O volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço dedicado ao Brasil, com o título Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem, tem cerca de 700 páginas. Um tal volume de escrita é, obviamente, justificação bastante para um colóquio como este. Mas o que surpreende é a constatação de que toda essa reflexão sobre matéria brasileira parte de um conhecimento direto de apenas um ano, em 1958-59, quando Lourenço foi docente de filosofia na Universidade da Bahia, ainda que acrescentado por alguns outros períodos mais ou menos breves (um semestre como professor visitante no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, nos anos 80, por exemplo). Daí o título proposto para este evento: um tempo brasileiro breve, enquanto experiência direta, mas duradouro nos seus efeitos e ressonância.
Dispomos de várias descrições do período de Eduardo Lourenço na Bahia, todas elas saborosas, francas e corajosas, desde logo na admissão de choques culturais, estranhamentos e resistências do próprio ensaísta a essa cultura outra que é a do Brasil baiano. Permitam-me que recorde alguns desses momentos. Para começar, a estranheza do professor que vê uma funcionária entrar a certa altura na sala de aula com uma bandeja com uma xícara de café, que não bebe por não beber café, para passado um bocado ver a funcionária regressar, desta vez com um sumo de guaraná, que achará “uma coisa indescritível, deliciosa” (TB, p. 560), convencendo-nos intimamente de que esse guaraná bebido numa aula de fenomenologia será para sempre a sua madeleine brasileira. Ou o momento em que um jovem expansivo, frequentador ocasional das suas aulas, lhe exibe o grosso volume de Grande Sertão: Veredas e proclama que se o professor quiser conhecer o Brasil terá de ler a obra maior de João Guimarães Rosa. O jovem chamava-se Glauber Rocha e será um dos grandes momentos de revelação do Brasil durante a sua estadia e mesmo depois. Ou ainda esse momento único e demasiado revelador em que num terreiro de candomblé, sentindo os efeitos da percussão sobre o seu cartesianismo, o intelectual “horrorosamente europeu” que é Lourenço recusa o transe e deixa o terreiro – espantado por ver Jorge Amado entregar-se àquilo mesmo. E, claro, todos os episódios relativos à Bahia daqueles anos, anos que coincidem com um dos períodos em que o Brasil “vai dar certo”, o período de Juscelino Kubitschek, em que instituições são criadas (universidades, por exemplo, como a de Assis, a cuja fundação assiste, deslumbrado com as batas brancas dos professores, como se toda a universidade quisesse dar prova da sua entrega ao ofício e culto da ciência) e em que uma vivência democrática se instala, como nos concertos de música do século XX pelo maestro Koellreuther na reitoria da Universidade da Bahia, “com pessoas de pé descalço na assistência que entravam e sentavam-se nas cadeiras… o mais democraticamente do mundo”. Continue reading