A sala do Instituto de Estudos Brasileiros acolhe hoje esta exposição das obras publicadas por Pires Laranjeira, bem como das teses que orientou ao longo da sua carreira académica. Na minha qualidade de coordenador do IEB, sugeri empenhadamente à Professora Doris Wieser que a exposição tivesse lugar aqui. Fi-lo, para começar, por sentimento elementar de retribuição, pois quando a lecionação da literatura brasileira no nosso departamento necessitou de ajuda, o Professor Pires Laranjeira esteve na primeira linha desse serviço, de forma inteiramente voluntária. Mas fi-lo também porque os vínculos entre o Brasil e a África de língua portuguesa são um dos roteiros obrigatórios do trabalho dos especialistas nessas literaturas africanas, e Pires Laranjeira não deixou de, também ele, os assinalar e destacar no seu trabalho historiográfico ou crítico. Esta sala, digamos assim, realiza hoje, por meio desta exposição, a triangulação entre Portugal, Brasil e África em que o trabalho, e a vida pessoal, de Pires Laranjeira teve lugar na nossa universidade, uma universidade que é cada vez mais um locus privilegiado para a realização quotidiana dessa triangulação, bem como para a reflexão crítica sobre as suas dimensões múltiplas. Continue reading
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Luís Mourão, o fim in medias res
Em 2011, ou seja, há 10 anos, a pretexto dos 33 anos da publicação de Finisterra. Paisagem e Povoamento, de Carlos de Oliveira, reuniram-se em Coimbra, por convite meu e sob a égide do Centro de Literatura Portuguesa, cinco investigadores para uma jornada sobre a obra. A data não redonda, porventura esotérica, mostra bem que se tratava de reunir alguns “maluquinhos de Finisterra”, no caso Manuel Gusmão, Nuno Júdice, eu mesmo, Pedro Serra e Luís Mourão. Do livro depois publicado não consta a comunicação de Manuel Gusmão, já que o seu texto fora entretanto deslocado para o importante volume que dedicou a Finisterra naquela data, com o título Finisterra. O Trabalho do fim: recitar a Origem, livro publicado na editora Angelus Novus e logo depois premiado. Continue reading
André Jorge e os Livros Cotovia
A notícia chegou há uns meses: os Livros Cotovia vão fechar. Não é, infelizmente, uma surpresa, tantas vezes aguardei esta notícia nos últimos anos, depois e mesmo já antes da morte de André Jorge. Com esta notícia, porém, alguma coisa morre também em mim, quer porque há menos um sítio no meu roteiro pessoal de Lisboa, quer porque enquanto houvesse novos livros da Cotovia a memória de André Jorge se prolongaria naturalmente, se o posso dizer assim.
Em certas coisas, André Jorge era um português típico, mais baixo do que alto, algo pesado, amante de vinhos e da boa mesa, dado a conversas sem prazo nem rumo fixo, oficiante, também ele, do culto de Amália. Noutras, não o era: falava baixo e em tom suave, dificilmente perdia a compostura, não apreciava futebol nem piadas brejeiras. Era tímido, o que se traduzia numa sociabilidade regida por regras de decoro defensivas, a começar pelas formas de tratamento, que usava com consciência, de forma a garantir a distância que só a prazo aceitava diminuir. E tinha uma repugnância instintiva por aquela coisa portuguesa da palmada nas costas e tratamento imediato por tu, ponto em que coincidíamos. Continue reading
Vítor Aguiar e Silva, prémio Camões
Vítor Aguiar e Silva foi ontem distinguido com o Prémio Camões. Creio poder dizer que para os que tiveram o privilégio de ser seus alunos, o dia de ontem foi um dia feliz. Se calhar porque todos sentimos, uma vez por outra, que o deslumbramento que nos tomou na sala de aula não chegou nunca a ganhar tradução fiel, ou sequer aproximada, na vasta produção escrita do nosso mestre. Não é fenómeno único, como se sabe, e muitos falaram antes da forma como a experiência irredutível da sala de aula, experiência formativa sobre todas, parece ter dificuldade em viver para lá da voz e da presença do professor. O que dificulta, ou mesmo impossibilita, a tradução da lição dos mestres em método replicável, coisa por que a escola tanto (erroneamente) anseia, como inversamente o ensino, enquanto encontro com o singular de cada estudante, tanto põe em causa. Continue reading
Dois amigos: Lucas & Manuel
Tínhamos chegado a casa, após a viagem desde a vivenda do Manuel e da Piocha na Atalaia, quando o telemóvel tocou. Era o Manuel, perguntando pela viagem, mas na verdade excitado e ansioso por contar uma história. Tinha a ver com o Lucas, que como sempre correra atrás do nosso carro à saída, bem para lá do portão da casa, até que acelerei para ele desistir e deixámos de o ver. Desta vez, porém, não voltara para casa no prazo habitual, pelo que a certa altura o Manuel teve de sair à sua procura. Primeiro a pé, depois de carro, quando percebeu que ele não estava por perto. “E sabe onde o encontrei? No viaduto sobre a auto-estrada, a olhar no sentido do Norte. Estava a olhar para a estrada que vocês tinham tomado e estava ali parado. Não é incrível?” Concordei, claro, assombrado mais uma vez com o Lucas, e fui contar à Carolina, que ficou tão comovida como eu e como o Manuel.
O episódio que desejo agora acrescentar, saltando uns anos, foi o telefonema do Manuel anunciando a morte do Lucas. Estava velho e alquebrado já na nossa última visita, o passeio que fazíamos os dois ao fim da tarde por alguns quilómetros já lhe custava, parava muitas vezes e bebia água onde e sempre que podia. Continuava a desaparecer da vista de vez em quando, suponho que para perseguir algum coelho ou apenas e só a sua memória olfativa. Naquele dia o Manuel estava abalado, deu-me a notícia da eutanásia do Lucas por meias palavras, fiquei sem saber o que dizer, acho que disse apenas “Que notícia tão triste, um grande abraço, Manuel”, ele tartamudeou alguma coisa, “Pois, pois”, desliguei e fui dizer à Carolina, ficámos abraçados a pensar no Lucas. Continue reading
Luís Mourão (1960-2019)
Agora que o Luís já não está aqui, apercebo-me de que embora ao longe, por vezes demasiado ao longe, e com longos interregnos, a minha vida teve sempre a companhia dele: na aventura da Angelus Novus (lembro sobretudo, não sei bem porquê, a Zentralpark, cujos dois números dirigimos, com o Américo), no Ciberkiosk, para o qual escreveu regularmente uma “Meia crónica”, no Casmurro, em tantas outras coisas e eventos, sem esquecer os mestres pensadores comuns (Eduardo Lourenço, acima de todos) ou a comum paixão pela música. Uma companhia sempre afetuosa e interessada, nas horas boas como nas más, que as houve e em excesso. O Luís dava um abraço em modo sorridente e, a partir daí, o reencontro decorria como se nos tivéssemos despedido ontem. O Luís falava baixo, às vezes quase sussurrava, mesmo em intervenções públicas, e esse tom conversado e íntimo, que era a sua forma de estar presente, era também a melhor tradução da sua forma de pensar. Um modo de pensar que parecia progredir por meandros ou pequenas derivações anedóticas, mas que guardava sempre o segredo de um fio narrativo, como se o ensaio participasse nele ainda da ficção, a sereia de toda a sua vida. Continue reading
Sobre «A Morte sem Mestre», de Herberto Helder
A Morte sem Mestre parece pensado para piorar de vez “o caso Herberto Helder”, naquele ponto em que uma vida que é uma ética, para não ser apenas uma brincadeira mais com palavras, se confunde com a lógica daquilo a que uma certa tradição política gostava de chamar o “inimigo objectivo”: a reincidência na ambígua política da tiragem única (uma boa estratégia de produção de raridades), a passagem à editora industrial, o silêncio da recusa acompanhado do bónus da Voz em CD anexo (muito dispensável, diga-se, ao contrário do sucedido em gravações antigas do poeta). Herberto merece ser pensado fora deste quadro, mas será que podemos eliminar do quadro alguma ambiguidade constitutiva?
De resto, e pese embora ao “estilo tardio” dos últimos três títulos do autor, patente na radicalização de uma “política de língua” que, em A faca não corta o fogo, recuperava com grande pertinência crítica uma ideia lata de português, entre o de cá e o do Brasil, nos ecos insistentes do “rio camoneano” e bíblico, na contundência mais pronunciada sobre o mundo público e, claro, na raiva, de um poeta já ancião, contra o declínio da luz – tudo nestes livros pode ser resumido em versos antigos de Flash: “Sei que toco. / Que há uma combustão nas partes sexuais / da minha morte”. Herberto é um poeta muito legível, na sua insistente lógica interna e no vocabulário que essa lógica elege, e daí a sugestão, muito pertinente, de uma obra que seria um “poema contínuo”. Que contudo, como sabemos do próprio livro com esse título, não exclui um afã auto-corrector e auto-antologiador. A Morte sem Mestre é um momento mais desse continuum em que uma vida e uma escrita se desejam uma só coisa, embrulhada e agónica, no seu combate por uma mútua tradução impossível. Continue reading
Considerações demasiado pessoais sobre o poeta bissexto Manuel Resende
Creio que o meu primeiro contacto com Manuel Resende foi telefónico. Já o conhecia de livro, quer como poeta quer como tradutor, e de blog, na época da grande explosão desse meio, quando todos os dias nasciam novos blogs, novos autores e novas versões do que seja um autor – e uma dessas versões dava pelo nome, por vezes um tanto agreste, de Manuel Resende. Tínhamos tomado a decisão, o Américo Lindeza Diogo e eu (na altura, sócios maioritários da Angelus Novus, Editora), de tentar editar um volume de poesia de Manuel Resende e fiquei encarregado de o contactar. Falei com Manuel António Pina sobre o assunto e ele manifestou de imediato o seu entusiasmo com a ideia, uma vez que nutria um grande apreço pelo Resende Poeta, a seu ver insuficientemente valorizado. Da conversa, ou não fosse Pina um conversador sem igual, começou a surgir o perfil lendário de Manuel Resende, o revolucionário de mil episódios de abril (e de antes de abril) ou o poliglota sem par (que, jurava Pina, aprendera alemão lendo O Capital, de Marx, com dicionário ao lado, coisa que o próprio desmente, embora sem me convencer; digamos que prefiro acreditar no Pina).
A estes dois Resendes fui depois acrescentando outros, a partir do momento em que comecei a frequentá-lo em presença: o tripeiro com um gosto perverso por acentuar o sotaque e o vernáculo saboroso, sobretudo se em contexto cosmopolita ou “sulista”; o leitor obsessivo do primeiro Wittgenstein, pela via da sua paixão por lógica e matemática, que o levou ainda a Quine e outros (não me lembro de ter discutido com o Manuel a questão do místico no Tractatus, quando me apercebi, na casa de Santarém, da sua longa leitura da obra, e bem me arrependo disso: fica para a próxima, em Cascais); o fã do “cigano”, isto é, de Ricardo Quaresma, na altura em que ele fazia miséria na ala esquerda do ataque no Dragão, suscitando às vezes telefonemas entusiásticos; o palestiniano com o qual raramente consegui discutir o direito de Israel a existir enquanto Estado; o filólogo, isto é, a pessoa com amor pela linguagem e, antes disso, pelos muitos idiomas do mundo, com quem mantive pequenas e grandes discussões, sempre proveitosas, ou sobre palavras ou sobre filosofia da linguagem, e que sempre me pareceu, enquanto pessoa, a ilustração mais aproximada da temível ambição contida na frase com que Erich Auerbach encerrou o seu grande ensaio “Filologia da Weltliteratur”: “A nossa pátria filológica é a terra inteira”.