A minha contribuição para esta mesa-redonda de tema tão ambicioso (1) é deliberadamente modesta, limitando-se a apresentar uma coisa, definível como algo entre um dispositivo e uma máquina, de que tomei conhecimento na Biblioteca da Universidade de Maastricht, na Holanda. A coisa chama-se Mindfulnest [uma extensão e brincadeira com Mindfulness], que traduzirei por Ninho de Meditação, descrita online como “uma cabina concebida com um propósito de relaxamento”. “Aqui, afirma-se, você pode recuperar o fôlego, escutar os exercícios de meditação e mindfulness oferecidos, sentar-se em silêncio ou usar a sua própria app de meditação”. Na mesma página, pode ler-se que “Dentro do Ninho de Meditação há um iPad que pode ser usado para selecionar meditações, entre outras coisas”. O Ninho esteve instalado temporariamente na Biblioteca e a sua utilização era grátis. Continue reading
Category Archives: Intervenções
Um glossário (não alfabético) de trabalhos de orientação
Antes de mais, agradeço o convite da Área de Filología Gallega y Portuguesa do Departamento de Filología Moderna, da Universidade de Salamanca, para participar nesta iniciativa tão notável, que nos permite confrontar práticas e ouvir estudantes de doutoramento sobre os seus trabalhos de tese. A minha participação consiste numa reflexão, um tanto autobiográfica e não tanto teórica, sobre alguns (poucos) tópicos relacionados com trabalhos de orientação de teses, um momento fundamental do trabalho na universidadeda investigação, que é ao mesmo tempo, como sabemos, a universidade da burocratização (é uma constatação, não um lamento). Como o meu título sugere, vou abordar os tópicos não por ordem alfabética, mas por ordem de relevância. Continue reading
M/M. Colóquio Internacional sobre Max Martins
As pessoas que aceitaram o convite para hoje e amanhã se reunirem nesta sala em torno de Max Martins fizeram-no, estou certo, na convicção de que a sua obra é um segredo mal guardado. Até há pouco tempo, devo admitir, o meu caso era o daqueles para quem o nome Max Martins era realmente da ordem do segredo, situação que se alterou em função direta da lógica de intercâmbio e cooperação que rege o atual sistema científico internacional, do qual os universitários tanto apreciam desmerecer (por vezes com razão), esquecendo porém as suas virtudes. De facto, foi na sequência de uma proposta para acolher em Coimbra uma estudante de doutoramento do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, a Leila Coroa, naquilo a que o génio institucional e linguístico brasileiro chama “doutorado sanduíche”, que decidi adquirir para a biblioteca do IEB a obra do poeta, na edição atual da Universidade Federal do Pará. O efeito da sua leitura foi não apenas surpreendente, mas pessoalmente deslumbrante e devemos, pois, à Capes, que financiou a vinda da Leila (que ainda por cima apareceu com o André Aquino, que eu conhecera numa estada atribulada no IEL, e cujo objeto de estudo é também Max Martins), esta reunião que a certa altura se me impôs como obrigatória – uma reunião que integra Leila e André entre os seus conferencistas e que pressupõe o seu trabalho em várias áreas da conceção e organização, como entendo que deveria ocorrer sempre na universidade de hoje. Continue reading
A DESTRUIÇÃO DE UNIVERSIDADES NA FAIXA DE GAZA
A tempestade de destruição e morte que se abateu sobre a Faixa de Gaza, em retaliação pelo trágico e condenável ataque do Hamas no passado dia 7 de outubro de 2023, causou vítimas infindáveis em Gaza, mas também um pouco por todo o mundo. Em Portugal, uma das vítimas mais notórias do conflito foi a universidade que, ao contrário do que vem sucedendo na Europa, nas Américas e nos restantes continentes, se manteve silenciosa perante esta última e devastadora manifestação de um conflito tão complexo quanto longo.
Sinal dos tempos, porventura, a universidade portuguesa parece consumir grande parte da sua energia na resposta ao permanente rateio das fontes de financiamento, esquecendo demasiadas vezes as suas responsabilidades cívicas e o seu compromisso para com a Humanidade, na sua aceção mais lata. Para quê, de facto, fazer da autonomia universitária um cavalo de batalha político se, quando os eventos do mundo caótico em que vivemos neste início de século XXI exigem que essa autonomia se traduza em desempenho cívico, a universidade fica retraída e calada, permitindo mesmo que essa sua atitude seja interpretada como indiferença? Continue reading
Eduardo Lourenço: um tempo brasileiro breve mas duradouro
O volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço dedicado ao Brasil, com o título Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem, tem cerca de 700 páginas. Um tal volume de escrita é, obviamente, justificação bastante para um colóquio como este. Mas o que surpreende é a constatação de que toda essa reflexão sobre matéria brasileira parte de um conhecimento direto de apenas um ano, em 1958-59, quando Lourenço foi docente de filosofia na Universidade da Bahia, ainda que acrescentado por alguns outros períodos mais ou menos breves (um semestre como professor visitante no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, nos anos 80, por exemplo). Daí o título proposto para este evento: um tempo brasileiro breve, enquanto experiência direta, mas duradouro nos seus efeitos e ressonância. Continue reading
A Teoria da Literatura no Brasil
A designação deste colóquio, na sua aparente neutralidade descritiva, não foi fácil, já que por um tempo, e mesmo à data dos primeiros contactos, o título final – A Teoria da Literatura no Brasil – conviveu com uma outra versão, A Teoria Literária no Brasil. A certa altura, porém, tendo-me apercebido da confusão, percebi também que nada se ganharia em admitir à discussão a latitude da expressão “teoria literária”, muito embora ficasse claro para mim que essa outra versão estava condenada a funcionar como um recalcado que, mais ou menos fatalmente, regressa para nos assombrar. Em todo o caso, a disciplinaridade do título final tem a vantagem de forçar a uma operação de terraplanagem do campo, exigindo-nos que tomemos decisões (epistemológicas, genealógicas e metodológicas) sobre aquilo que no Brasil foi e é a Teoria da Literatura, enquanto disciplina que, para o bem e o mal, define os estudos literários no século XX. Continue reading
John Mercy & The Dead Beats: West of the American Night
Com este concerto, encerram-se as comemorações do centenário de Jack Kerouac protagonizadas pela Secção de Estudos Anglo-Americanos do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas desta Faculdade de Letras. E encerram-se deste modo porque a articulação de texto e música atravessa e define toda a Beat Generation, como pudemos ver mesmo no final do concerto no vídeo da espantosa leitura, pelo próprio Kerouac, da última frase de On The Road, com acompanhamento musical.
Quando convidei o João Rui, aliás John Mercy, a fazer alguma coisa em torno de On The Road para este dia, a sua primeira reação, tenho de confessar, não foi muito entusiástica, tendo o João pedido uns dias para pensar no assunto. Passou quase uma semana e, de repente, comecei a receber sms e mails em catadupa. Nessas mensagens, e para resumir, John Mercy confessava não apreciar a modalidade hoje popular da spoken word ou da leitura com música, no fundo por ser essa uma modalidade, em seu entender, desprovida de forma. E como a forma por excelência da articulação entre texto e música é a canção, o que ele propunha era um conjunto de canções a partir do romance de Kerouac – um conjunto de canções que pudesse vir a dar um disco, a forma (e a duração) por excelência da música na era da reprodução. As mensagens vinham aliás acompanhadas de uma sinopse das canções a extrair do livro e também já do espetáculo. Como bónus, uma demo da primeira canção, “Holding On”, que achei belíssima. Continue reading
Kerouac 100
I had intended to mention, briefly, in this opening, the nature of the debt I incurred with Jack Kerouac long years ago, when at the end of On the Road I read that qualification of Dean Moriarty as “the father we never found”. Maybe because although my father is still alive, and in spite of the fact he was always a good and loving father, I have always felt that Dean Moriarty was, also for me, “the father we never found”, at that age when we all need a second father, preferably almost our own age, preferably someone who will lead us to the other side of the mirror and away from the meek life. Professional burdens and personal contingencies, however, have conspired to rob me of the time that would allow me to state the reasons why, as director of the department of languages, literatures, and cultures, I am wholeheartedly behind this event. But that’s okay, because I believe this conference will be enlightening enough in itself. Because to celebrate Kerouac’s work is to celebrate an idea of writing as a crossing of this vast and unsettled continent that we mistakenly call life, and that we can only endure because we know it is a journey with a thousand paths, but no destination. And that is what great literature teaches us, even, or especially, when it does not wish to teach us anything – and thank God for that. Continue reading
Conferência Paulo Quintela
Ao fundo deste palco, a projeção de uma foto de Paulo Quintela. É uma imagem solar, de alguém em plena maturidade, naquele momento em que corpo e espírito parecem estar ainda em perfeita sintonia, um pouco antes do envelhecimento que força à autonomização progressiva do espírito em relação ao corpo. É também uma imagem de confiança, de alguém que enfrenta o futuro na crença nas suas capacidades, mesmo se em tempos pouco favoráveis, que exigem um olhar avisado e perscrutador. E, como se constata pela indumentária, ou pela cigarrilha na mão direita, é a imagem de alguém confortável no seu papel, social e institucional, de alguém que, tudo somado, acredita na sua missão. Em resumo, esta é a imagem de um Mestre e é também para celebrarmos os nossos mestres que hoje nos reunimos aqui, estudantes e professores. Em Paulo Quintela, o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas homenageia todos aqueles e todas aquelas que nos marcaram no nosso percurso escolar e académico nesta Faculdade e nesta Universidade, nas salas de aula e de seminário para começar, mas também nos gabinetes, nos corredores e outros espaços comuns e, em certas ocorrências, no próprio espaço público. Aqueles e aquelas que nos fazem dizer com reverência, com orgulho e, por vezes, com a nostalgia que é, em rigor, a nostalgia da nossa própria juventude, “Eu fui aluna de Maria Helena da Rocha Pereira”, “Eu fui aluno de José Gonçalo Herculano de Carvalho”, “Eu fui aluna de Ofélia Paiva Monteiro”, “Eu fui aluna de Maria Irene Ramalho de Sousa Santos”, “Eu fui aluna de Paulo Quintela”, “Eu fui aluno de Vítor Aguiar e Silva”. Continue reading
Jornadas Literárias de Sharjah em Coimbra
O volume Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, importante escritor português do período romântico, inclui um texto, intitulado “Destruição de Áuria – Lendas Espanholas (Século VIII)”, publicado pela primeira vez na revista Panorama em 1838. O texto abre com uma espantosa prosopopeia que unifica “as províncias de Espanha”, ou seja, toda a Península Ibérica, num grito de dor ante a invasão muçulmana: “Um som de queixume e pavor – um grito tremendo e doloroso se escutava em todas as províncias de Espanha. Desde os fraguedos de Gibraltar, até os distantes desvios das Astúrias, não se via senão desespero, aflição e luto. O império fugira das mãos dos Godos, o trono de Rodrigo jazia por terra, e estava fadado que a altiva Espanha sofresse o jugo do invasor muçulmano”[1]. Mais adiante, descrevendo as vagas da invasão da península, afirma-se que “Diante deles, o país parecia os jardins do Éden; atrás deles, um ermo despido”[2]. Alexandre Herculano, que foi também um importantíssimo historiador, sempre empenhado em usar a Razão para desfazer mitos historiográficos, cede aqui, como de resto em muitos outros passos da sua produção literária, à visão cristã do processo histórico, na verdade anunciada desde o século IX, quando se começa a produzir a narrativa que, definindo a Hispânia como essencialmente cristã, considera a presença árabo-islâmica “uma intrusão que cumpria à monarquia asturiana eliminar”[3]. Esta narrativa fundamentará depois a construção das monarquias hispânicas, incluindo a portuguesa, e justificará a descrição de todo o processo como “Reconquista”, uma imagem problemática, por muitas razões. Continue reading
Sobre o ensino da literatura. A partir de Paulo Franchetti
O elenco incompleto de livros de Paulo Franchetti expostos na mesa grande do IEB termina, neste momento, no pequeno volume Sobre o Ensino de Literatura, editado pela UNESP em 2021. Um volume pequeno, de pouco mais de 100 páginas, mas que percorre toda uma vida de dedicação a uma atividade que só parece ser dotada de uma justificação quando não pensamos nessa questão, o que de resto define a prática dos professores de literatura: fazem uma coisa em que acreditam, mas só até ao momento em que interrogam as razões da sua crença. A situação seria análoga à do estudante de teologia que, na descrição de Karl Popper, seria justamente aquele que o faz porque duvida da sua fé. Contudo, e como sabemos há muito, a dúvida, metódica ou não, tem uma produtividade própria, ainda que neste caso essa produtividade seja estranhamente assimétrica. De facto, a disparidade entre a prática definidora de uma profissão – o ensino da literatura – e o volume de reflexão sobre essa prática manifesta-se, desde logo, na escassez de produção sobre o assunto, quando confrontada com a abundância de escrita sobre literatura. Esse é, aliás, um tópico inicial deste mais recente livro de Paulo Franchetti, que também por essa razão funciona como fonte e pretexto para a jornada de debate que o Instituto de Estudos Brasileiros promove neste dia, aproveitando para homenagear o trabalho do autor (visita recorrente no IEB nos últimos anos) no domínio dos estudos brasileiros e portugueses. Continue reading
A Tradução na Prática – A Prática da Tradução
Na conclusão de um famoso ensaio de 1952, “Filologia da Weltliteratur”, o grande filólogo romanista Erich Auerbach afirma: “De qualquer modo, a nossa pátria filológica é a Terra – a Nação já não pode sê-lo. É certo que a coisa mais preciosa e indispensável que o filólogo herda é a língua e a cultura de sua nação; mas é preciso afastar-se delas e superá-las para que se tornem eficazes. Temos de retornar, em circunstâncias diferentes, ao que a cultura pré-nacional da Idade Média já possuía: à consciência de que o espírito não é nacional” [1]. Estas palavras, escritas sete anos após o final da Segunda Guerra Mundial, num Festschrift dedicado a Fritz Strich, um dos grandes pensadores da goethiana Weltliteratur, ressoam com um dramatismo particular de novo neste ano de 2022. Mas não é tanto a nota kantiana, de apelo ao cosmopolitismo como condição da paz perpétua, que desejo realçar, e sim a implicação que elas carregam consigo dentro do paradigma filológico: pois admitir que a nossa pátria filológica é a Terra inteira exige de nós o imperativo de um poliglotismo ilimitado, única forma de fazer justiça a essa pátria babélica que é o mundo humano. Continue reading
Environments: Ecologies and (In)Hospitalities
For the 7th time the Portuguese Association for Anglo-American Studies meets at the Faculty of Letters of the University of Coimbra. The specificity of this meeting, dedicated to ENVIRONMENTS: ECOLOGIES AND (IN)HOSPITALITIES, as compared to previous ones, lies perhaps in the fact that it takes place in a context where humanity has been forced to prepare for the end of the world. However, this version of the apocalypse should be corrected, since the world whose end is at stake here is the human world only. I would like to quote at this point the Brazilian indigenous leader Ailton Krenak, who reminds us that “humanity has been detaching itself in such an absolute manner from this organism that is the earth” that “The only nuclei that still consider that they need to stay attached to this earth are those that have been kind of forgotten on the edges of the planet, on the banks of rivers, on the shores of oceans, in Africa, Asia or Latin America. They are caiçaras, Indians, quilombolas, aborigines – sub-humanity. Because there is a humanity that is, let’s say, cool. And there is a more rough, rustic, organic layer, a sub-humanity, a people that are stuck to the earth. It seems that they want to eat earth, suck the earth, sleep lying on the dirt, wrapped in the dirt” [1] (p. 22). Why has modernity become so inhospitable to this humanity that wants to eat and suck the earth? I return to Ailton’s perplexity: “How can we recognize a place of contact between these two worlds, which have so much common origin, but have become detached to the point that today we have, at one end, people who need to live off a river and, at the other, people who consume rivers as a resource?” (p. 51) Continue reading