A minha contribuição para esta mesa-redonda de tema tão ambicioso (1) é deliberadamente modesta, limitando-se a apresentar uma coisa, definível como algo entre um dispositivo e uma máquina, de que tomei conhecimento na Biblioteca da Universidade de Maastricht, na Holanda. A coisa chama-se Mindfulnest [uma extensão e brincadeira com Mindfulness], que traduzirei por Ninho de Meditação, descrita online como “uma cabina concebida com um propósito de relaxamento”. “Aqui, afirma-se, você pode recuperar o fôlego, escutar os exercícios de meditação e mindfulness oferecidos, sentar-se em silêncio ou usar a sua própria app de meditação”. Na mesma página, pode ler-se que “Dentro do Ninho de Meditação há um iPad que pode ser usado para selecionar meditações, entre outras coisas”. O Ninho esteve instalado temporariamente na Biblioteca e a sua utilização era grátis.
Mas não se trata apenas de meditação, enfatiza Pim van den Bos, estudante de Mestrado em Direito, e um dos coordenadores do Wellbeing Movement entre os estudantes de Maastricht:
Eu acredito firmemente que experimentar um espaço completamente livre de estímulos já é um grande passo. Não interessa o que as pessoas fazem ali – meditar, rezar ou apenas sentar-se em silêncio. É um lugar onde se pode recarregar as baterias, ganhar novo foco e reduzir o stress. Espero que o Ninho de Meditação conquiste em breve um papel específico nas vidas dos estudantes e do staff em mais instituições do ensino superior.
Completando a descrição com elementos de uma outra página, podemos ler que “Estudantes e membros do staff podem usar o Ninho de Meditação por períodos de 5 a 20 minutos. Num tablet dentro da cabina há sons de fundo e meditações que podem ser postos a correr. ‘Ou então podes trazer o teu próprio telemóvel e auscultadores. E podes, obviamente, sentar-te apenas em silêncio’”.
Humanos, pessoas, máquinas
Até aqui, a descrição desta cabina ou cápsula ou dispositivo ou maquineta. Agora, permitam-me uma redescrição, para a qual irei recorrer a contributos da antropologia, começando por uma resposta de Claude Lévi-Strauss a Didier Eribon, num conhecido volume de entrevistas: “Gostaria de fazer-lhe uma pergunta simples: o que é um mito? [pergunta D. E.] – Não é uma pergunta simples, é exatamente o contrário […]. Se você interrogar um índio americano, seriam muitas as chances de que a resposta fosse esta: uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não eram diferentes”. (2)
Na minha redescrição, antecipo já, o Ninho de Meditação é uma coisa do tempo em que os humanos e as máquinas já não são diferentes, razão pela qual o humano fatigado pela biblioteca – que podemos começar por descrever como uma plataforma de acesso à informação – recarrega as suas baterias (um tropo reconhecível, mas nem por isso menos significativo) dentro desse dispositivo maquínico mínimo. Para chegar a esta inferência, recorro à teoria que o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro vem desenvolvendo sob a designação de “perspetivismo ameríndio”, para cuja definição proponho o seguinte excerto:
A etnografia da América indígena contém um tesouro de referências a uma teoria cosmopolítica que imagina um universo povoado por diferentes tipos de agências ou agentes subjectivos, humanos como não-humanos – os deuses, os animais, os mortos, as plantas, os fenômenos meteorológicos, muitas vezes também os objetos e os artefactos –, todos providos de um mesmo conjunto de disposições perceptivas, apetitivas e cognitivas, ou, em poucas palavras, de uma ‘alma’ semelhante (id., p. 43).
Não vou analisar agora em detalhe as peculiaridades desta cosmopolítica que distribui o agenciamento por entidades que, humanas ou não-humanas, vivas ou artefactuais, “são intensivamente pessoas, virtualmente pessoas, porque qualquer um deles pode se revelar (se transformar em) uma pessoa” (pp. 45-6). Ser “pessoa” não é uma propriedade distintiva de uma espécie, mas sim a potencialidade ontológica de ocupar um ponto de vista, razão pela qual, nas palavras ainda de Viveiros de Castro, “o conceito de pessoa – centro de intencionalidade constituído por uma diferença de potencial interna – é anterior e superior logicamente ao conceito de humano” (id., p. 47).
O que quero então dizer, para rematar esta redescrição, é que o Ninho de Meditação é o ponto de vista de uma era em que as máquinas são já – nos termos do perspetivismo ameríndio – pessoas. E isto permite-nos reentrar na biblioteca ou revisitar a cena da biblioteca contemporânea com outros olhos. Esta cena pode ser descrita deste modo, se não erro: a biblioteca é hoje um edifício de investimento arquitetónico mais ou menos avultado cujo pano de fundo (em larga medida decorativo ou, pelo menos, desativado) são essas pessoas a que chamamos livros (analógicos), pessoas que, contudo, cederam o privilégio do uso intensivo (e do ponto de vista) aos computadores, que são aquelas pessoas que definem, de facto, a ontologia da biblioteca atual. Nas palavras ainda de Viveiros de Castro, ou seja, de acordo com o perspetivismo ameríndio, cuja lógica profunda creio autorizar esta extensão ciborgue, “Alguns não-humanos atualizam essa potencialidade [a capacidade de ocupar um ponto de vista] de modo mais completo que outros” (id., p. 46), podendo aliás fazê-lo com uma intensidade superior à da nossa espécie – e esse seria hoje o caso de computadores ou telemóveis, dispositivos de mediação e xamanismo.
Suplementos
O ponto de vista que o computador, enquanto pessoa, traz à recodificação da ideia de biblioteca é, porventura, o de uma intensificação ilimitada do ritmo do trabalho, à medida da disponibilização, em princípio também sem limite, de toda a informação (previamente desmaterializada) do mundo. O computador permite o acesso a essa informação que está e não está – não pode estar – numa biblioteca física, fazendo desta uma Ideia de que resta, na sua concretização espacial e histórica, um local físico de estudo e, sobretudo, acesso: um terminal, digamos (ou uma jetée). Isto torna mais difícil a concretização do ideal clássico da biblioteca, que consiste basicamente em permitir que a busca do conhecimento decorra tanto dentro como fora da lógica da razão instrumental, pois parece manifesto que a “Biblioteca de Babel” de Borges é a figura dessa deriva metonímica da pesquisa que, de prateleira em prateleira, pode ser sem fim (ou melhor, pode ser uma finalidade sem fim) – algo que, receio bem, a pesquisa em computador põe em causa, já que a sua lógica é antes de tipo funcional. De facto, na pesquisa em computador a possibilidade random é já produto de uma eleição ou determinação prévia, ao contrário da busca numa biblioteca física, na qual o aleatório da descoberta é uma consequência não prevista da pesquisa pré-determinada. Nesse sentido, o Ninho de Meditação é bem um produto da ontologia do mundo digital, pois nele meditação ou relaxamento são já possibilidades contidas na app.
Visto assim, o Ninho de Meditação parece funcionar como uma figura do suplemento, tal como o filósofo Jacques Derrida o teorizou: algo que, colocado numa posição aparentemente acessória, de facto dá a ver, segundo o modelo da parte pelo todo, o fundamento do edifício, revelando-se, pois, tudo menos acessório. Ou seja, o Ninho enquanto “stimulus-free space”, o que poderá ser o nome mais justo para qualquer biblioteca, desde que ela saiba estar à altura desse nome, já que nenhuma biblioteca necessita de estímulos que suplementem aquilo que ela é, enquanto estímulo sem fim – e, pelo menos numa das suas faces, sem necessidade de uma finalidade exterior, o que permite sair dela lá dentro, por exemplo num ninho de meditação.
(1) Este texto reproduz, em versão reescrita, a minha participação no Fórum RBE 2023, subordinado ao título geral Bibliotecas Escolares. Liberdade e Transformação, que teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, no dia 24 de outubro de 2023. Essa participação teve lugar no âmbito de uma mesa-redonda plenária com o título “Presente em (trans)formação: que lugar para a Humanidade?”. Participaram ainda nessa mesa-redonda Joana Gonçalves de Sá, Neuza Pedro e Regina Duarte, com moderação de Isabel Meira.
(2) Uso a transcrição do excerto que consta de Eduardo Viveiros de Castro, Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Ubu Editora, 2018, p. 56, livro que usarei a partir daqui para outros efeitos.