É a última cena do documentário Assombração urbana com Roberto Piva, de Valesca Canabarro Dios (2004). Um zoom inicial muito desfocado apresenta lateralmente algo que reconhecemos como sendo a extremidade dos óculos de Roberto Piva, num plano banhado numa tonalidade azulada e violácea. Piva parece contemplar um filme, de que nos chega apenas o reflexo intenso da luz e o ruído do projetor, convivendo em fundo com a música de Bach que satura todo o primeiro plano do espectro aural. Em seguida, a câmara desloca-se brevemente para esse objeto de contemplação impossível – uma pura e trémula inundação de luz ou, se se preferir, uma pura emulsão de película –, e por fim, após um corte discreto, o plano fixa-se no perfil de Piva, semimergulhado numa treva apenas quebrada pelos reflexos da luz da projeção no seu rosto. Não nos é concedido ver aquilo que Piva contempla, pois nunca acedemos ao contracampo, com exceção da breve exemplificação acima referida: o perfil recortado de Piva é agora o (nosso) ecrã, consoante o tremeluzir da luz do filme no seu rosto. Que filme será esse que Piva contempla e nele se reflete? Vou alimentando algumas hipóteses, que me ajudam a ver a cena, a pensar Piva e a relação da sua poesia com o mundo da história e, antes dela, com o mundo da mente. Creio que preciso delas para acabar de ver o filme e para que esta cena faça sentido para mim. Mas por agora quero concentrar-me nessa imagem do perfil de Roberto Piva vendo no escuro um filme enquanto o ouvimos dizer o extraordinário texto “O século XXI me dará razão”, que reproduzo aqui: Continue reading