A segunda arguição que aqui publico teve como objeto a tese de doutoramento apresentada por Humberto Brito ao Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a 19 de dezembro de 2007, com o título PESSOAS COMO NÓS. Uma discussão da Poética de Aristóteles, sob orientação de Abel Barros Baptista e António Feijó. O candidato viria depois a ser selecionado para o primeiro colóquio da iniciativa “Primeiras Teses. 1º Encontro de Jovens Investigadores em Estudos Literários”, coordenada por mim no âmbito do Centro de Literatura Portuguesa, colóquio que teve lugar a 12 de novembro de 2010. Do colóquio publicou-se, com a chancela do CLP, um volume homónimo, em 2011.
A dissertação de doutoramento em Teoria da Literatura apresentada pelo candidato Humberto Brito, com o título Pessoas como nós. Uma discussão da Poética de Aristóteles, é uma obra que honra a teoria da literatura produzida em Portugal e, mais latamente, a universidade portuguesa. Mais do que isso, é uma obra que evidencia o facto de que existe já uma tradição da teoria da literatura em Portugal, tradição para a qual não se pode deixar de tomar em conta o trabalho do Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, programa que neste momento desejo publicamente saudar.
A dissertação de Humberto Brito é, em vários aspetos, exemplar daquilo que se deve esperar de uma dissertação de doutoramento: capacidade de delimitação de um problema e tenacidade na tentativa para o resolver, ou melhor, para dar resposta às questões que o problema coloca; informação bibliográfica actualizada e capacidade de discriminação e hierarquização dessa bibliografia; capacidade analítica e argumentativa; pensamento estrutural na composição da obra e na sintaxe da argumentação; enfim, capacidade de escrita.
Não desejo pois ocultar por mais tempo que esta dissertação me causou uma profunda impressão, pela extrema inteligência de que o seu autor dá mostras, pelo brilho da sua capacidade analítica e silogística, enfim, pelo risco de assumir uma tese controversa e bater-se por ela, com uma energia intelectual sem um esmorecimento, da primeira à última palavra do texto. Numa altura em que a indústria académica de teses se especializou em protocolos esvaziados de risco e, justamente, de tese, os riscos assumidos pelo candidato são obviamente de saudar, o que faço sem qualquer reserva. Mesmo que a resposta do candidato ao desafio assumido não fosse de teor a convencer-nos da pertinência (inteira ou parcelar) das suas razões – e é esse, adianto desde já, o meu caso – não creio que isso diminua os méritos deste trabalho, tanto mais que uma dissertação académica é, ou deve ser, antes de mais, em meu entender, uma modalidade de inquirição cuja validade não depende de um eventual consenso sobre a pertinência dos seus resultados, mas sim sobre a qualidade (e, no caso deste trabalho, deveríamos dizer «a intransigência») dessa inquirição. Porque esta é uma obra frequentemente excecional pelo rigor e intransigência da sua inquirição, mais ainda se tivermos em conta que o seu objeto é um aqueles textos justificadamente venerandos que, como diria Nietzsche, desapareceu já sob o comentário dos séculos, e ainda porque, e seja-me permitida esta nota duplamente admirativa, o autor beneficia ainda do cartão jovem. Por tudo isto, quero também deixar desde já dito que o candidato teria de realizar uma prova ruinosa para que, quando daqui a momentos o júri se retirar para deliberar sobre a dissertação em pauta, eu não lhe atribuísse a classificação máxima.
Dito isto, que, repito, fica dito sem qualquer reserva mental, permito-me entrar em matéria, chamando a atenção para alguns contrastes deste texto. Porque gostaria de explicitamente elogiar algumas das páginas desta dissertação, escolho, por sinédoque, as páginas em que o autor, a propósito da noção aristotélica de reconhecimento, refuta a versão de Jonathan Lear da «consolação» que a boa tragédia nos ofereceria e que, na sua leitura, nos aproximaria antes das bondades da indiferença e do cinismo: «Chamar benefício a permanecermos frios perante o futuro é um consolo talvez caro de mais para um argumento sobre a Poética – para não dizer, claro, sobre a vida (coisa que, a propósito, as tragédias imitam)», p. 165. Estas páginas, da 164 à 166, são um dos melhores exemplos da capacidade do candidato para articular a Poética com outros lugares decisivos do corpus aristotelicum, em especial a Ética a Nicómaco e a Retórica, mostrando, contra Gerald Else, por exemplo, que não é de todo possível ler a Poética «out of itself», ou seja, a partir de si mesma.
Mas esta passagem é ainda de notar por nos permitir apreciar, quero dizer: saborear, formulações como estas: «Alguém poderia aliás sugerir que, desse ponto de vista, as tragédias ofereceriam um paliativo homeopático compósito…» (p. 165); ou «Em algum momento a katharsis viria a perder o efeito ou a sua função viria, se quisermos, a perder pertinência posológica» (p. 166).
Como disse antes, gostaria de contrastar passos como estes com outros que, lamento dizer, não estão à altura destes, talvez por se esforçarem em demasia por estarem à altura de uma tradição teórica traduzida obsessivamente em nomes como «estipulação» ou «sobredeterminação» e de uma tradição, claramente analítica, traduzida em nomes como «descrição» ou «redescrição» e no verbo «descrever» ou «redescrever». Permito-me aduzir um exemplo pouco feliz deste segundo caso: «Aquilo que nos é descrito não parece ser por isso uma teoria estrutural da mimese poética, mas antes da descrição de uma técnica que permite descrever o modo como alguns aspectos filosoficamente relevantes de certas narrativas são tornados inteligíveis» (p. 155, l. 12). Ou ainda, e mudando um tanto de agulha, uma ocorrência de um certo fetichismo tecnicista, na expressão «especificações tácitas extrapolativas» na frase «uma nova versão de katharsis pela qual procura superar os problemas relacionados com especificações tácitas extrapolativas sobre a natureza de certos tipos de público» (p. 128). Na perspectiva de uma edição desta dissertação, sugiro ao autor que, recorrendo ao Find, no Word, «limpe» o texto destes momentos mais cansativos (é o caso de «descrever», «descrição», etc., mas também do uso algo excessivo de «intrigante», já agora) ou claudicantes, até porque quem escreve páginas como as que antes destaquei não precisa de ceder a este tipo de fetichismos.
Passaria agora às reservas que a sua dissertação me suscita, mas antes disso queria fazer-lhe duas perguntas muito diretas e de âmbito relativamente restrito (numa delas, um âmbito não tão restrito assim). A primeira pergunta tem a ver com uma derivação, aliás muito pertinente, pelo readymade de Duchamp, e com a frase seguinte: «Este breve excurso serve para observar que o suporte é puramente contingente, ao contrário do que, para voltar a recintos, Marcel Duchamp escandalosamente supôs em relação a museus, invertendo porém a ordem da transformação ontológica atrás descrita, imaginando que, pelo contrário, o simples contacto com certos recintos fechados transformaria objectos inanimados em objectos de arte» (pp. 114-5).
A pergunta é esta: uma vez que não estão em causa as artes performativas (ou a bioarte), em que sentido é que «objetos de arte» – chamo a atenção para a sua deliberada objetificação da obra de arte – não são objetos inanimados?
A segunda pergunta é mais ampla e tem a ver directamente com a nossa disciplina. Na p. 36, no último parágrafo, o Humberto diz, de forma excelente, isto: «Uma implicação imediata dessa hipótese seria passarmos a considerar que, apesar de ter sido o texto fundador da teoria da literatura, talvez a Poética de Aristóteles não seja exactamente uma peça de ‘teoria da literatura’; isto é, pode ser que não seja exactamente sobre ‘literatura’. E como qualquer especialista de hoje concordaria em afirmar, entendida deste modo, a ‘teoria da literatura’ teria nascido de uma série de equívocos e da leitura de traduções da Poética fundamentalmente distorcidas. Com efeito, por fim, só entre aspas se passou a considerar teórica e historicamente a tragédia ática como ‘literatura’, ou a crítica do Renascimento como ‘teoria da literatura’, e, entre vários outros factores, atribui-se a Aristóteles a primeira descrição positiva da formação dessas aspas».
A pergunta é esta: se a Poética não é «sobre ‘literatura’» (não posso deixar de notar o sofisticado sistema de diacríticos nesta passagem, tão típico da teoria: é como se o Humberto nos estivesse a apresentar o seu BI de teórico pós-, ou pós-teórico), então é sobre quê?
Passo enfim às reservas que a sua tese central me levanta. Reservas e resistências, devo dizer, que me acometeram logo desde as primeiras páginas do seu texto e que andaram sempre a par do fascínio pela forma quase sempre tão brilhante como o Humberto defende uma tese a meu ver insustentável. A tese é apresentada logo no início da obra e podemos usar a seguinte versão dela: «qualquer candidato a argumento verdadeiro sobre a Poética respeita (…) a ideia, atribuída a Aristóteles, de que existe uma relação causal necessária entre a natureza mimética das tragédias e os efeitos da contemplação das tragédias sobre as pessoas, mediante a experiência de uma catarse de ‘tais paixões’» (p. 15). A tese está aqui contida, em modalidade denegada, pois o inciso «atribuída a Aristóteles» sugere que, como depois o autor desenvolverá ao longo da dissertação, (i) a ideia da relação causal necessária entre a natureza mimética das tragédias e os efeitos da sua contemplação – a catarse – não é de Aristóteles mas dos seus comentadores; e (ii) não é possível afirmar que as propriedades formais das tragédias têm um efeito automático sobre as pessoas que formam a sua audiência, não sendo ainda possível (iii) tipificar a natureza desses efeitos (éticos, estéticos, terapêuticos, etc.) e (iv) tipificar a natureza do público das tragédias.
Uma outra forma de colocar o problema, e recorrendo ainda a palavras do candidato, seria dizer que (p. 29) «as teorias da mimese abstraídas da Poética foram sempre sobredeterminadas por esta ou aquela noção de catarse, logo, por esta ou aquela maneira de especificar tipos de público – segundo esta ou aquela maneira de suplementar ou de corrigir qualquer coisa, certa falha (moral, psicológica ou existencial) nas pessoas que formam públicos deste ou daquele tipo».
O problema residiria então na leitura que o Humberto Brito faz da famosa definição de tragédia no cap. 6 da Poética, que não posso deixar de transcrever: «A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões» (Ana Maria Valente, supervisionada pela Doutora Rocha Pereira, p. 48). Na p. 34, ao fundo, da sua dissertação, resumindo alguns dilemas filológicos da leitura da Poética, Humberto afirma que «devemos olhar de novo para o seu texto – enfim, para o que dele resta – e tentar perceber se Aristóteles está certo ou errado, se aquilo que afirma é verdadeiro ou é falso, em vez de apenas continuar a traduzir para moderno aquilo que a Poética diz». Ora, Humberto entende que, quando se olha para o texto, a relação causal necessária entre a mimese da ação trágica e a catarse não está lá. Ou seja, o erro, a existir, e para Humberto é claro que há aqui um erro de causação, não é de Aristóteles, mas sim daqueles que se foram encarregando de submergir o texto sob o comentário – e, antes deste, sob a filologia e, depois desta, sob a tradução, que contudo pressupõe em simultâneo filologia, tanto quanto esta pressupõe interpretação. Ora, o meu problema, e declaro-o já, é que se concordo com Humberto Brito em que, em tese, me parece inaceitável a ideia de que havendo tragédia deverá haver catarse – não sei se isto é «traduzir para moderno» mas já me ocorreu assistir a tragédias sem que a compaixão e o temor me visitassem, e menos ainda a catarse (e já sofri catarses com canções dos Beach Boys) – mais inaceitável me parece contudo pretender que quando se olha para o texto, não é exatamente isso que Aristóteles está a dizer. Ou seja, e aqui vejo-me forçado a divergir do autor, a haver aqui erro ele pertence por inteiro a Aristóteles, pois ao longo da Poética o estagirita não cessa de dizer que a boa tragédia (e, em rigor, apenas duas, como sabemos) suscita necessariamente compaixão e temor.
Tenho por isso uma extrema dificuldade em aceitar que, como Humberto Brito afirma mais adiante, na p. 139, «como Else percebeu, e como Golden tão influentemente ignorou, Aristóteles nunca afirma de maneira inequívoca, seja como for, que o efeito de catarse, relacionado com o reconhecimento de acontecimentos dignos de compaixão e temor, seria um efeito necessário, isto é, produzido automaticamente por todas as tragédias». De novo, o meu problema é que não consigo ler a definição aristotélica de tragédia senão como a afirmação desse vínculo automático e necessário entre mimese trágica e catarse. Numa jogada inteligente, Humberto afirma que «A causalidade de que se fala explicitamente na Poética refere-se a princípios causais internos a certas imitações, e não a qualquer causalidade entre a causalidade de imitações e as pessoas» (p. 139). Posso reconhecer pertinência a esta qualificação, desde que ela não exclua a «causalidade entre a causalidade de imitações e as pessoas», que Humberto, aliás, mais à frente reconhece e recupera, ainda que com objecções: «Objetar-se-á que Aristóteles assume que existe, em todo o caso, uma relação de causalidade entre X e Y. É inegável que esse nexo causal é presumido; mas parecemos ter várias razões para acreditar que essa relação não é, para Aristóteles, necessária ou universal» (p. 140).
Não me parece – e parece-me, sim, que Humberto Brito acaba por se encontrar permanentemente na posição de quem deve advogar para Aristóteles um saber não-contingente sobre a tragédia e, já agora, sobre a obra chamada Poética –, ao contrário do saber de todos os seus exegetas. Desse ponto de vista há várias passagens impressionantes nesta dissertação e permito-me recuperar duas. Na primeira, sobre a questão das pessoas que assistem a tragédias (pp. 149-50), Humberto diz-nos que «Talvez seja por essa razão que Aristóteles não é explícito na Poética sobre o público das tragédias. Quer dizer, não avançar uma teoria sobre o público talvez denote que a katharsis não seria, do seu ponto de vista, muito sensatamente, uma reacção geral, automática, abrangente, sequer necessária. De facto, o que quer que katharsis fosse, Aristóteles jamais se inclina a sugerir na Poética, ao contrário do que habitualmente se julga, que a katharsis acontece necessariamente a toda a gente. A única indicação a este respeito reduz-se a um uso isolado da palavra na problemática Katharsisfrage, na qual, por muito que custe admitir, nada se sugere acerca de uma relação geral de necessidade, e muito menos de essa ser uma resposta geral do público».
Esta passagem é impressionante pelo seu investimento ético. Humberto chega a dizer-nos que Aristóteles não avança com uma teoria sobre o público por sensatez: a certo ponto, temos dificuldade em perceber se quem fala é Humberto Brito ou Aristóteles, tal a convicção com que o primeiro nos supõe as intenções do segundo. Quanto ao «uso isolado da palavra catarse», é caso para dizer que este uso isolado vale 100% – e a ênfase com que o autor recusa que nele se sugira mais do que «nada» sobre as questões em pauta, parece ter muito a ver com a necessidade de debilitar uma ocorrência que pesa demasiado e que é muito mais do que nada. É, simplesmente, tudo o que temos.
Mas este passo é reforçado por um outro, na página seguinte, em que Humberto nos dá a ver a sua obstinação: «O desastroso resultado dessas tentativas é, assim, um conjunto desproporcionado de razões arrevesadas para sugerir nada mais, nada menos, que Aristóteles, afinal, estava errado». A pergunta aqui poderia ser: e por que é que não haveria de estar? Porque, como Humberto diz a seguir, na p. 151, «a única maneira de levar Aristóteles a sério» é a que consiste em «evitarmos falar sobre públicos verdadeiros ou sobre reacções humanas» (p. 150). Não consigo deixar de sentir que Humberto Brito, de forma não raro brilhante, nos quer apresentar um Aristóteles tal como ele deveria ser, e não tal como ele é.
Termino com aquele que me parece ser o traço mais surpreendente desta dissertação, e provavelmente o mais notável do trabalho analítico e argumentativo do seu autor. Refiro-me à forma como, em perfeita lógica, Humberto demove, a certa altura, a catarse do seu lugar supostamente central na argumentação da sua tese e como promove a esse posto a anagnórise, que é o verdadeiro herói concetual do seu trabalho. Ao fazê-lo, revela a sua filiação na linhagem de Gerald Else, já que a ênfase colocada na anagnórise – nos vários reconhecimentos que se encaixam na fenomenologia da tragédia – implica uma recuperação da centralidade do mythos e, de certa forma, uma centralização do reconhecimento no mythos, ao preço de uma certa desvalorização da catarse no edifício complexo da tragédia. Ou melhor, da especificidade trágica da catarse, já que, na lógica da sua argumentação, o sentido do termo devém não técnico e generaliza-se artística e antropologicamente. Adorno já o fizera, mas para negar, denegar e arrastar a catarse até um estado de pura negatividade.
Felicito-o de novo pelo seu trabalho e gostaria então de o ouvir sobre as minhas objeções.