Um colega estrangeiro (e residente no estrangeiro, embora nem sempre), a quem o meu convite para participar neste colóquio não seduziu o bastante, comentou por mail que o elenco de intervenientes era já bastante bom, sobretudo por incluir estudantes e recém-doutorados. E acrescentou: “Que os estudantes falem e que o debate se torne autobiográfico! ‘O que é que o Sr Doutor fez durante a primeira grande guerra cultural?’” [1] No meu caso, era demasiado jovem para fazer outra coisa do que dançar, com calças de boca de sino e sapatos de tacão alto, ao som de La décadanse de Serge Gainsbourg. Sem grande consciência de estar a participar na Primeira Grande Guerra Cultural, pois aquela era simplesmente a cultura em que me movia e respirava, na pré-adolescência.
Muito reveladoramente, o título deste colóquio suscita de imediato problemas que são filológicos por serem autobiográficos, ou ao invés. O título, esclareça-se, pertence ao reitor da Academia Alternativa Porralouca, Alcir Pécora, que respondeu ao meu pedido de ajuda em matéria de título com aquele que foi logo eleito (faço notar que a primeira palestra sobre “Contracultura, experimentalismo e desbunde na prosa brasileira dos anos 60 e 70” proferida no IEB pertenceu a Alcir Pécora, no dia 1 de outubro de 2014, tendo-se seguido outras). Quando, porém, me ocorreu traduzir o título nas línguas mais diretamente envolvidas no colóquio, rapidamente percebi que uma competência linguística, ainda que alargada, não bastava para responder satisfatoriamente às exigências colocadas pela tradução. O caso mais espetacular de dificuldade intransponível de tradução é o que ocorre, de resto, entre o português do Brasil e o de Portugal, já que não existe um termo ao qual, em registo autobiográfico, possamos remontar na nossa memória vivencial para traduzir “desbundado” ou “porralouca” para o português de cá. Se percorrermos o Houaiss, o dicionário dirá que porra-louca (com hífen pré-acordo ortográfico) é “aquele que age de maneira inconsequente, louca, irresponsável”. Quanto a desbundado, a lista é vasta, indo de extasiado, maravilhado, deslumbrado até “que adotou comportamento libertino” – o que a entrada desbundar esclarece que se pode dever a efeito de álcool ou drogas –, referindo ainda que se trata de alguém “que largou a atividade política; alienado” (o Aurélio, curiosamente, não menciona esta dimensão política). A tudo isto, menos o desbunde político, que em Portugal não mereceu investimento semântico equivalente, talvez por a situação política, ainda que identicamente repressiva, não ser idêntica (nunca o é), chamava-se por cá “freaks”, ou melhor, “friques”, o que significa que os problemas de nomeação foram resolvidos com um estrangeirismo que virou neologismo. A tradução, resumamos o problema, necessita de uma filologia “geracional” que recupere a gíria em causa para estar à altura do investimento existencial propiciado pela contracultura – já que a alternativa seria uma espécie de tecnocracia da tradução que perderia de visto esse assalto juvenil à linguagem que define a contracultura. Continue reading