O Propósito Cosmopolita. Ler Abel Barros Baptista a ler Machado de Assis

No ano de 1991 a editora portuguesa Litoral publicou um volume com um título singular: Em nome do apelo do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Era seu autor Abel Barros Baptista e o volume, bem como o específico recorte do seu título, assinalava o início de uma produção ensaística que teria em Machado de Assis o seu autor de eleição e na ficção do século XIX o seu recorte decisivo (recorde-se que alguns anos antes, em 1988, Abel Barros Baptista publicara outra obra fundamental sobre a ficção oitocentista em português, Camilo e a revolução camiliana). Seguiu-se, em 1992, uma Introdução a uma edição portuguesa de O Alienista (na editora Hiena) e, em 1998, o fundamental Autobibliografias, cujo subtítulo expunha boa parte do método e da novidade do ensaísta: “Solicitação do livro na ficção de Machado de Assis”. Em 2003, ambos os livros machadianos de Abel Barros Baptista tiveram edição brasileira na Editora Unicamp, o primeiro com uma alteração no título, que passou a ser A formação do nome. A que se seguiria, em 2014, ainda na Editora Unicamp, um terceiro volume machadiano, cujo título se coloca sob a égide de um “princípio cosmopolita” que o autor abordou em ensaio decisivo sobre Machado e, mais latamente, sobre a literatura brasileira: Três emendas. Ensaios machadianos de propósito cosmopolita. A Machado e Camilo vai ainda o autor buscar inspiração para a sua vasta produção cronística e humorística, reunida em alguns volumes, que configuram um perfil único na cena intelectual de língua portuguesa.

No seu conjunto, a ensaística machadiana de Abel Barros Baptista é um dos pontos cimeiros dos estudos dedicados ao grande romancista brasileiro. Se lhe agregarmos a restante produção brasilianista do autor, em volumes como O Livro Agreste, de 2005, de novo na Editora Unicamp, em ensaios dispersos por outros volumes ou em prefácios e posfácios a clássicos da literatura brasileira – sem esquecer o fundamental Curso Breve de Literatura Brasileira que dirigiu na Livros Cotovia, com 16 volumes, em 2005 e 2006 –, o trabalho de Abel Barros Baptista nos estudos brasileiros não tem equivalente em Portugal, na sua geração ou em qualquer outra ao longo dos séculos XX e XXI, no período da institucionalização desses estudos na universidade portuguesa, institucionalização sempre difícil, de resto, como o próprio autor demonstrou em ensaios fundamentais.

2025, ano em que Abel Barros Baptista se jubila, é também o ano em que o contínuo Sala do Brasil/Instituto de Estudos Brasileiros (a primeira, fundada em 1925 na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o segundo, fundado em 1941, numa operação de renomeação e relançamento da Sala do Brasil), chega aos 100 anos de vida. Assinalando a coincidência, o Instituto de Estudos Brasileiros, que teve em Abel Barros Baptista um parceiro permanente, convidou um conjunto de distintos universitários de vários países a relerem os textos machadianos do ensaísta, naquilo que se pretende seja uma celebração da literatura e do ensaio. Uma celebração colocada sob o signo dos estudos brasileiros, mas antes e depois disso, sob o signo dos estudos literários na universidade, de que Abel Barros Baptista é, em Portugal e no Brasil, uma figura maior.

O título deste encontro – O propósito cosmopolita – abarca e em verdade resume quer o pensamento de Abel Barros Baptista sobre literatura, quer a natureza deste Instituto de Estudos Brasileiros, que existindo para estudar, ensinar e divulgar a cultura do Brasil, o faz no exterior do Brasil e nessa posição de partilha de uma língua que, sendo supostamente a mesma, nos coloca naquele quadro que Abel descreveu no ensaio fundamental cujo título kantiano o nosso colóquio adotou: “é a língua que permite reconhecer o estrangeiro como estrangeiro e sobretudo quando fala a mesma língua, ou quando fala a nossa língua” (Três Emendas, p. 9). E isto significa que assim como não existe uma unidade de língua que compense, suplante ou suture as diferenças que estruturam hoje as culturas e literaturas do Brasil e de Portugal, não existe maneira, filosófica ou filológica, de deixarmos de ser estrangeiros em relação à lógica que move a cultura brasileira, mesmo quando nos dediquemos a estudá-la, ensiná-la ou divulgá-la com os meios de que dispomos neste Instituto de Estudos Brasileiros de Coimbra. Ou seja, não tendo como não declarar a nossa incompetência de estrangeiros, é aí que a literatura vem em nossa ajuda, pela mão de Abel Barros Baptista. Recordo que na conceção cosmopolita que o inspira, temos de “pressupor que cada texto foi escrito na previsão do estrangeiro que um dia o virá ler e estará à altura de o ler precisamente na medida em que for capaz de circunscrever os limites da própria incompreensão sem perder de vista o privilégio de habitar a mesma casa, que é a mesma não porque seja desde sempre essencialmente a mesma, antes porque a carateriza a hospitalidade incondicional” (Três Emendas, p. 9).

Uma literatura pensada a partir do propósito cosmopolita que a constitui na modernidade, e é isso que aprendemos com Abel Barros Baptista, torna-se maior do que a estrita questão da literatura, o que se percebe bem na definição de literatura que ainda no mesmo ensaio Abel propõe: ela “faz de quem dela se aproxima um estrangeiro e pelo mesmo gesto oferece-lhe todas as condições para que se instale à vontade” (Três Emendas, p. 10). É assim que, enquanto coordenador deste Instituto, vejo a sua relação com o Brasil: como uma instituição consciente do seu lugar no exterior do Brasil e que vive a sua condição com a noção de que tem muito que estudar e aprender, desde logo, e muito naturalmente, com os brasileiros, mas sem que essa condição redunde em ansiedade, ou mesmo em ânsia, de mimetizar a ideia que os brasileiros (re)produzem do Brasil, nas suas diferentes manifestações. Para que eu percebesse isto, ou seja, para que percebesse que nos podíamos (eu e o IEB) “instalar à vontade” na cultura brasileira, confiando que ela saberia estar à altura do propósito cosmopolita que move os seus maiores autores ao encontro do estrangeiro, foi realmente decisivo o pensamento de Abel Barros Baptista, razão pela qual estamos hoje aqui a celebrar duas entidades veneráveis e jovialmente vetustas – o IEB e Abel Barros Baptista –, na certeza de que estamos apenas a começar.

Resta-me agradecer a todas as entidades que apoiam este evento: a Direção da FLUC, na pessoa do seu Diretor, o Departamento de Línguas, literaturas e Culturas, na pessoa da sua Diretora, o Centro de Literatura Portuguesa, na pessoa da sua coordenadora, a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que editou os livros de Abel no Brasil que podem ver na mesa e tem apoiado o IEB por meio do convénio assinado há uma década. Uma palavra final para todos os membros da comissão organizadora: Alberto, Luiza, Henrique, An Yu e Nathália. E ainda para o apoio técnico de Keissy Carvelli e o trabalho gráfico de Patrícia Esteves Reina.

[Texto lido na abertura de O PROPÓSITO COSMOPOLITA. Ler Abel Barros Baptista a ler Machado de Assis. Um colóquio nos 100 anos da Sala do Brasil / Instituto de Estudos Brasileiros, 2 de outubro de 2025]