Ângela de Oliveira, viúva de Carlos de Oliveira, faleceu a 15 de fevereiro de 2016. Em 2017, José Manuel Mendes recolheu uma série de testemunhos num livro, a que deu o título Carta a Ângela, livro que veio a ser objeto de lançamento a 1 de abril de 2017, no âmbito da primeira exposição do espólio de Carlos de Oliveira no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. O texto que se segue é o meu testemunho sobre Ângela, incluído nesse livro (pp. 85-99).
A CRIPTÓGRAFA DE SONO FÁCIL
Numa carta a Augusto Abelaira com data de 27.01.1974, hoje incluída no espólio de Carlos de Oliveira no Museu do Neo-Realismo, este refere, a certa altura, o seu poema «Bolor», que viria a surgir como epígrafe ao romance homónimo de Abelaira, nos seguintes termos: «…a cópia de ‘Bolor’ que lhe entreguei há dias não está certa. Tem num único verso o que devia estar em dois. Dei por isso casualmente, ao passar a limpo o poema para a tradutora italiana. Um engano da Ângela. De modo que resolvi enviar-lhe outra cópia, definitivamente certa, para a portada do seu romance».
O engano é «da Ângela» porque era ela a quem cabia, na divisão do trabalho literário no casal, passar a limpo a escrita de Carlos. Este, porém, corrige o lapso, na forma de uma «outra cópia, definitivamente certa». A formulação é curiosa, ainda que reveladora, vinda de um autor para o qual nada parecia certo em definitivo, e tanto assim é que passou a vida a reescrever os seus textos, mesmo depois de publicados (às vezes, muito depois). Mas a ontologia do processo manifesta-se inteira, mesmo numa carta, e mesmo perante um episódio que se diria circunstancial: Carlos escreve à mão, Ângela datilografa, Carlos reescreve, neste caso, «definitivamente». O processo detém-se, e é na forma como ele é lançado, tanto quanto na decisão de o deter, que assistimos à constituição, sempre problemática, do autor. Só na aparência, contudo, o papel de Ângela é secundário e, a esse respeito, conviria admitir o carácter enganador deste excerto de carta. Por duas razões, pelo menos: porque é sempre sobre o dactiloscrito de Ângela que operam as correções posteriores, o que significa que é o dactiloscrito a peça central do processo de escrita (o suplemento – do manuscrito, neste caso –, é, manifestamente, bem mais do que um suplemento); porque a ideia de uma cópia «definitivamente certa» é uma ilusão metafísica simétrica daquela outra que buscaria no espólio do autor o manuscrito «original» – ou o dactiloscrito final. O primeiro existe pouco, e percebe-se que foi sempre encarado como instrumental para a passagem ao dactiloscrito, ou seja, para a entrada em cena de Ângela. O segundo, quando existe, está mais ou menos saturado de correções manuscritas, revelando de novo a distribuição do trabalho entre os dois.
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Não sei onde e quando encontrei Ângela de Oliveira pela primeira vez. Na verdade, não quero saber, pois assim guardo melhor a sensação de que não houve primeira vez nem última (sobretudo esta). Enquanto a idade não a vergou, o que levou tempo a acontecer, Ângela impunha-se pela beleza e pelo sorriso comunicativo com que nos saudava e perguntava por nós e pelos nossos. Rapidamente, porém, a conversa se orientava para «o Carlos» e logo se manifestava a sua lendária disponibilidade para esclarecer algum ponto biográfico ou relativo ao processo de gestação da obra, assim como a generosidade com que punha ao dispor dos estudiosos materiais da obra. Desse ponto de vista, Ângela estava nos antípodas da temível figura da «viúva de escritor» e era claro que faria tudo o que estava ao seu alcance para manter acesa a curiosidade dos leitores empenhados na obra de Carlos. Num sentido profundo, continuava a ser secretária e coescritora de uma obra de que é uma personagem recorrente, sob nome de Gelnaa, entre outros. E era-o de uma forma a um tempo generosa e firme, na defesa da obra mas também na das «últimas vontades» de Carlos. A capacidade para conciliar essa firmeza com a disponibilidade com que acolhia pessoas e pedidos de acesso a materiais é seguramente um dos aspetos mais singulares do perfil de Ângela.
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Na secção 7 do extraordinário texto «Na floresta», de O Aprendiz de Feiticeiro, podemos ler: «Falei sobretudo de árvores e amor. Chegou a altura de oferecer este livro a Gelnaa, mulher-floresta, acolhedora e imperscrutável». Tudo parece, pois, ser escrito para ser endereçado a Ângela; mas tudo é «passado a limpo» também por Ângela, o mesmo é dizer, tudo é dactilografado por ela. A imaginação literária de Carlos de Oliveira parece necessitar desse momento em que a máquina de escrever faz com que o texto aceda ao «Teste de Gutenberg» a que se refere em carta a Alexandre Pinheiro Torres, de 1973: esse momento em que a regularidade da inscrição maquínica liberta o texto da idiossincrasia caligráfica. Ou, noutros termos, ainda do texto «Na floresta», desse momento em que entra em cena a paciência de Gelnaa, «que se tornou o meu criptógrafo. Decifra a escrita semi-secreta e copia-a à máquina. Torno a corrigir, a emaranhar. Nova cópia, novas correções. Etc.»
Na aparência, esta distribuição de tarefas reserva a Ângela o papel feminino, ainda que moderno, da dactilógrafa. «Feminino», ou seja, secundário, passivo, meramente reprodutivo. Uma outra ilusão, pois se aceitássemos o binarismo dos papéis sexuais implícitos nessa distribuição, seria difícil não ver em Ângela tudo o oposto. De facto, na medida em que lhe cabe pôr a funcionar o «Teste de Gutenberg», cabe-lhe deslocar-se para uma espécie de princípio de produtividade mecânica, ao qual vai sendo acrescentado o capricho caligráfico da correção mais ou menos preciosa. É aqui que uma outra distribuição opera, ao longo da obra: a que contrapõe a tortura de Carlos à facilidade de Gelnaa. No texto «Manual de Jogos», ainda de O Aprendiz de Feiticeiro, a ficção bibliográfica que sustenta o texto, a partir de um livro comprado num «alfarrabista pobre» de Coimbra, conduz o autor à exaustão patente nas últimas palavras do texto:
Volto onde fiquei ao adormecer: e as… os… ou… O quê? Inútil insistir. A caligrafia enorme, desconjuntada. A cortiça, o frio, pelo braço acima. Como nos pólos. Se me vissem agora diriam:
– Homem, vá-se deitar.
Está bem. É um bom conselho. Mas o sono fácil de Gelnaa irrita-me. Francamente. Dormir desta maneira.
Inveja. Quase furor. Ternura?
A facilidade com que decifra a maranha caligráfica, ao produzir o dactiloscrito, é a mesma com que Gelnaa gere o ciclo do sono e da vigília. Tudo nela é desdramatização, ao contrário da dramatização sem a qual não parece poder existir a escrita hipercorretiva de Carlos. A inveja deste é para levar a sério, já que o que se inveja não é apenas o sono fácil, mas aquilo por que ele está: esse momento constitutivo da escrita que é o «passar a limpo», que contudo vem sempre acompanhado de um cortejo de ilusões. A ilusão de que passar a limpo esclarece o processo criativo, quando não faz senão relançá-lo, uma e outra vez; a ilusão de que se pode interromper, pelo sono, aquilo que faz contínuo entre vigília e sono, justamente porque é da ordem da obsessão, ou melhor, da pulsão (por definição, ininterrompível). O decisivo nesta cena, porém, não é a inveja, mas a consciência irritada de que um e outro momento, uma e outra atitude, são parte de um mesmo processo escritural e criativo. Um e outro, Carlos e Gelnaa, são parte de um mesmo trabalho de produção do texto e, necessariamente, de produção do autor que se responsabiliza por ele. A cena é doméstica, sim, mas antes disso é amorosa, vale dizer, ontológica: «Eu sem ti não conseguiria ser aquele que se assina nos livros, desde logo porque não me consigo decifrar e passar a limpo; na verdade, nunca o faço plenamente, apenas suspendo o processo até à próxima vez, ou seja, até te pedir que relances de novo o processo criptográfico com a tua máquina de reescrever». Gelnaa, não exatamente Ângela, nunca exatamente Ângela, é a inscrição dessa dependência na obra, essa dependência que nos dá a ver a autoria como um esforço para o qual não bastam duas mãos.
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Estou no cemitério, mais propriamente no crematório, e oiço o ruído do forno, demasiado notório, intrusivo, indecente. Sempre pensei que Ângela desejasse ficar ao lado de Carlos no cemitério, mas ela tinha outros planos. Teve muito tempo para a melancolia, desde a morte dele, propõe-nos um luto abrupto, na forma deste som demasiado moderno, alimentado por demasiado combustível. Ângela deixa-nos e, ao contrário dos versos de Eliot, «Not with a whimper but a bang». Na verdade, tinha feito, com zelo e fervor extremos, tudo aquilo que entendia fazer parte do seu dever de legatária, sobretudo – e essa foi a parte mais difícil e longa – dar um destino ao espólio de Carlos. Viveu até àquele ponto em que tudo está decidido e em que a própria vida se torna indecente, ou póstuma. Naquele momento, no crematório, com aquele ruído de fundo, percebi que nunca tinha chegado a conhecê-la. Só se conhece verdadeiramente alguém quando conseguimos ficcionar esse alguém: como quando Ângela devém Gelnaa.
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Há dois momentos, em O Aprendiz de Feiticeiro, que são dois insuperáveis momentos de cumplicidade e ficção conjugal. O primeiro, no texto «O inquilino», que começa por situar a cena: «Ainda me lembro dessa noite. Fevereiro de mil novecentos e cinquenta e quatro». O texto é uma ficção pessoana (uma das primeiras ficções em torno de Pessoa), que se resolve quando a ordem do mundo parece seguir a da escrita, no momento em que a personagem do escritor coincide, nos seus gestos, com a personagem da peça de teatro «O inquilino», desencadeando um fenómeno imprevisto:
Foi quando a madrugada explodiu numa féerie mais ou menos nórdica, como se tivesse realmente bastado mexer na cadeira, na ordem pré-estabelecida do quarto, para desencadear o imprevisto: uma tempestade de neve em Lisboa.
Neve por toda a parte: árvores, telhados, ruas, cintilando sob a luz das lâmpadas; raios verdes, roxos, cruzavam-se no ar, chocavam e do choque nascia um grande revérbero azulado que lembrava a cor das descargas eléctricas; mais lento em todo o caso, modelado pelo vento quase imperceptível.
Surge então, verdadeiramente do nada, Gelnaa, que resume o deslumbramento da cena, que é também o deslumbramento da metalepse («o filtro mágico»):
O filtro mágico das palavras (pensei, cheio de espanto), aí está ele. E senti a mão de Gelnaa apertar-me o ombro: – Nunca vi nada como isto.
O mais belo desta cena não é, creio, o facto de esta cena da criação parecer necessitar, ainda e sempre, da participação de Gelnaa: uma participação corporal, discursiva, ratificadora do poder da escrita e da féerie do real. O mais belo, aquilo que faz Gelnaa emergir das trevas da noite e do sono, o que torna a sua presença necessária e mesmo imperativa, é a sensação de que sem a sua presença e voz o espetáculo não se daria a ver na sua plenitude. Como se esta «explosão na madrugada» exigisse partilha e só na partilha pudesse deflagrar, dentro de cada um, até ao fim.
O segundo momento surge no texto final, «A fuga», na secção 4, que apresenta e introduz o planetário na obra de Oliveira:
Memória, estrelas. Mesmo nos dias chuvosos ou de névoa. O planetário servia para isso. (Para alguns encontros também). Agradava-me ter à tarde, por antecipação, o céu invisível da noite e ia lá com frequência. Exactamente como dizia Gelnaa:
– O teu brinquedo, o teu comboio eléctrico.
Logo a seguir, o projetor, no centro do anfiteatro do planetário, será descrito como «lanterna mágica». Cabe-lhe, e atentemos nas palavras dele, produzir «à tarde, por antecipação, o céu invisível da noite»: um sonho acordado, induzido por uma lanterna mágica, cujo nome mais poderoso é ficção, ainda que científica. Mas, mais uma vez, cabe a Gelnaa resumir a cena, que não anda longe de uma cena primitiva, embora tardiamente recuperada, da imaginação cósmica de Carlos de Oliveira: aquela em que não há curto-circuito entre um grão de areia e uma constelação e em que todo o real é «comboio elétrico» (ou desenho infantil). Gelnaa, a adulta que decifra texto e mundo, e que devolve a Carlos a infância do encantamento (e eis aqui uma outra redistribuição entre os dois).
Exatamente como dizia Gelnaa. Exatamente como na ficção de Carlos.