços.

O quotidiano é o mundo a partir do qual ambos operam, mas se em Paterson tudo se joga num caderno que será ou não um livro de poemas, na sua mulher a casa aspira à instalação e o seu melhor paradigma seria o Merzbau de Kurt Schwitters. 

Paterson, personagem, vive em Paterson, cidade, coincidência aqui e ali notada por outras personagens, em regime mais ou menos irónico. E vive, ainda, no poema Paterson, de William Carlos Williams, poeta que é a sua obsessão pessoal e no qual tudo começa e acaba. Mas isso, a auto-reflexividade irónica mas não cerebral, não obsta a um poderoso subtexto político, que nos apresenta a cidade de Paterson como uma comunidade fortemente multicultural (um ponto destacado por Sérgio Dias Branco, em crítica publicada no Avante) cujo contrato social é enunciado exemplarmente pelo condutor de autocarros de nome Paterson: ouvir (ou melhor, escutar), num regime de curiosidade não invasiva, exatamente como um condutor de autocarros que vai discretamente conhecendo aqueles que conduz, dispondo-se a acolher a heterogeneidade dos discursos dos seus passageiros. O condutor de autocarros seria aqui o ponto de apoio de uma alegoria cartográfica da Cidade enquanto posicionalidade infixa. Uma outra versão desse ponto de apoio de uma tal cartografia seria o dono do bar que Paterson todas as noites visita, mas que contudo não consegue atingir a dimensão de emblema do condutor de autocarros. Paterson seria, assim, a América na qual o outro não é codificado a priori como perigo, o que colocaria o condutor de autocarros no ponto simetricamente mais afastado desse outro condutor chamado Donald Trump. E o seu mandamento político poderia ser reportado a um título também ele emblemático de George Michael: Listen without Prejudice. Continue reading