Em 2011, ou seja, há 10 anos, a pretexto dos 33 anos da publicação de Finisterra. Paisagem e Povoamento, de Carlos de Oliveira, reuniram-se em Coimbra, por convite meu e sob a égide do Centro de Literatura Portuguesa, cinco investigadores para uma jornada sobre a obra. A data não redonda, porventura esotérica, mostra bem que se tratava de reunir alguns “maluquinhos de Finisterra”, no caso Manuel Gusmão, Nuno Júdice, eu mesmo, Pedro Serra e Luís Mourão. Do livro depois publicado não consta a comunicação de Manuel Gusmão, já que o seu texto fora entretanto deslocado para o importante volume que dedicou a Finisterra naquela data, com o título Finisterra. O Trabalho do fim: recitar a Origem, livro publicado na editora Angelus Novus e logo depois premiado. Continue reading
Category Archives: In memoriam
Luís Mourão (1960-2019)
Agora que o Luís já não está aqui, apercebo-me de que embora ao longe, por vezes demasiado ao longe, e com longos interregnos, a minha vida teve sempre a companhia dele: na aventura da Angelus Novus (lembro sobretudo, não sei bem porquê, a Zentralpark, cujos dois números dirigimos, com o Américo), no Ciberkiosk, para o qual escreveu regularmente uma “Meia crónica”, no Casmurro, em tantas outras coisas e eventos, sem esquecer os mestres pensadores comuns (Eduardo Lourenço, acima de todos) ou a comum paixão pela música. Uma companhia sempre afetuosa e interessada, nas horas boas como nas más, que as houve e em excesso. O Luís dava um abraço em modo sorridente e, a partir daí, o reencontro decorria como se nos tivéssemos despedido ontem. O Luís falava baixo, às vezes quase sussurrava, mesmo em intervenções públicas, e esse tom conversado e íntimo, que era a sua forma de estar presente, era também a melhor tradução da sua forma de pensar. Um modo de pensar que parecia progredir por meandros ou pequenas derivações anedóticas, mas que guardava sempre o segredo de um fio narrativo, como se o ensaio participasse nele ainda da ficção, a sereia de toda a sua vida. Continue reading
Ângela de Oliveira: A criptógrafa de sono fácil
Ângela de Oliveira, viúva de Carlos de Oliveira, faleceu a 15 de fevereiro de 2016. Em 2017, José Manuel Mendes recolheu uma série de testemunhos num livro, a que deu o título Carta a Ângela, livro que veio a ser objeto de lançamento a 1 de abril de 2017, no âmbito da primeira exposição do espólio de Carlos de Oliveira no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. O texto que se segue é o meu testemunho sobre Ângela, incluído nesse livro (pp. 85-99).
A CRIPTÓGRAFA DE SONO FÁCIL
Numa carta a Augusto Abelaira com data de 27.01.1974, hoje incluída no espólio de Carlos de Oliveira no Museu do Neo-Realismo, este refere, a certa altura, o seu poema «Bolor», que viria a surgir como epígrafe ao romance homónimo de Abelaira, nos seguintes termos: «…a cópia de ‘Bolor’ que lhe entreguei há dias não está certa. Tem num único verso o que devia estar em dois. Dei por isso casualmente, ao passar a limpo o poema para a tradutora italiana. Um engano da Ângela. De modo que resolvi enviar-lhe outra cópia, definitivamente certa, para a portada do seu romance».
O engano é «da Ângela» porque era ela a quem cabia, na divisão do trabalho literário no casal, passar a limpo a escrita de Carlos. Este, porém, corrige o lapso, na forma de uma «outra cópia, definitivamente certa». A formulação é curiosa, ainda que reveladora, vinda de um autor para o qual nada parecia certo em definitivo, e tanto assim é que passou a vida a reescrever os seus textos, mesmo depois de publicados (às vezes, muito depois). Mas a ontologia do processo manifesta-se inteira, mesmo numa carta, e mesmo perante um episódio que se diria circunstancial: Carlos escreve à mão, Ângela datilografa, Carlos reescreve, neste caso, «definitivamente». O processo detém-se, e é na forma como ele é lançado, tanto quanto na decisão de o deter, que assistimos à constituição, sempre problemática, do autor. Só na aparência, contudo, o papel de Ângela é secundário e, a esse respeito, conviria admitir o carácter enganador deste excerto de carta. Por duas razões, pelo menos: porque é sempre sobre o dactiloscrito de Ângela que operam as correções posteriores, o que significa que é o dactiloscrito a peça central do processo de escrita (o suplemento – do manuscrito, neste caso –, é, manifestamente, bem mais do que um suplemento); porque a ideia de uma cópia «definitivamente certa» é uma ilusão metafísica simétrica daquela outra que buscaria no espólio do autor o manuscrito «original» – ou o dactiloscrito final. O primeiro existe pouco, e percebe-se que foi sempre encarado como instrumental para a passagem ao dactiloscrito, ou seja, para a entrada em cena de Ângela. O segundo, quando existe, está mais ou menos saturado de correções manuscritas, revelando de novo a distribuição do trabalho entre os dois.
Mark E. Smith (1957-2018)
“I always thought the pure essence of rock’n’roll was a completely non-musical form of music. Rock and roll is surely not a ‘music’ form. I hate it when people say, ‘Oh, but the production’s so bad on it and I can’t hear the lyrics properly’. If they want all that then they should listen to classical music or Leonard Cohen – who’s nothing but ‘poetic’. I’m not about that. Writers like that are too serious and precious about their ‘craft’ as they call it. There’s no fire or danger there, because they’ve thought all of it out.”
Renegade. The Lives and Tales of Mark E. Smith, Penguin Books, 2008, p. 115.
Nicanor Parra (1914-2018)
Uma evocação de Carlos Cunha, entre Braga e São Paulo
Quando a Rita (a Professora Rita Patrício) me convidou para participar nesta evocação do Carlos (o Professor Carlos Cunha) vi-me naquela situação de quem não pode dizer que não, embora muito desejasse fazê-lo. Não podia dizer que não pois sempre guardei do Carlos a melhor impressão pessoal, ainda que os nossos contactos não fossem muito frequentes. Mas sabia que, vindo à Universidade do Minho, o reencontraria, naquele gesto de avançar para nós, sorriso rasgado, aperto de mão forte, prolongado num meio abraço acolhedor – tudo isso que comecei por conhecer em Coimbra, quando o Carlos lá frequentou a parte curricular do Mestrado. Obviamente, não é Coimbra que está em causa nessa cena primitiva do nosso encontro mas sim o Professor Aguiar e Silva – uma outra razão para não poder dizer que não. A minha relação com a Universidade do Minho, que é uma relação próxima, sempre foi mediada pelo prof. Aguiar e Silva, e o Carlos sempre foi para mim o Minho (não apenas a universidade), o Prof. Aguiar e Silva e a Teoria da Literatura, tudo isso num compacto peculiar mas reconhecível.
Há um momento na nossa vida em que a morte se torna familiar – e nada volta a entrar realmente nos eixos. Passamos a viver no regime um tanto póstumo de quem ficou para trás, sem perceber porquê, face àqueles que se adiantaram e desapareceram, mais ou menos subitamente. E vemo-nos na situação de quem tem de aceitar o inaceitável e recuperar do passado tudo aquilo que nos permita continuar («Il faut continuer», como dizia, a respeito de outra coisa, ou talvez não, Theodor Adorno). Lembro-me, por exemplo, cada vez mais, do Carlos, da Rita e do José Cândido em Ponta Delgada, no colóquio de homenagem ao Professor Aguiar e Silva, lembro-me das brincadeiras maliciosas (minhas e dos outros) sobre Teófilo Braga, sobretudo numa caminhada noturna, após um jantar, e um tanto por acaso, até ao monumento ao grande positivista e historiador da literatura, no Forte de S. Brás. O pretexto era obviamente o estudo, verdadeiramente impressionante, que o Carlos dedicara, na tese de doutoramento, à obra de Teófilo – e o Carlos ria e entrava no jogo, ao mesmo tempo que garantia que já tinha a sua dose de Teófilo. Mas lembro-me também do tempo longuíssimo que o Carlos teve de esperar pela saída do nº 1 da Revista de Estudos Literários, do Centro de Literatura Portuguesa, um número organizado por António Apolinário Lourenço e por mim, sobre os estudos literários em Portugal no século XX. Tudo se atrasou para lá do previsível e até do aceitável – mas o Carlos nunca protestou e nunca retirou o seu texto, o que seria até compreensível neste tempo de publicação em regime histérico. E, contudo, fora o primeiro a entregar o texto solicitado. Continue reading
E tudo em mim é um fogo posto
É num dia destes que percebemos como certas pessoas fazem parte da nossa vida. Há tanto tempo. Pessoas como Zé Pedro.