Má dicção e maldição

O que é um poema mal dito? De acordo com que norma, e estipulada por quem, aferimos esse mal dizer? A criança que na sala de aula se engasga ou come sílabas ao ler Camões ou Pessoa, diz mal? A multidão que, num jogo da seleção (a de futebol, pois só ela permite a antonomásia: ao pé do futebol todos os outros desportos são formas parcelares de nomeação da nação), canta o hino e choca contra os «egrégios avós», reinventando-os como pode, diz (canta) mal? O ator que ao dizer o poema se esforça por esbater ênfases, treinado que foi no horror à demagogia da tónica, e usa toda a sua arte para restituir a plenitude de cada sílaba, diz bem?

Mas o que é dizer bem? Uma questão de projeção, altura, articulação? Um equivalente daquilo a que na música chamamos afinação? Ou, antes, de intensidade? A voz é sempre mais do que um débito físico-acústico, mas o seu mistério começa aí, nesse débito que emerge de um local aparentemente situável – o aparelho fonador – mas desequilibrado na relação causa-efeito. Pois quando emerge, e na medida em que emerge sempre de uma profundeza, a voz é imprevisível (produzindo por vezes um reconhecível efeito cómico, sempre que a um corpo volumoso corresponde uma vozinha, ou ao invés) e só a posteriori cola com a pessoa que a produz. Experiência banal, de resto, nestes tempos em que a net nos permite conhecer o rosto de alguém cuja voz, quase sempre, chega só depois. Percebemos então como a voz assina o corpo que a usa, com um efeito de posse quase tão poderoso como o do rosto fotografado que assina o nosso ser político-administrativo. Ou mais poderoso, já que a voz arrasta na sua materialidade toda a questão do inconsciente enquanto coisa que em nós ressoa – do mesmo modo que na mão que me assina há muito mais e menos do que eu.

Em 1959 o jovem realizador Joaquim Pedro de Andrade, figura maior do que viria a ser o Cinema Novo brasileiro, fez um documentário de 10 minutos sobre e com o poeta Manuel Bandeira. Joaquim Pedro não dispunha da possibilidade técnica do som direto, pelo que optou por gravar Bandeira a dizer alguns dos seus poemas, dispondo a sua voz esparsamente por sobre as imagens, explorando efeitos de sobreposição poesia-imagem ou o seu inverso. O filme é uma lição de como gerir meios e seguramente um dos mais belos filmes já feitos sobre um poeta. Mas eu queria falar da voz de Bandeira, essa voz áspera e sem volume, demasiado adulta e desencantada e contudo capaz de ser infantil no seu súbito entusiasmo – por exemplo quando diz «Vou-me embora pra Pasárgada». Não creio que, em sede técnica, Bandeira diga mal os seus poemas, bem pelo contrário. Porém, o facto de os poemas nos chegarem pela sua voz faz com que esta não só os preceda na nossa perceção, como se torne difícil (para mim, impossível) dissociá-los do timbre, altura e ressonância da voz feia de Bandeira, uma voz que bate estranhamente certo com o corpo anguloso do poeta. A voz assina o corpo de Bandeira e, inevitavelmente, os poemas que diz, que se tornam não menos belos, mas belos de uma forma menos consensual, eu diria. A tal ponto que esses poemas, e poucos há que me atreva a dizer tão meus como certos poemas de Bandeira, se tornam para mim ocasiões da voz de um poeta chamado Manuel Bandeira, poeta que quando oiço percebo que nunca conhecerei de verdade. Privilégios da presença? Talvez, mas convinha não esquecer que o filme vive da dissociação entre corpo, fala quotidiana (Bandeira a comprar leite ou os jornais, a encontrar um amigo e a rir-se com ele) e voz do poeta. Esta vem de fora de campo e não bate certo com o que vemos e sobretudo com o que deveríamos ouvir. Porque a voz do poeta não é uma ocorrência da voz pessoal, assim como a poesia não é uma coisa da (na) natureza. Há sempre algo de mal dito no dizer um poema pois o poema é uma forma de fugir ao que na natureza se espera de nós: e isso é o que se aprende em Alberto Caeiro, admitindo que se aprende alguma coisa.

Não sei contudo se esta versão da voz que diz um poema pressupõe uma maldição. Estar vivo implica dizer mal, pois não há forma correta de nomear o que não pode bater certo. E a poesia é talvez o registo não-épico, a um tempo maníaco e erróneo, desta fatalidade. A minha forma preferida de a gerir tem um nome: Pasárgada.

[Texto escrito para o Festival Mal Dito, Coimbra, 2014. Posteriormente, escrevi sobre o filme de Joaquim Pedro um ensaio que, com o título “Ouvir a voz daquele que não fala”, saiu na Colóquio-Letras nº 188, em dossiê organizado por mim e dedicado ao tema “Materialidades da Literatura”]