O conto do angolano Ondjaki, “A libélula”, do livro E se amanhã o medo (2005), encena um não-evento – um médico que, ao domingo, enquanto escreve na varanda da sua casa e ouve música, abre a porta a uma mulher que pede um copo de água – harmonizado por canções de Adriana Calcanhotto que se ouvem em fundo: “Na aparelhagem o som acontecia contínuo, ininterrupto. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo, durante extensos momentos, a voz de Adriana Calcanhotto”. O médico, em paz com o mundo, e desde logo com o mundo animal simbolizado na libélula que pousa perto dos seus materiais de escrita, tenta reconquistar memórias, escrevendo: “Gatafunhos, memórias recusadas, esquebras de horas mais sensíveis que escusava aceitar como suas. ‘Eu perco o chão, eu não acho as palavras’ – a voz cantava”. As canções, do disco A fábrica do poema, de 1994, pontuam, comentam, suturam o fio narrativo, feito de quase nada, dessa história em que um homem de classe alta e uma mulher de classe mais baixa se encontram fugazmente em torno de um copo de água, umas breves palavras, e uma voz que canta. A mulher confessa, a certa altura, que ganhou coragem para pedir água naquela casa “ – Por causa da música… Esta voz tão doce”. O médico esclarece de que cantora se trata e a mulher pergunta: “ – É poeta? /– Também.” No final, a mulher deixa a casa e afasta-se lentamente pelo passeio enquanto a música recomeça, pela última vez: “minha música quer estar além do gosto, não quer ter rosto, não quer ser cultura”. A transcrição dos versos não respeita a quebra do verso, sugerindo um contínuo que seria o do som que vem da aparelhagem, na qual o disco toca sem parar, de “Bagatelas” a “Minha música”. Mas sugerindo também que a música das palavras faz corpo com o mundo, estando assim além do gosto e da cultura, o que a intrusão da mulher que responde à música para pedir ali, e não na porta seguinte, o copo de água, parece corroborar (embora, por outro lado, o ritual domingueiro do médico sugira todo um gosto e toda uma cultura que empatiza, dir-se-ia que naturalmente, com a música que vem, em português, do outro lado do oceano).
Na sua primeira Master Class como Professora Convidada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no ano letivo de 2017-2018, Adriana Calcanhotto evocou um decisivo episódio formativo. Às escondidas do pai, cuja formação musical jazzística o levava a rejeitar a música mais popular, a jovem Adriana ouvia, com a ajuda da empregada, as rádios justamente populares. Num desses momentos, Adriana ouve um cantor então famoso, Fagner, a cantar algo que a marcou para sempre e que veio depois a saber ser a canção que o referido cantor e compositor produziu, e gravou em 1981, a partir do poema “Traduzir-se”, do poeta Ferreira Gullar. Registemos a presença da grande poesia de Gullar, mas notemos sobretudo a força da rádio, como meio propício a quase epifanias, numa cultura, a brasileira, que sofre um permanente curto-circuito entre o acesso tradicionalmente restrito às formas de arte consagradas e uma massificação que desde cedo impôs a sua lógica, impondo também as suas formas preferenciais de expressão mediática: a música popular e as novelas (primeiro radiofónicas, depois televisivas), sendo que entre as duas, que aliás exprimem a passagem histórica da rádio à TV, desde sempre se estabeleceu uma aliança produtiva. Na canção “Maldito rádio”, Adriana explora essa como que precedência aural do rádio na ecologia sonora moderna, que impõe a audição do que se não deseja, neste caso canções que fazem pensar num amor passado: “Maldito rádio não me faça pensar nela / Volte pras notícias / Para o hit da nova novela / Maldito rádio, maldito rádio”. A rádio, como o inconsciente, não desliga, funciona apesar de uma vontade negativa que denuncia o desejo que recalca: “Não é momento / De reprisar canções que são só minhas / Maldito rádio não me faça lembrar dela / Volte pros anúncios / Para o hit da nova novela / Maldito rádio, maldito rádio”. No contínuo sonoro da rádio só o desejo tem o poder de inscrever cortes, formas insustentáveis de posse como a dessas “canções que são só minhas”, no sentido em que o desejo se apodera da música, e das palavras, que dizem ou resumem um momento de fulgor. Mas na medida em que o momento fulgurante está destinado a sobreviver apenas na memória, a canção em reprise, ou loop, abre no corpo que transporta essa memória a ferida da repetição impossível: cada repetição reabre a ferida do que já não se repete, assim como a reivindicação desesperada da posse da canção nos dá a ouvir o gemido surdo da ausência de posse. O apelo à reinstituição do contínuo sonoro – “Volte pros anúncios, etc.” – é o apelo a um mundo sem a inscrição da diferença do desejo, um mundo de puro ruído, em que o fenómeno físico da audição subjugue e anule o envolvimento psíquico e afetivo da escuta – a escuta daquilo que é só meu. A canção “Maldito rádio”, de forma curiosa e inteligente, espraia-se numa melodia suave que não produz diferença a não ser no refrão, exigindo toda uma arte vocal de subtileza de acentos, reproduzindo assim o contínuo da rádio e exigindo uma análoga arte da escuta, e resumindo a inteligência da arte de Calcanhotto.
Os cantores da rádio são cantores do amor e Adriana também (por todos os seus versos de amor, lembro estes, gostosamente imorais, de “Beijo sem”: “Eu não sou mais quem / você deixou, amor / Vou à Lapa, decotada / Viro todas, beijo bem”). Mas o amor que cantavam os trovadores, que Adriana referiu e cantou nas suas aulas em Coimbra, não é o mesmo que cantam os cantores de hoje. E não é o mesmo porque agora os meios são outros, como acabamos de ver a propósito da rádio e, antes, da aparelhagem. No texto ensaístico talvez mais exaustivo dedicado à cantora, a introdução à recolha de letras de Adriana, Para que é que serve uma canção como essa?, de 2016, Eucanãa Ferraz chama a atenção, a partir do mesmo episódio radiofónico e doméstico, para a situação pós-Tropicalista da cantora, já que quando ela surgiu na cena musical, “O Tropicalismo tornara-se matéria incorporada à música brasileira, a qual abrira inúmeras possibilidades e combinações imprevisíveis”[1]. É o que ocorre em duas canções emblemáticas de Adriana, “Parangolé Pamplona” e “Vamos comer Caetano” (ambos de Maritmo, 1998), em que dois famosos autores tropicalistas, Hélio Oiticica e Caetano Veloso, são apropriados como ícones da emancipação pela arte (do DIY, no primeiro caso, e da devoração antropofágica oswaldiana no segundo), mas sobretudo são usados enquanto media para uma prática musical e verbal que faz do meio – o remix tropicalista de influências, sem preconceitos estilísticos à partida – a sua mensagem, (e)levando a devoração e o choque estilístico a um novo patamar. “Maldito tropicalismo”, seria caso para dizer, que exatamente porque não pára de tocar na rádio, exige uma nova modalidade de inscrição (de meta-inscrição) das suas práticas.
A inteligência com que Adriana gere os meios com que trabalha esteve bem patente numa das grandes criações que foi testando nos concertos que fez durante a sua estadia em Coimbra, ou, nesse período, noutros lugares e noutras universidades a que a acompanhei. Refiro-me à sua apropriação de um dos grandes poemas da fase inicial de Adília Lopes, incluído no livro A pão e água de colónia, de 1987: “A minha Musa antes de ser / a minha Musa avisou-me / cantaste sem saber / que cantar custa uma língua / agora vou-te cortar a língua / para aprenderes a cantar / a minha Musa é cruel / mas eu não conheço outra”. Ainda não gravado por Adriana, por razões que creio se tornarão compreensíveis adiante, o tema consiste numa linha melódica básica, que Adriana tocava na sua Fender vermelha comprada em Lisboa, de não mais de dois acordes, criando um fundo sónico sobre o qual ia dizendo o poema, de forma muito incisiva e não sentimental. O poema era repetido 3 vezes, em crescendo, e na terceira vez Adriana, que lia ostensivamente o poema impresso num papel, rasgava-o aos poucos, mimando a punição com que a Musa recompensa quem se dedica a cantar a língua. Adriana performou o tema a solo ou acompanhada por um guitarrista, o que lhe permitia um desempenho mais completo, sem a preocupação de cuidar do acompanhamento sónico. Em Braga, na Universidade do Minho, um jovem estudante que, a solicitação de Adriana, se voluntariou para a acompanhar à guitarra, continuou a tocar, de joelhos, quando a correia da guitarra saiu do sítio, impedindo-o de a segurar e tocar de pé: Adriana continuou a sua performance e o improvisado guitarrista também, com o manifesto auxílio da Musa, num momento inesquecível. Não sei bem que performance prefiro, de todas aquelas a que assisti do tema, em Coimbra, Braga e Porto (na Faculdade de Letras), mas percebi que a cada concerto Adriana alterava e melhorava algum aspeto da execução, permitindo-me reconhecer nela uma performer que pensa a cada momento os meios com que trabalha – neste caso, a poesia, a guitarra elétrica e a performance (a centralidade da performance, o cunho sobretudo sónico do acompanhamento, justificam talvez que o tema, pensado para espetáculo ao vivo, não tenha sido ainda gravado). Uma performer que sabe sempre, de ciência certa, que a Musa é cruel mas que não há outra.
[1] O texto de Eucanãa intitula-se “Pra que é que serve um livro como esse?” e a citação ocorre na p. 19.
[Texto publicado no nº 4, 2021, da revista A Morte do Artista]