Um pioneiro: Pires Laranjeira

A sala do Instituto de Estudos Brasileiros acolhe hoje esta exposição das obras publicadas por Pires Laranjeira, bem como das teses que orientou ao longo da sua carreira académica. Na minha qualidade de coordenador do IEB, sugeri empenhadamente à Professora Doris Wieser que a exposição tivesse lugar aqui. Fi-lo, para começar, por sentimento elementar de retribuição, pois quando a lecionação da literatura brasileira no nosso departamento necessitou de ajuda, o Professor Pires Laranjeira esteve na primeira linha desse serviço, de forma inteiramente voluntária. Mas fi-lo também porque os vínculos entre o Brasil e a África de língua portuguesa são um dos roteiros obrigatórios do trabalho dos especialistas nessas literaturas africanas, e Pires Laranjeira não deixou de, também ele, os assinalar e destacar no seu trabalho historiográfico ou crítico. Esta sala, digamos assim, realiza hoje, por meio desta exposição, a triangulação entre Portugal, Brasil e África em que o trabalho, e a vida pessoal, de Pires Laranjeira teve lugar na nossa universidade, uma universidade que é cada vez mais um locus privilegiado para a realização quotidiana dessa triangulação, bem como para a reflexão crítica sobre as suas dimensões múltiplas.

O primeiro livro de Pires Laranjeira, do qual trouxe hoje o meu exemplar, Antologia da Poesia Pré-Angolana, contém uma “Introdução” que surge datada de “Luanda, junho de 1974 / Rio Tinto, janeiro de 1975”. Estas datas resumem a situação e a circunstância de Pires Laranjeira, ou melhor, dão a ler a sua circunstância pioneira, já que percebemos que a receção da literatura angolana pelo autor se deu em Angola, em data anterior à revolução de 1974 e em plena guerra colonial – assim como a elaboração do livro se inscreve em plena circunstância anticolonial, já que a escrita mais tardia de Pires Laranjeira nesse livro data de alguns meses antes da independência de Angola. Editado em março de 1976, com capa do mais emblemático designer gráfico do período, João B., aliás João Botelho, o livro integra de direito e de facto a turbulência revolucionária e anticolonial pós-74 – é, aliás, o volume nº 10 de uma coleção da Afrontamento intitulada “Libertação dos povos das colónias” –, que o autor de resto não hesita em assumir na sua Introdução, num discurso que é uma recusa intransigente do colonialismo. Mas o livro acusa também o estado pré-disciplinar de um campo à data ainda sem tradução académica e institucional, e dado tanto a injustiças quanto a mistificações, em três frases reveladoras do “Prefácio”: “Obras individuais e poetas de mérito há poucos. Antologias, em proporção, há muitas. Teóricos oportunistas e distraídos, alguns” (p. 8). A que se acrescenta um esforço de teorização, patente na afirmação seguinte: “O entendimento da Nova Poesia Pré-Angolana tem de ser feito, como é evidente, dentro do contexto de valores e de estratégias locais e não na escala de valores distantes” (p. 24). Esta estratégia de legitimação, muito discutível em sede teórica tanto à data como hoje, é, contudo, justificada em seguida quando o autor, citando o então inevitável Janheinz Jahn, estabelece o contraponto entre a situação europeia do poeta, na sua recusa do consenso burguês e mercantil em torno da literatura, e a situação angolana, em que justamente a missão futurante do poeta se radicava na produção de um consenso emancipatório. Continue reading


Vítor Aguiar e Silva, prémio Camões

Vítor Aguiar e Silva foi ontem distinguido com o Prémio Camões. Creio poder dizer que para os que tiveram o privilégio de ser seus alunos, o dia de ontem foi um dia feliz. Se calhar porque todos sentimos, uma vez por outra, que o deslumbramento que nos tomou na sala de aula não chegou nunca a ganhar tradução fiel, ou sequer aproximada, na vasta produção escrita do nosso mestre. Não é fenómeno único, como se sabe, e muitos falaram antes da forma como a experiência irredutível da sala de aula, experiência formativa sobre todas, parece ter dificuldade em viver para lá da voz e da presença do professor. O que dificulta, ou mesmo impossibilita, a tradução da lição dos mestres em método replicável, coisa por que a escola tanto (erroneamente) anseia, como inversamente o ensino, enquanto encontro com o singular de cada estudante, tanto põe em causa.

Quando fui seu aluno, Vítor Aguiar e Silva era um professor maduro. Todas as aulas eram rigorosamente planificadas e acompanhadas por um guião manuscrito a que ia recorrendo. O modelo era magistral, o professor falava, abordando um tópico em modo panorâmico ou detalhado, eu escutava encantado e ia tomando algumas notas. O efeito inibidor do modelo sobre as intervenções dos estudantes era palpável e contam-se pelos dedos de uma mão as vezes que me atrevi a falar (mas lembro-me de o professor ter recordado, quase no final do ano, numa prova oral, uma das minhas intervenções, para minha surpresa). Não vejo isso, contudo, como uma limitação, tão evidentes foram os ganhos do modelo para os estudantes de Teoria da Literatura: aprenderam a pesar as palavras e a ponderar a pertinência de cada intervenção. Porque aprenderam, entretanto, uma lição maior: a de que o estudo da literatura não é tagarelice, exigindo por isso muitas vezes um vocabulário próprio, nem a paixão pela literatura uma modalidade de derrame sentimental e histriónico. Pois estou certo de que nenhum estudante de Vítor Aguiar e Silva alguma vez duvidou da sua paixão pela literatura, e suponho que muitos perceberam como era difícil aceder a uma modalidade tão exigente de relação com o objeto. A exigência era manifesta na vastidão de leituras e referências, bem como na atualização bibliográfica, que quase sempre comportava várias referências do ano anterior.

Pude constatar mais tarde, na pós-graduação, que o modelo pedagógico e universitário de Vítor Aguiar e Silva não afastava pessoas de perfil muito diverso do seu, a começar por mim. Pelo contrário, funcionava e funcionou sempre como uma plataforma de acolhimento de perfis intelectuais e humanos heterogéneos, talvez porque Vítor Aguiar e Silva nunca manifestou a tendência, muito popular na academia, para a clonagem, e menos ainda para o sectarismo. E à sua maneira, apesar do privilégio do cognitivo na relação pedagógica, o momento intersubjetivo não deixava de se manifestar, sempre que a ocasião se propiciava. Curiosamente, é esse o período que associo aos seus ensaios mais livres, menos reféns do império cientificista da Teoria, pelo qual, contudo, ainda oficialmente jurava. Mas oficiosamente a Desconstrução fazia o seu caminho, e bem mais na sala de aula do que nos textos que então publicava.

Aos 81 anos de idade, Vítor Aguiar e Silva publicou um novo e vasto volume, com o título Colheita de Inverno. Quem o conhece sabe que continua a comprar pilhas de livros, a ler e a escrever (“Leu o último livro de X?”, perguntava-me num dos nossos últimos encontros). O mesmo é dizer que continua a recordar-nos, agora ao longe e por sinais de fumo, o essencial da sua lição.

Falta dizer que ninguém merece mais um prémio com o nome do nosso maior do que Vítor Aguiar e Silva, camonista de toda a vida.

Muitos parabéns, caro professor!


Dois amigos: Lucas & Manuel

Tínhamos chegado a casa, após a viagem desde a vivenda do Manuel e da Piocha na Atalaia, quando o telemóvel tocou. Era o Manuel, perguntando pela viagem, mas na verdade excitado e ansioso por contar uma história. Tinha a ver com o Lucas, que como sempre correra atrás do nosso carro à saída, bem para lá do portão da casa, até que acelerei para ele desistir e deixámos de o ver. Desta vez, porém, não voltara para casa no prazo habitual, pelo que a certa altura o Manuel teve de sair à sua procura. Primeiro a pé, depois de carro, quando percebeu que ele não estava por perto. “E sabe onde o encontrei? No viaduto sobre a auto-estrada, a olhar no sentido do Norte. Estava a olhar para a estrada que vocês tinham tomado e estava ali parado. Não é incrível?” Concordei, claro, assombrado mais uma vez com o Lucas, e fui contar à Carolina, que ficou tão comovida como eu e como o Manuel.

O episódio que desejo agora acrescentar, saltando uns anos, foi o telefonema do Manuel anunciando a morte do Lucas. Estava velho e alquebrado já na nossa última visita, o passeio que fazíamos os dois ao fim da tarde por alguns quilómetros já lhe custava, parava muitas vezes e bebia água onde e sempre que podia. Continuava a desaparecer da vista de vez em quando, suponho que para perseguir algum coelho ou apenas e só a sua memória olfativa. Naquele dia o Manuel estava abalado, deu-me a notícia da eutanásia do Lucas por meias palavras, fiquei sem saber o que dizer, acho que disse apenas “Que notícia tão triste, um grande abraço, Manuel”, ele tartamudeou alguma coisa, “Pois, pois”, desliguei e fui dizer à Carolina, ficámos abraçados a pensar no Lucas.

Tenho dificuldade em pensar nele sem pensar no cão do grande poema de Manuel António Pina, “O nome do cão”, que começa assim: “O cão tinha um nome / por que o chamávamos / e por que respondia, // mas qual seria / o seu nome / só o cão obscuramente sabia”. Nunca conheci um cão com um nome tão justo como o Lucas, e se calhar por isso nunca conheci um cão como o Lucas: evangelista da alegria, bicho luminoso, como no étimo grego (tinha de ser) de Lucas, com aquele dom que Pina tão bem traçou: “Onde nós não alcançávamos / dentro de nós / o cão ia”. Para mim, desde cedo o Lucas integrou a família de cães que a literatura produziu desde Homero, e que em português conta, em posição de destaque, com o cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, ou o seu primo próximo, o Kazukuta, de Ondjaki, para não referir os cães de Maria Velho da Costa ou de Maria Gabriela Llansol. Mas foi o cão do poema de Pina que fez do Lucas para mim símbolo de todos os cães, e por isso mesmo, já em vida, pensar no Lucas era pensar no poema de Pina e ao invés. Quando vou às escolas falar das Humanidades aos jovens estudantes, mostro sempre o poema de Pina, para abordar a chamada “questão animal” nas Humanidades de hoje, pois nenhum texto como esse dá a ver aquilo que atravessa e aproxima humanos e cães. Os estudantes ficam em silêncio, quando acabo de ler o poema, e quando recomeço a falar sinto que falo do Lucas.

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Um grande do nosso tempo: Andrea Camilleri

La forma dell’acqua, o extraordinário romance com que se iniciam as aventuras do comissário Montalbano, abre com a descoberta, num baldio usado para fins de comércio sexual, de uma importante figura da política siciliana, o engenheiro Luparello, morto dentro do seu carro, aparentemente vitimado por um ataque cardíaco durante o ato sexual. Os dois “operatori ecologici” (homens do lixo) que o descobrem, Pino e Saro (uma daquelas parelhas de que Camilleri extrai todas as possibilidades involuntariamente cómicas), reconhecem-no e decidem telefonar a uma outra importante figura do partido de Luparello, o advogado Rizzo, braço direito do falecido. O telefonema revela-se surpreendente, pois o dito advogado não só não mostra qualquer comoção, como se limita a sugerir que quem lhe telefona “cumpra o seu dever” junto das autoridades. Cumprido o dever, prestadas as declarações à polícia, com a omissão do telefonema ao advogado, os amigos regressam a casa. Mas Pino nessa noite não consegue dormir. Oiçamos o narrador:

Cabeça especulativa, era dado ao teatro e tinha representado como ator nas voluntariosas mas cada vez mais raras companhias dramáticas de Vigàta e arredores. Gostava de ler teatro: mal o escasso salário lho permitia, corria à única livraria de Montelusa a fornecer-se de comédias e dramas (eu traduzo).

Cabeça especulativa que era, não conseguia dormir, pois o telefonema ao advogado Rizzo continuava a perturbá-lo:

Então pegou num papel e numa caneta e transcreveu o diálogo mantido com o advogado, palavra por palavra. Releu-o e corrigiu-o, forçando a memória até transcrever mesmo as pausas, como num guião de teatro. Quando o teve frente a si, releu-o na versão definitiva. Algo não funcionava naquele diálogo.

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