A verdadeira INTERNACIONAL

A entrevista saiu no caderno Ipsilon do Público na passada sexta-feira, é de Mário Lopes e tem o título “A eterna inquietação rock’n’roll de Victor Torpedo”. É uma grande entrevista e dava para outra longa conversa, como é típico das grandes entrevistas. Sobre bandas (Cramps, Clash, Devo, etc.), cidades (Londres, NY, Memphis, LA, Coimbra), atitudes (a seriedade das bandas do rock tuga), Robert Fripp versus King Crimson, o sono provocado pela duração dos solos de bateria de John Bonham… Sobre aquilo a que Alcir Pécora chama a “contra-universidade roqueira” de Coimbra. Ou sobre as fotos dos Tédio Boys na América, instantaneamente mitológicas (“Aquilo [os EUA] já é tão psicotrópico que quem toma drogas na América é imbecil.”). Mas eu queria apenas deixar aqui uma nota sobre um episódio discreto, mas que ficou a ressoar em mim. Refiro-me àquele momento em que Torpedo afirma, sobre a sua chegada a Nova Iorque:

Mas depois chego pela primeira vez a Nova Iorque e aquilo é que é. Agora já não é a mesma, mas ainda apanhámos um bocadinho de Nova Iorque antes da limpeza do Giuliani [mayor entre 1994 e 2001], da atrocidade que ele fez à cidade. É incrível, mas a primeira pessoa que conhecemos em Nova Iorque, sem contar com pessoal da carrinha, foi o Joey Ramone. Estava em Coney Island, no antigo Max’s Kansas City, para ver o CJ Ramone, e, a partir daí, viu os concertos todos dos Tédio Boys em Nova Iorque.

Não sei se estamos perante um exemplo do alinhamento dos astros que justificadamente favorece a juventude, ou simplesmente ante aquela obscura sintonia epocal que elege parceiros improváveis. Ou, mais ainda, se se trata dos encontros que certas formas de expressão favorecem, quando têm o dom de agarrar o tempo e os corpos, atravessando-os com a força cega do inexorável. Essa forma de expressão é o punk, ou aquilo que esse nome recobriu, um rock com sentido de urgência, após uma década de artistas e heróis (da guitarra, da bateria, dos sintetizadores, dos estúdios e dos estádios). Mas aquilo que me tocou nesta história, para lá da confirmação de todas as razões que temos para amar Joey Ramone, foi antes uma espécie de arraso de todas as cansativas e cansadas teorias que, desde o surgimento do rock’n’roll, têm tentado explicar-nos, do lado dos média, da indústria, do imperialismo, a sua conquista do planeta como algo que faz dano: a uma ideia de cultura (a genuína), a uma ideia de preservação do mercado (e da língua), a uma ideia de resistência à arte de massas. O que este encontro entre duas figuras maiores do espírito do punk nos dá a ver é antes aquele vínculo imediato e irrestrito que essa eletricidade posta em música desencadeia e que não se tece de razões, mas de imperativos. Sobretudo, o do corpo a corpo que é a versão punk de uma comunidade com um mínimo de mediações, satisfazendo-se com a escala reduzida, mas multiplicada, que sempre foi a das internacionais, desde o século XIX, feitas de núcleos de artesãos e operários especializados, emigrantes distribuídos pelas capitais da Europa e das Américas, sonhando um mundo novo.

É essa Internacional, a internacional do punk, que vejo no encontro entre Victor Torpedo e Joey Ramone em Nova Iorque. A verdadeira Internacional, aquela que não morre porque se relança sempre que alguém em palco grita “Hey Ho! Let’s Go!”


Adriana Calcanhotto: “Maldito Rádio”

O conto do angolano Ondjaki, “A libélula”, do livro E se amanhã o medo (2005), encena um não-evento – um médico que, ao domingo, enquanto escreve na varanda da sua casa e ouve música, abre a porta a uma mulher que pede um copo de água – harmonizado por canções de Adriana Calcanhotto que se ouvem em fundo: “Na aparelhagem o som acontecia contínuo, ininterrupto. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo, durante extensos momentos, a voz de Adriana Calcanhotto”. O médico, em paz com o mundo, e desde logo com o mundo animal simbolizado na libélula que pousa perto dos seus materiais de escrita, tenta reconquistar memórias, escrevendo: “Gatafunhos, memórias recusadas, esquebras de horas mais sensíveis que escusava aceitar como suas. ‘Eu perco o chão, eu não acho as palavras’ – a voz cantava”. As canções, do disco A fábrica do poema, de 1994, pontuam, comentam, suturam o fio narrativo, feito de quase nada, dessa história em que um homem de classe alta e uma mulher de classe mais baixa se encontram fugazmente em torno de um copo de água, umas breves palavras, e uma voz que canta. A mulher confessa, a certa altura, que ganhou coragem para pedir água naquela casa “ – Por causa da música… Esta voz tão doce”. O médico esclarece de que cantora se trata e a mulher pergunta: “ – É poeta? /– Também.” No final, a mulher deixa a casa e afasta-se lentamente pelo passeio enquanto a música recomeça, pela última vez: “minha música quer estar além do gosto, não quer ter rosto, não quer ser cultura”. A transcrição dos versos não respeita a quebra do verso, sugerindo um contínuo que seria o do som que vem da aparelhagem, na qual o disco toca sem parar, de “Bagatelas” a “Minha música”. Mas sugerindo também que a música das palavras faz corpo com o mundo, estando assim além do gosto e da cultura, o que a intrusão da mulher que responde à música para pedir ali, e não na porta seguinte, o copo de água, parece corroborar (embora, por outro lado, o ritual domingueiro do médico sugira todo um gosto e toda uma cultura que empatiza, dir-se-ia que naturalmente, com a música que vem, em português, do outro lado do oceano).

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