A quarta arguição que aqui publico teve como objeto a tese de doutoramento apresentada por Marina Guiomar ao Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a 14 de junho de 2012, com o título Especialização e Crítica: Algumas Leituras Excêntricas, sob orientação de António Feijó e Ana Isabel Soares.
A dissertação de doutoramento da candidata Marina Guiomar, na especialidade de Estudos de Literatura e Cultura – Teoria da Literatura, é-nos apresentada, no Resumo que a abre, da seguinte maneira: «A especialização e a tecnicidade dos críticos literários podem ser prejudiciais à interpretação. É falacioso acreditar que há uma essência particular subjacente ao intérprete que lhe confere poderes interpretativos. De igual modo, é um equívoco crer que a interpretação depende de um conjunto de técnicas instituídas a priori, que existe uma rede de instrumentos e de métodos entendidos como a única forma de ler.» No incipit retórico da tese – a cena de Ed Wood entre Johnny Depp e Bela Lugosi – a autora dá-nos a ver Lugosi a fazer de Drácula e a tentar, com o seu gesto caraterístico das falanges, exercer domínio sobre o aparelho de TV, procedimento que de acordo com Lugosi exigiria a observância de dois requisitos: ter dupla-articulação das falanges e ser húngaro. O exemplum é logo em seguida traduzido e rentabilizado pela autora, já que ele demonstraria que é uma falácia crer que «basta ao profissional da literatura ser de uma determinada maneira e integrar uma determinada comunidade, cultural ou intelectual, para exercer ação sobre as obras que o ocupam» (p. 9). A crítica literária, insiste a candidata, «não depende diretamente da especialização e da naturalização daqueles que a praticam, tal como o serpentar da mão de Lugosi não depende da sua condição de húngaro duplamente articulado» (id.). Tomada pelo entusiasmo, a candidata afirma logo em seguida que «O próprio Frankenstein era só, afinal, William Henry Pratt» (id.), nome verdadeiro de Boris Karloff, o actor que o filme de James Whale, em 1931, imortalizou. Permito-me fazer notar que o entusiasmo, de que quer a filologia quer a teoria sempre justificadamente desconfiaram, tende a fazer vítimas entre os defensores da não-especialização, e que é esse o caso aqui, pois Karloff não é Frankenstein no filme de Whale, mas sim «a criatura» de Frankenstein. O lapso, muito comum entre os leitores de Frankenstein (e faço notar como a frase pressupõe uma naturalização de Frankenstein, a obra, como um filme), seguramente uma das (muitas) armadilhas engendradas por Mary Shelley no seu romance genial, poderia ajudar-nos a perceber desde já que é possível redescrever «especialização» de uma forma incoincidente com a da candidata, menos devedora da noção de «método de leitura instituído a priori», ou seja, menos devedora da Era da Teoria, e mais devedora de coisas como certificação de dados, recolha de minudências, enfim, daquilo que é a herança da Era da Filologia. Continue reading →