Vítor Aguiar e Silva foi ontem distinguido com o Prémio Camões. Creio poder dizer que para os que tiveram o privilégio de ser seus alunos, o dia de ontem foi um dia feliz. Se calhar porque todos sentimos, uma vez por outra, que o deslumbramento que nos tomou na sala de aula não chegou nunca a ganhar tradução fiel, ou sequer aproximada, na vasta produção escrita do nosso mestre. Não é fenómeno único, como se sabe, e muitos falaram antes da forma como a experiência irredutível da sala de aula, experiência formativa sobre todas, parece ter dificuldade em viver para lá da voz e da presença do professor. O que dificulta, ou mesmo impossibilita, a tradução da lição dos mestres em método replicável, coisa por que a escola tanto (erroneamente) anseia, como inversamente o ensino, enquanto encontro com o singular de cada estudante, tanto põe em causa.
Quando fui seu aluno, Vítor Aguiar e Silva era um professor maduro. Todas as aulas eram rigorosamente planificadas e acompanhadas por um guião manuscrito a que ia recorrendo. O modelo era magistral, o professor falava, abordando um tópico em modo panorâmico ou detalhado, eu escutava encantado e ia tomando algumas notas. O efeito inibidor do modelo sobre as intervenções dos estudantes era palpável e contam-se pelos dedos de uma mão as vezes que me atrevi a falar (mas lembro-me de o professor ter recordado, quase no final do ano, numa prova oral, uma das minhas intervenções, para minha surpresa). Não vejo isso, contudo, como uma limitação, tão evidentes foram os ganhos do modelo para os estudantes de Teoria da Literatura: aprenderam a pesar as palavras e a ponderar a pertinência de cada intervenção. Porque aprenderam, entretanto, uma lição maior: a de que o estudo da literatura não é tagarelice, exigindo por isso muitas vezes um vocabulário próprio, nem a paixão pela literatura uma modalidade de derrame sentimental e histriónico. Pois estou certo de que nenhum estudante de Vítor Aguiar e Silva alguma vez duvidou da sua paixão pela literatura, e suponho que muitos perceberam como era difícil aceder a uma modalidade tão exigente de relação com o objeto. A exigência era manifesta na vastidão de leituras e referências, bem como na atualização bibliográfica, que quase sempre comportava várias referências do ano anterior.
Pude constatar mais tarde, na pós-graduação, que o modelo pedagógico e universitário de Vítor Aguiar e Silva não afastava pessoas de perfil muito diverso do seu, a começar por mim. Pelo contrário, funcionava e funcionou sempre como uma plataforma de acolhimento de perfis intelectuais e humanos heterogéneos, talvez porque Vítor Aguiar e Silva nunca manifestou a tendência, muito popular na academia, para a clonagem, e menos ainda para o sectarismo. E à sua maneira, apesar do privilégio do cognitivo na relação pedagógica, o momento intersubjetivo não deixava de se manifestar, sempre que a ocasião se propiciava. Curiosamente, é esse o período que associo aos seus ensaios mais livres, menos reféns do império cientificista da Teoria, pelo qual, contudo, ainda oficialmente jurava. Mas oficiosamente a Desconstrução fazia o seu caminho, e bem mais na sala de aula do que nos textos que então publicava.
Aos 81 anos de idade, Vítor Aguiar e Silva publicou um novo e vasto volume, com o título Colheita de Inverno. Quem o conhece sabe que continua a comprar pilhas de livros, a ler e a escrever (“Leu o último livro de X?”, perguntava-me num dos nossos últimos encontros). O mesmo é dizer que continua a recordar-nos, agora ao longe e por sinais de fumo, o essencial da sua lição.
Falta dizer que ninguém merece mais um prémio com o nome do nosso maior do que Vítor Aguiar e Silva, camonista de toda a vida.
Muitos parabéns, caro professor!