How to Make an Angel

Não sei se Lester Bangs alguma vez escreveu sobre os Cramps. Psychotic Reactions and Carburetor Dung não lhes dedica uma palavra, mas trata-se, como é sabido, de uma seleção póstuma de textos, levada a cabo por Greil Marcus. Haverá, no espólio da Creem, alguma coisa não incluída em livro? Não faço ideia, mas dada a comum paixão pelo punk e protopunk de ambos os autores, custa-me a crer que um putativo texto sobre os Cramps não fosse selecionado por Marcus. Em todo o caso, não é difícil encontrar nos escritos de Bangs alguma coisa de que nos possamos apropriar para colocar ao serviço dos Cramps. Por exemplo, este excerto de «The Clash», longa reportagem-ensaio sobre os ditos e a cena punk inglesa. Bangs refere um detrator de Joe Strummer, que lhe terá chamado a atenção para o caráter middle-class desse (afinal não tão) líder da classe operária. Ei-lo, no seu melhor, reagindo ao detrator:

Which is fine for me: Joe Strummer is a fake. That only puts him in there with Dylan and Jagger and Townshend and most of the other great rock songwriters, because almost all of them in one way or another were fakes. Townshend had a middle-class education. Lou Reed went to Syracuse University before matriculating to the sidewalks of New York. Dylan faked his whole career; the only difference was that he used to be good at it and now he sucks.

The point is that, like Richard Hell says, rock’n’roll is an arena in which you recreate yourself, and all this blathering about authenticity is just a bunch of crap. (Carburetor Dung…, p. 227)

Os Cramps, desde o composto musical (rockabilly, punk, garagem, etc.) até ao visual e à arte do nickname sempre foram uma exponenciação desse fake. O título do último CD, How to Make a Monster, diz tudo sobre a questão. E, contudo, existe pelo menos um momento na longa carreira dos Cramps em que o grão de verdade do fake se revela a uma luz algo dolorosa. Esse momento ocorreu a 13 de Junho de 1978, quando a banda deu um concerto no Napa State Mental Hospital, na Califórnia. O DVD do concerto é provavelmente o maior embuste da história da indústria. Filmado com uma Port-a-Pack errática e com um microfone apenas, num preto e branco granulado e dominado por cinzentos voláteis, o registo não dura sequer 30 minutos, coisa que o preço final não reflete de modo nenhum. Contudo, este embuste industrial é um registo fundamental – da história do rock e da performance contemporânea. Continue reading


A verdadeira INTERNACIONAL

A entrevista saiu no caderno Ipsilon do Público na passada sexta-feira, é de Mário Lopes e tem o título “A eterna inquietação rock’n’roll de Victor Torpedo”. É uma grande entrevista e dava para outra longa conversa, como é típico das grandes entrevistas. Sobre bandas (Cramps, Clash, Devo, etc.), cidades (Londres, NY, Memphis, LA, Coimbra), atitudes (a seriedade das bandas do rock tuga), Robert Fripp versus King Crimson, o sono provocado pela duração dos solos de bateria de John Bonham… Sobre aquilo a que Alcir Pécora chama a “contra-universidade roqueira” de Coimbra. Ou sobre as fotos dos Tédio Boys na América, instantaneamente mitológicas (“Aquilo [os EUA] já é tão psicotrópico que quem toma drogas na América é imbecil.”). Mas eu queria apenas deixar aqui uma nota sobre um episódio discreto, mas que ficou a ressoar em mim. Refiro-me àquele momento em que Torpedo afirma, sobre a sua chegada a Nova Iorque:

Mas depois chego pela primeira vez a Nova Iorque e aquilo é que é. Agora já não é a mesma, mas ainda apanhámos um bocadinho de Nova Iorque antes da limpeza do Giuliani [mayor entre 1994 e 2001], da atrocidade que ele fez à cidade. É incrível, mas a primeira pessoa que conhecemos em Nova Iorque, sem contar com pessoal da carrinha, foi o Joey Ramone. Estava em Coney Island, no antigo Max’s Kansas City, para ver o CJ Ramone, e, a partir daí, viu os concertos todos dos Tédio Boys em Nova Iorque.

Não sei se estamos perante um exemplo do alinhamento dos astros que justificadamente favorece a juventude, ou simplesmente ante aquela obscura sintonia epocal que elege parceiros improváveis. Ou, mais ainda, se se trata dos encontros que certas formas de expressão favorecem, quando têm o dom de agarrar o tempo e os corpos, atravessando-os com a força cega do inexorável. Essa forma de expressão é o punk, ou aquilo que esse nome recobriu, um rock com sentido de urgência, após uma década de artistas e heróis (da guitarra, da bateria, dos sintetizadores, dos estúdios e dos estádios). Mas aquilo que me tocou nesta história, para lá da confirmação de todas as razões que temos para amar Joey Ramone, foi antes uma espécie de arraso de todas as cansativas e cansadas teorias que, desde o surgimento do rock’n’roll, têm tentado explicar-nos, do lado dos média, da indústria, do imperialismo, a sua conquista do planeta como algo que faz dano: a uma ideia de cultura (a genuína), a uma ideia de preservação do mercado (e da língua), a uma ideia de resistência à arte de massas. O que este encontro entre duas figuras maiores do espírito do punk nos dá a ver é antes aquele vínculo imediato e irrestrito que essa eletricidade posta em música desencadeia e que não se tece de razões, mas de imperativos. Sobretudo, o do corpo a corpo que é a versão punk de uma comunidade com um mínimo de mediações, satisfazendo-se com a escala reduzida, mas multiplicada, que sempre foi a das internacionais, desde o século XIX, feitas de núcleos de artesãos e operários especializados, emigrantes distribuídos pelas capitais da Europa e das Américas, sonhando um mundo novo.

É essa Internacional, a internacional do punk, que vejo no encontro entre Victor Torpedo e Joey Ramone em Nova Iorque. A verdadeira Internacional, aquela que não morre porque se relança sempre que alguém em palco grita “Hey Ho! Let’s Go!”


Adriana Calcanhotto: “Maldito Rádio”

O conto do angolano Ondjaki, “A libélula”, do livro E se amanhã o medo (2005), encena um não-evento – um médico que, ao domingo, enquanto escreve na varanda da sua casa e ouve música, abre a porta a uma mulher que pede um copo de água – harmonizado por canções de Adriana Calcanhotto que se ouvem em fundo: “Na aparelhagem o som acontecia contínuo, ininterrupto. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo, durante extensos momentos, a voz de Adriana Calcanhotto”. O médico, em paz com o mundo, e desde logo com o mundo animal simbolizado na libélula que pousa perto dos seus materiais de escrita, tenta reconquistar memórias, escrevendo: “Gatafunhos, memórias recusadas, esquebras de horas mais sensíveis que escusava aceitar como suas. ‘Eu perco o chão, eu não acho as palavras’ – a voz cantava”. As canções, do disco A fábrica do poema, de 1994, pontuam, comentam, suturam o fio narrativo, feito de quase nada, dessa história em que um homem de classe alta e uma mulher de classe mais baixa se encontram fugazmente em torno de um copo de água, umas breves palavras, e uma voz que canta. A mulher confessa, a certa altura, que ganhou coragem para pedir água naquela casa “ – Por causa da música… Esta voz tão doce”. O médico esclarece de que cantora se trata e a mulher pergunta: “ – É poeta? /– Também.” No final, a mulher deixa a casa e afasta-se lentamente pelo passeio enquanto a música recomeça, pela última vez: “minha música quer estar além do gosto, não quer ter rosto, não quer ser cultura”. A transcrição dos versos não respeita a quebra do verso, sugerindo um contínuo que seria o do som que vem da aparelhagem, na qual o disco toca sem parar, de “Bagatelas” a “Minha música”. Mas sugerindo também que a música das palavras faz corpo com o mundo, estando assim além do gosto e da cultura, o que a intrusão da mulher que responde à música para pedir ali, e não na porta seguinte, o copo de água, parece corroborar (embora, por outro lado, o ritual domingueiro do médico sugira todo um gosto e toda uma cultura que empatiza, dir-se-ia que naturalmente, com a música que vem, em português, do outro lado do oceano).

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