Arguições: José Fernando de Castro Branco sobre Adolfo Casais Monteiro

A quarta arguição que aqui publico teve lugar a 20/06/2014, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e foi seu objeto a tese que José Fernando de Castro Branco apresentou sobre Adolfo Casais Monteiro e a doutrina estética da Presença, no doutoramento em Literaturas e Culturas Românicas, especialidade de Estética Literária, sob orientação de Luís Adriano Carlos.
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A dissertação de doutoramento de José Fernando de Castro Branco, apresentada com o título «Adolfo Casais Monteiro e a Doutrina Estética da presença», é um trabalho de grande fôlego e revelador de um certo número de qualidades que a universidade deve esperar de uma dissertação de doutoramento: capacidade de produção de um objeto; informação bibliográfica atualizada e capacidade de discriminação e hierarquização dessa bibliografia; capacidade analítica e argumentativa; pensamento estrutural na composição da obra e na sintaxe da argumentação; enfim, capacidade de escrita.

Curiosamente, é no que toca à produção do objeto que esta dissertação mais e menos impressiona. Esclareço o que quero dizer: o candidato elege como objeto a obra ensaística, crítica, doutrinária e teórica, de Casais Monteiro, dedicando mesmo à definição de ensaio, e do ensaio em Casais – ou melhor: àquilo a que chama «literatura de ideias» – um capítulo substancial da segunda parte. Para levar a cabo esta produção do objeto o candidato recorre, de acordo com palavras suas logo na p. 5, a uma «metodologia fenomenológico-descritiva». Devo dizer que a metodologia consegue convencer-nos da sua minúcia, mas também nos persuade do investimento excessivo nessa descrição, não raro demasiado longa e cansativa, embora sempre intelectualmente exigente e compensadora. Veio-me várias vezes à memória a este respeito a frase de Casais citada por mais de uma vez (de Clareza e Mistério da Crítica): «a função do crítico não é descrever – mas fazer cortes em profundidade». Bem sei que o candidato retorquirá que o seu texto não é propriamente crítica, mas antes teoria, e aqui e ali história. Descontando esta última, devo confessar que não sou exatamente sensível a distinções fenomenológicas no que toca às disciplinas da teoria e da crítica. E, em todo o caso, o dictum de Casais serve para a crítica como para a teoria, que poderíamos redescrever com rigor como aquela atividade que consiste em «fazer cortes em profundidade». Continue reading


Conferência Paulo Quintela

Ao fundo deste palco, a projeção de uma foto de Paulo Quintela. É uma imagem solar, de alguém em plena maturidade, naquele momento em que corpo e espírito parecem estar ainda em perfeita sintonia, um pouco antes do envelhecimento que força à autonomização progressiva do espírito em relação ao corpo. É também uma imagem de confiança, de alguém que enfrenta o futuro na crença nas suas capacidades, mesmo se em tempos pouco favoráveis, que exigem um olhar avisado e perscrutador. E, como se constata pela indumentária, ou pela cigarrilha na mão direita, é a imagem de alguém confortável no seu papel, social e institucional, de alguém que, tudo somado, acredita na sua missão. Em resumo, esta é a imagem de um Mestre e é também para celebrarmos os nossos mestres que hoje nos reunimos aqui, estudantes e professores. Em Paulo Quintela, o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas homenageia todos aqueles e todas aquelas que nos marcaram no nosso percurso escolar e académico nesta Faculdade e nesta Universidade, nas salas de aula e de seminário para começar, mas também nos gabinetes, nos corredores e outros espaços comuns e, em certas ocorrências, no próprio espaço público. Aqueles e aquelas que nos fazem dizer com reverência, com orgulho e, por vezes, com a nostalgia que é, em rigor, a nostalgia da nossa própria juventude, “Eu fui aluna de Maria Helena da Rocha Pereira”, “Eu fui aluno de José Gonçalo Herculano de Carvalho”, “Eu fui aluna de Ofélia Paiva Monteiro”, “Eu fui aluna de Maria Irene Ramalho de Sousa Santos”, “Eu fui aluna de Paulo Quintela”, “Eu fui aluno de Vítor Aguiar e Silva”.

O que todas estas pessoas têm em comum, para lá de terem sido estudantes e professores distintos desta casa, é que todas elas integraram áreas que hoje se encontram reunidas no Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. Umas dedicaram-se às línguas clássicas, outras às modernas, umas dedicaram-se às línguas estrangeiras, outras ao Português, muitas estudaram e praticaram a tradução, umas dedicaram-se ao estudo das literaturas e culturas, outras à ciência da linguagem, chamasse-se ela filologia, gramática ou, por fim, linguística. O que aproxima todas essas pessoas é, na verdade, a crença de que (como nos recordará em breve o conferencista de hoje) no princípio está a palavra, na sua capacidade fundante, combinando nomeação, descrição e performatividade e traduzindo-se em textos, orais ou escritos, num processo infindável de significação e comunicação, que inclui também a resistência à significação e à comunicação, assim como inclui enunciados que produzem afirmações categóricas sobre o mundo a par de enunciados que suspendem essas modalidades de afirmação em favor daquilo a que chamamos ficção. É bem certo que todos os departamentos, como todas as tentativas para introduzir ordem no caos da realidade, contêm em si algo de ficcional. Mas nada há de errado nisso, desde que as ficções em que decidirmos acreditar tenham a capacidade para fazer mundo, o mesmo é dizer, para estabelecerem relações entre coisas mais ou menos afastadas, desenhando cruzamentos, travessias, sobreposições, enfim, pequenas ou grandes sociedades do conhecimento. É assim que vejo o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, como uma placa giratória assente sobre aquele tipo de livro que o grande escritor brasileiro João Guimarães Rosa considerava o livro dos livros, o Dicionário, o livro que aspirava publicar aos cem anos de idade e que seria, ao mesmo tempo, o seu melhor romance e a sua autobiografia. O dicionário, isto é, uma máquina sofisticada e poderosa de produção e tradução de linguagem e linguagens, um infatigável dispositivo de renomeação do mundo, um arquivo sempre em devir. Continue reading


Sobre o ensino da literatura. A partir de Paulo Franchetti

O elenco incompleto de livros de Paulo Franchetti expostos na mesa grande do IEB termina, neste momento, no pequeno volume Sobre o Ensino de Literatura, editado pela UNESP em 2021. Um volume pequeno, de pouco mais de 100 páginas, mas que percorre toda uma vida de dedicação a uma atividade que só parece ser dotada de uma justificação quando não pensamos nessa questão, o que de resto define a prática dos professores de literatura: fazem uma coisa em que acreditam, mas só até ao momento em que interrogam as razões da sua crença. A situação seria análoga à do estudante de teologia que, na descrição de Karl Popper, seria justamente aquele que o faz porque duvida da sua fé. Contudo, e como sabemos há muito, a dúvida, metódica ou não, tem uma produtividade própria, ainda que neste caso essa produtividade seja estranhamente assimétrica. De facto, a disparidade entre a prática definidora de uma profissão – o ensino da literatura – e o volume de reflexão sobre essa prática manifesta-se, desde logo, na escassez de produção sobre o assunto, quando confrontada com a abundância de escrita sobre literatura. Esse é, aliás, um tópico inicial deste mais recente livro de Paulo Franchetti, que também por essa razão funciona como fonte e pretexto para a jornada de debate que o Instituto de Estudos Brasileiros promove neste dia, aproveitando para homenagear o trabalho do autor (visita recorrente no IEB nos últimos anos) no domínio dos estudos brasileiros e portugueses.

No ensaio “O que fica do que passa. Sobre o estudo e o ensino da literatura”, com que o livro abre, Franchetti procede a uma reconstrução do panorama do ensino da literatura no Brasil desde a criação da Universidade de São Paulo, nos anos 30 do século XX, concluindo pela crise de uma série de legitimações: “Neste quadro, ensinar a literatura como parte ou lugar privilegiado da formação nacional deixou de fazer sentido. Quase tanto como a ideia de formação nacional” (p. 23) [1]. Sem qualquer ilusão, afirma em seguida que “Um ensino voltado à construção do repertório e capaz de instrumentar a leitura com dados da tradição literária começa a parecer pouco interessante, quando não improdutivo ou até mesmo inútil” (p. 23). Em vez da retração num ideal de profissionalismo estrito – “maior especialização do crítico e do professor, consubstanciada num discurso autorreferenciado e hermético” (p. 25) – o autor propõe que “A solução passaria, isso sim, pela busca de um lugar novo para a literatura, no âmbito de uma formação humanística ampla, cuja preocupação central não fosse a formação de professores de Português ou de Literatura” (id.). O argumento deixa vir à tona o lastro iluminista do autor, sempre dividido entre o apelo da sala de aula como local onde acontece aquilo que só na aula enquanto “espaço de interrupção” pode acontecer, e uma esfera pública na qual a aula seria sem paredes e o professor um “professor de leitura, um profissional capaz de obter o maior rendimento da leitura de um texto literário com vistas à formação de um público culto” (id.). Continue reading


A Tradução na Prática – A Prática da Tradução

Na conclusão de um famoso ensaio de 1952, “Filologia da Weltliteratur”, o grande filólogo romanista Erich Auerbach afirma: “De qualquer modo, a nossa pátria filológica é a Terra – a Nação já não pode sê-lo. É certo que a coisa mais preciosa e indispensável que o filólogo herda é a língua e a cultura de sua nação; mas é preciso afastar-se delas e superá-las para que se tornem eficazes. Temos de retornar, em circunstâncias diferentes, ao que a cultura pré-nacional da Idade Média já possuía: à consciência de que o espírito não é nacional” [1]. Estas palavras, escritas sete anos após o final da Segunda Guerra Mundial, num Festschrift dedicado a Fritz Strich, um dos grandes pensadores da goethiana Weltliteratur, ressoam com um dramatismo particular de novo neste ano de 2022. Mas não é tanto a nota kantiana, de apelo ao cosmopolitismo como condição da paz perpétua, que desejo realçar, e sim a implicação que elas carregam consigo dentro do paradigma filológico: pois admitir que a nossa pátria filológica é a Terra inteira exige de nós o imperativo de um poliglotismo ilimitado, única forma de fazer justiça a essa pátria babélica que é o mundo humano. Como já perceberam, o que quero sugerir é que a alternativa pragmática a esse inalcançável imperativo poliglota só pode obviamente ser a tradução. Contudo, conceber a tradução como alternativa à nossa “pátria filológica mundial” arrasta-nos necessariamente para aquele anátema, muito romântico e muito herderiano, que se abate sobre a tradução enquanto traição à pureza do círculo mágico de cada idioma, supostamente intraduzível – a menos que a tradução se arme de um arsenal de princípios e dispositivos epistémicos, técnicos, mas também ético-morais, o principal dos quais a demanda da equivalência. A este respeito, ou talvez não, gostava de recordar dois textos de Jorge Luis Borges. No primeiro, o seu escasso (e pouco fiável) Ensaio Autobiográfico, o autor argentino recorda que na casa paterna o inglês e o espanhol funcionavam em contínuo e sem verdadeira hierarquia, o que o levou a ler o Quixote inicialmente em inglês; quando o leu, na idade adulta, em espanhol, achou que o texto não estava à altura da tradução… O segundo, o famoso ensaio sobre “Los traductores de las 1001 Noches”, no qual Borges sistematicamente emancipa as traduções em relação ao original, inviabilizando a precedência ontológica e valorativa deste. Como defende Alain Pauls num ensaio fundamental, “Borges invierte de nuevo los términos: no piensa la traducción (el caso) a partir de la literatura (el modelo general) sino la literatura a partir de la traducción”. [2] Continue reading


Environments: Ecologies and (In)Hospitalities

For the 7th time the Portuguese Association for Anglo-American Studies meets at the Faculty of Letters of the University of Coimbra. The specificity of this meeting, dedicated to ENVIRONMENTS: ECOLOGIES AND (IN)HOSPITALITIES, as compared to previous ones, lies perhaps in the fact that it takes place in a context where humanity has been forced to prepare for the end of the world. However, this version of the apocalypse should be corrected, since the world whose end is at stake here is the human world only. I would like to quote at this point the Brazilian indigenous leader Ailton Krenak, who reminds us that “humanity has been detaching itself in such an absolute manner from this organism that is the earth” that “The only nuclei that still consider that they need to stay attached to this earth are those that have been kind of forgotten on the edges of the planet, on the banks of rivers, on the shores of oceans, in Africa, Asia or Latin America. They are caiçaras, Indians, quilombolas, aborigines – sub-humanity. Because there is a humanity that is, let’s say, cool. And there is a more rough, rustic, organic layer, a sub-humanity, a people that are stuck to the earth. It seems that they want to eat earth, suck the earth, sleep lying on the dirt, wrapped in the dirt” [1] (p. 22). Why has modernity become so inhospitable to this humanity that wants to eat and suck the earth? I return to Ailton’s perplexity: “How can we recognize a place of contact between these two worlds, which have so much common origin, but have become detached to the point that today we have, at one end, people who need to live off a river and, at the other, people who consume rivers as a resource?” (p. 51) Continue reading


Arguições: Marina Guiomar e os prejuízos da especialização

A quarta arguição que aqui publico teve como objeto a tese de doutoramento apresentada por Marina Guiomar ao Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a 14 de junho de 2012, com o título Especialização e Crítica: Algumas Leituras Excêntricas, sob orientação de António Feijó e Ana Isabel Soares.


A dissertação de doutoramento da candidata Marina Guiomar, na especialidade de Estudos de Literatura e Cultura – Teoria da Literatura, é-nos apresentada, no Resumo que a abre, da seguinte maneira: «A especialização e a tecnicidade dos críticos literários podem ser prejudiciais à interpretação. É falacioso acreditar que há uma essência particular subjacente ao intérprete que lhe confere poderes interpretativos. De igual modo, é um equívoco crer que a interpretação depende de um conjunto de técnicas instituídas a priori, que existe uma rede de instrumentos e de métodos entendidos como a única forma de ler.» No incipit retórico da tese – a cena de Ed Wood entre Johnny Depp e Bela Lugosi – a autora dá-nos a ver Lugosi a fazer de Drácula e a tentar, com o seu gesto caraterístico das falanges, exercer domínio sobre o aparelho de TV, procedimento que de acordo com Lugosi exigiria a observância de dois requisitos: ter dupla-articulação das falanges e ser húngaro. O exemplum é logo em seguida traduzido e rentabilizado pela autora, já que ele demonstraria que é uma falácia crer que «basta ao profissional da literatura ser de uma determinada maneira e integrar uma determinada comunidade, cultural ou intelectual, para exercer ação sobre as obras que o ocupam» (p. 9). A crítica literária, insiste a candidata, «não depende diretamente da especialização e da naturalização daqueles que a praticam, tal como o serpentar da mão de Lugosi não depende da sua condição de húngaro duplamente articulado» (id.). Tomada pelo entusiasmo, a candidata afirma logo em seguida que «O próprio Frankenstein era só, afinal, William Henry Pratt» (id.), nome verdadeiro de Boris Karloff, o actor que o filme de James Whale, em 1931, imortalizou. Permito-me fazer notar que o entusiasmo, de que quer a filologia quer a teoria sempre justificadamente desconfiaram, tende a fazer vítimas entre os defensores da não-especialização, e que é esse o caso aqui, pois Karloff não é Frankenstein no filme de Whale, mas sim «a criatura» de Frankenstein. O lapso, muito comum entre os leitores de Frankenstein (e faço notar como a frase pressupõe uma naturalização de Frankenstein, a obra, como um filme), seguramente uma das (muitas) armadilhas engendradas por Mary Shelley no seu romance genial, poderia ajudar-nos a perceber desde já que é possível redescrever «especialização» de uma forma incoincidente com a da candidata, menos devedora da noção de «método de leitura instituído a priori», ou seja, menos devedora da Era da Teoria, e mais devedora de coisas como certificação de dados, recolha de minudências, enfim, daquilo que é a herança da Era da Filologia. Continue reading