Usar Camões

Se me permitem, vou invocar dois poetas contemporâneos portugueses que exploraram versões divergentes do legado de Camões. O primeiro é Jorge de Sena, que viveu no século XX em Portugal, Brasil e EUA, e foi um camonista obsessivo, enquanto académico e poeta. Em 1963, no importante volume Metamorfoses, que lançou a voga da poesia ecfrástica em Portugal nos últimos 50 anos, Sena recorre a um busto de Camões pelo escultor brasileiro Bruno Giorgi, para produzir uma suposta écfrase (e na verdade muito falsa, já que do que se trata é de fazer de Camões uma persona dramática), que se concretiza no poema

CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes. Continue reading


A DESTRUIÇÃO DE UNIVERSIDADES NA FAIXA DE GAZA

A tempestade de destruição e morte que se abateu sobre a Faixa de Gaza, em retaliação pelo trágico e condenável ataque do Hamas no passado dia 7 de outubro de 2023, causou vítimas infindáveis em Gaza, mas também um pouco por todo o mundo. Em Portugal, uma das vítimas mais notórias do conflito foi a universidade que, ao contrário do que vem sucedendo na Europa, nas Américas e nos restantes continentes, se manteve silenciosa perante esta última e devastadora manifestação de um conflito tão complexo quanto longo.

Sinal dos tempos, porventura, a universidade portuguesa parece consumir grande parte da sua energia na resposta ao permanente rateio das fontes de financiamento, esquecendo demasiadas vezes as suas responsabilidades cívicas e o seu compromisso para com a Humanidade, na sua aceção mais lata. Para quê, de facto, fazer da autonomia universitária um cavalo de batalha político se, quando os eventos do mundo caótico em que vivemos neste início de século XXI exigem que essa autonomia se traduza em desempenho cívico, a universidade fica retraída e calada, permitindo mesmo que essa sua atitude seja interpretada como indiferença? Continue reading


A verdadeira INTERNACIONAL

A entrevista saiu no caderno Ipsilon do Público na passada sexta-feira, é de Mário Lopes e tem o título “A eterna inquietação rock’n’roll de Victor Torpedo”. É uma grande entrevista e dava para outra longa conversa, como é típico das grandes entrevistas. Sobre bandas (Cramps, Clash, Devo, etc.), cidades (Londres, NY, Memphis, LA, Coimbra), atitudes (a seriedade das bandas do rock tuga), Robert Fripp versus King Crimson, o sono provocado pela duração dos solos de bateria de John Bonham… Sobre aquilo a que Alcir Pécora chama a “contra-universidade roqueira” de Coimbra. Ou sobre as fotos dos Tédio Boys na América, instantaneamente mitológicas (“Aquilo [os EUA] já é tão psicotrópico que quem toma drogas na América é imbecil”). Mas eu queria apenas deixar aqui uma nota sobre um episódio discreto, mas que ficou a ressoar em mim. Continue reading