Um glossário (não alfabético) de trabalhos de orientação

Antes de mais, agradeço o convite da Área de Filología Gallega y Portuguesa do Departamento de Filología Moderna, da Universidade de Salamanca, para participar nesta iniciativa tão notável, que nos permite confrontar práticas e ouvir estudantes de doutoramento sobre os seus trabalhos de tese. A minha participação consiste numa reflexão, um tanto autobiográfica e não tanto teórica, sobre alguns (poucos) tópicos relacionados com trabalhos de orientação de teses, um momento fundamental do trabalho na universidadeda investigação, que é ao mesmo tempo, como sabemos, a universidade da burocratização (é uma constatação, não um lamento). Como o meu título sugere, vou abordar os tópicos não por ordem alfabética, mas por ordem de relevância.

Seminário

Desde há pelo menos dois séculos e meio, o doutoramento não é pensável sem a figura do seminário, nascido no final do século XVII nalgumas universidades alemãs, e desenvolvido ao longo do século XVIII, até ganhar a configuração atual na Universidade de Berlim, no início do século XIX. Para todos nós, hoje, a ideia de doutoramento é inseparável da ideia de investigação e esta é inseparável da de seminário – que desde então, como todos os historiadores da questão insistem, funciona para as Humanidades como o laboratório para as ciências (uma analogia mais problemática do que parece, aliás). Foi com o seminário que o privilégio da conferência, mais ou menos magisterial, foi substituído pela nova configuração formativa, muito mais horizontal, assim como o ensino centrado na disputatio – e, por isso, na oralidade – foi largamente substituído pela produção escrita de ensaios, que passaram a ser a fonte da disputatio, que em rigor não chegou a desaparecer, ainda que menorizada pelo privilégio da escrita. Com o seminário veio a rotina burocrática da pesquisa e sua tradução em papers apresentados periodicamente, uma rotina que, a partir de finais do século XVIII, se veio a harmonizar com aquilo a que William Clark [1] chamou o fundamento romântico do novo carisma académico: ser capaz de acrescentar algo de novo sobre um pano de fundo de “ciência normal”, feito das referidas rotinas (as do primado da metodologia e as do calendário do seminário) mas também de produtividade, um percurso que culmina a partir de então na tese de doutoramento (o PhD) enquanto trabalho de pesquisa original. Este ponto é decisivo e voltarei a ele mais adiante.

Passo agora a questões de ordem mais pessoal. Devo confessar, para começar, que tenho um interesse particular pelas etnografias do seminário, seja qual for a área em que ele decorra. A última a que tive acesso surge num volume de homenagem ao grande antropólogo espanhol Manuel Gutiérrez Estévez, descrito no título do livro, de 2015, como Maestro de etnógrafos (americanistas) [2]. O primeiro capítulo do livro intitula-se “Bajo magisterio” e consiste em dois textos de homenagem de duas grandes figuras da área. Mas é no segundo capítulo, intitulado “Desde el Seminario de Antropologia Americana”, que se concentram as descrições do lendário seminário de Manolo Estévez. Vou recorrer apenas à descrição de Juan Antonio Flores Martos, no texto “En el seminario: Collegium venatorum”, que abre assim:

En el autobús, en el metro o en el tren —alguna ventaja tiene vivir en un barrio alejado del centro de Madrid, muchas horas disponibles en los trayectos diarios—, voy leyendo un cuadernillo de lecturas que comentaremos esta tarde en el seminario. El de esta semana tiene más de doscientas páginas, y entre el traqueteo y frenazos antes de llegar a cada estación ando acabando el último de los textos, de título oscuro y contenido incitante —“Nagual, brujo y hechicero en un pueblo quiché”, de Benson Saler—. A veces tomo alguna nota o subrayo. Espero poder decir algo atinado al menos de dos de los textos: de este y del de Gonzalo Aguirre Beltrán, “Nagualismo y complejos afines”. Los dos más teóricos de Durkheim y Lukes me han gustado menos, o será que la teoría me queda algo lejos y disfruto más con la etnografía y los casos capturados en archivos. (p. 41)

 O autor esclarece depois que não se trata apenas de um seminário livre, mas de um curso de doutoramento:

Además de seminario, es un curso de doctorado —Hechicería y Chamanismo (perspectivas teóricas y análisis de casos americanos)—, aunque los compañeros matriculados suelen ser menos o un número parejo a los que vamos al seminario. Al salir de una clase de Religiones Indígenas Americanas, Manuel Gutiérrez me invitó a acudir al seminario hace algo más de un año, y desde la primera sesión a la que acudí no dejé de querer más. No imaginaba entonces que durante siete años formaría parte de mi disciplina y goce semanal. (id.)

Permitam-me ainda uma descrição final do espectro do seminário de Manolo Estévez, cuja pertinência, apesar da extensão da citação, creio que reconhecerão:

El seminario no es solo el tiempo que pasamos sentados en círculo en esa sala, unas dos horas que se pasan volando, fundamentalmente escuchando y tomando notas, y las menos de las veces hablando —“tomamos la escucha”, más que “tomamos la palabra”—. Son sobre todo las lecturas sosegadas o ensimismadas en trayectos de acelere urbano, las notas garabateadas sobre las fotocopias o en cuadernos aparte —algunas las pasaré a limpio a lo largo de la semana—. Funciona para nosotros como un taller localizado y deslocalizado al mismo tiempo. Tampoco soy consciente en ese momento de su utilidad, si es o no “formativo”, solo siento que me gusta, que deseo que continúe y que yo forme parte en algún modo de él. Años después leeré a un estimulante escritor francés, Roland Barthes, que escribía en un breve texto titulado “En el seminário” sobre el suyo, revelando que este se fundaba sobre una comunidad de lenguaje “deseante” de textos: “Se trata de desear el texto, de poner en circulación un deseo de texto (hay que aceptar este desplazamiento de significado: Sade hablaba de un ‘deseo de cabeza’)”. Nuestro seminario, sin darnos cuenta, funciona como un espacio de deseo. (p. 42)

Vou permitir-me elencar as caraterísticas do seminário de Antropologia Americana de Manolo Estévez que mais me interessam nesta descrição: (i) a dificuldade em distinguir o seminário de uma aula ou de um curso, apesar do seu regime aparentemente de frequência livre; (ii) a sua longa duração; (iii) a dificuldade em distinguir o momento formativo do não formativo; (iv) o trabalho sobre os textos, como se estivéssemos a assistir a uma derivação direta do Seminarium Philologicum criado em Göttingen, em 1738, e, em consequência, o privilégio do monográfico sobre o panorâmico; (v) o seu cunho oficinal, para não dizer experimental. Acrescento um outro traço definidor do seminário, avançado algures por Hans Ulrich Gumbrecht: a proximidade física, que no seminário se traduz na figura da “mesa grande” à volta da qual estudantes e professor se encontram periodicamente, uma proximidade que Gumbrecht traduz no tropo da “contiguidade corporal”, insistindo na ideia que é dessa contiguidade corporal e, logo, material, que o pensamento emerge no contexto do seminário (algo que põe em causa a efetividade de um seminário por via remota). Em resumo, o seminário é aquela instituição da universidade da investigação que combina liberdade de formato com exigência e na qual a produtividade é a outra face de um permanente retorno à filologia (aquilo a que Barthes chama um “desejo de texto”). Por fim, o seminário propõe uma refundação da autoridade docente num contexto que não é já o do Magister (embora possa ainda convocá-lo: é essa, aliás, a minha memória pessoal dos seminários de Vítor Aguiar e Silva), mas sim de uma intensa proximidade, na qual a Bildung se torna também uma questão de forma. De resto, é porque o regime distribucional da formação vacila, entre aquilo que é e aquilo que não é formação, que ela tende a ocupar todo o espaço da relação, do mais formalizado ao menos formalizado. O seminário torna-se assim uma utopia formativa na qual a distinção entre, por exemplo, o curricular e o não curricular perde toda a pertinência, como de resto deveria ocorrer na escola em geral.

Para terminar o primeiro termo deste glossário, gostava de dar dois exemplos marcantes do funcionamento do seminário na minha carreira. O primeiro, o Seminário de Orientação, no 3º semestre do Programa de Doutoramento em Materialidades da Literatura, ao qual os estudantes submetem pelo menos duas versões do seu Projeto de Tese. Deste trabalho resulta a versão final do projeto que será submetido à Prova de Qualificação. O seminário tem um propósito mais formativo do que avaliativo, já que a classificação a atribuir resulta basicamente da qualidade do projeto final, mas sobretudo da capacidade do estudante para reformular o projeto, na sequência do processo de debate ativado pela versão do projeto entregue, e também da sua capacidade para se manifestar criticamente sobre os projetos apresentados pelos colegas. Lecionei pontualmente este seminário, cujo docente de referência é Manuel Portela. A minha função resumiu-se, a bem dizer, a criar o quadro concetual e prático (que inclui uma calendarização rigorosa) em que decorreriam as apresentações e discussões e a proceder a uma tentativa de súmula de todas as intervenções dos estudantes no final do processo de discussão de cada projeto. Num modelo destes, a qualidade das sessões depende da capacidade dos estudantes para investirem na leitura e discussão dos pressupostos dos projetos dos colegas, evitando ao máximo que esse investimento resulte da maior ou menor empatia em relação ao tema do projeto. Os dois maiores riscos do modelo são, num extremo, o funcionamento burocrático dos estudantes, que ocorre como mecanismo de defesa em relação a uma eventual e indesejada retribuição de empenho crítico; e no outro extremo, um entusiasmo na discussão que pode violar, momentaneamente, as regras não escritas da ética do debate académico. Entendo, porém, que o primeiro risco é mais danoso que o segundo, pelo que vale a pena correr o risco de favorecer um debate acalorado, mesmo que aqui e ali ele possa sair da justa medida, evitando assim que o seminário se torne apenas uma aparência de diálogo. Tive o privilégio de ter uma turma que, na sua diversidade e contrastes, era de uma riqueza intelectual e humana inesquecível e creio que, apesar de alguns momentos menos conseguidos, a experiência desse seminário se revelou realmente formativa.

A segunda experiência resultou de, num certo momento, a minha acumulação de orientações ser tal que tive de criar um mecanismo coletivo de apresentação e discussão, apoiado numa plataforma online (uma WIKI, na qual disponibilizava o calendário das sessões, a apresentação de cada estudante, alguns itens bibliográficos fundamentais no trabalho de cada um, que assim os outros podiam conhecer, além dos temas transversais e permanentes no seminário, apoiados também com bibliografia dedicada). Como tinha um número considerável de estudantes com bolsas, as reuniões eram presenciais e com periodicidade fixa, tendencialmente mensal. Em cada sessão 3 ou 4 estudantes apresentavam o estado da arte do seu trabalho, após o que se discutiam as incidências sobretudo metodológicas da apresentação. Faço notar que o seminário incluía estudantes de cursos e níveis diversos: de mestrado (poucos) e doutoramento (a grande maioria) e, nestes, de doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa, em Materialidades da Literatura e em Estudos Artísticos (na área do cinema). Contudo, a principal diferença entre os estudantes resultava, mais do que de idiossincrasias pessoais, das diferentes culturas de curso envolvidas: nos cursos em que a cultura de debate é mais intensa, a participação dos estudantes tendia a ser mais afirmativa. Uma inibição natural marcava as intervenções dos estudantes de mestrado, num contexto mais “adulto” do que aquele a que estavam habituados. No geral, porém, a diversidade foi um trunfo e não um problema, permitindo contribuições enriquecedoras de estudantes de cursos diversos daqueles em que se produzia a apresentação. Para de certo modo obstar aos efeitos entrópicos da diversidade, o seminário tinha alguns temas recorrentes e transversais, aos quais se dedicava sempre algum tempo de discussão, quase sempre em torno de um texto proposto por mim. O tema mais estruturante foi o ensaio, a partir da bibliografia de referência (Lukács, Musil, Adorno, em particular). Voltarei a este ponto mais adiante.

Como a história da universidade ocidental demonstra, a ascensão do seminário só se verificou porque foi possível imaginar uma nova configuração institucional para o ensino superior, uma configuração que pressupôs uma forte intervenção e patrocínio estatal. Por isso mesmo, tenho consciência de que a minha utopia universitária, que passa sempre pela figura do seminário, não é politicamente inocente e exige um trabalho constante nas instituições que, em rigor, é um trabalho político. Ou seja, para podermos fazer à volta da mesa grande aquilo que sonhamos, temos de antes e depois nos batermos por isso à volta de outras mesas grandes, mais dadas ao pesadelo (ou, pelo menos, ao desencanto) do que ao sonho. A minha Arcádia, se o posso dizer assim, é o seminário, mas tenho a consciência inteira de que se trata de uma utopia com um custo – político e, tantas vezes, pessoal.

Metafísica

Todo o orientador conhece aquele momento em que o estudante, quando inquirido sobre o andar da tese, responde que está tudo a correr bem, pois tem avançado muito. Perante nova pergunta do orientador pela evidência material desse progresso, o estudante responde sugerindo que a tese está “escrita in mente”, faltando apenas transcrevê-la para o computador. Nessa altura, o orientador astuto aproveita para calendarizar uma primeira entrega, na forma de um capítulo ou subcapítulo. Com frequência, a entrega falha, confessando o doutorando que no momento da transposição do capítulo da mente para o computador, algo não funcionou. Podemos chamar a este o “momento metafísico” da tese, que em rigor decorre de uma resistência à específica materialidade da escrita – porque em grande medida a famosa “ansiedade” da tese é apenas um nome para a resistência à escrita, que tende a ganhar a forma de um adiamento do momento de confronto com ela. A razão desse adiamento mais ou menos inconsciente é facilmente reconhecível, já que é no próprio momento da escrita que o doutorando percebe que a escrita, ao contrário do que a metafísica enquanto senso comum sugere, não é uma mera técnica de registo e mediação de algo prévio (ideias, intuições, etc.).

O que pode um orientador fazer para desbloquear a ansiedade em relação à escrita? Talvez criar ocasiões ou oportunidades para que uma escrita preparatória tenha lugar, desdramatizando o processo. No meu caso, uma estratégia a que recorro com alguma regularidade é a que consiste em propor aos estudantes que redijam um texto breve, de não mais de 2 páginas A4 e a espaço e meio, sobre o adversário teórico da sua tese. A reação inicial dos estudantes é muitas vezes de perplexidade, como se a ideia de uma componente adversarial da sua argumentação fosse demasiado estranha. Nessa altura, perante estudantes mais recalcitrantes, procedo por exemplos, referindo casos notáveis e notórios ou de argumentos obviamente adversariais, ou de argumentos nos quais a rasura deliberada do adversário vai a par do seu permanente retorno, como se o silenciado, digamos, gritasse sem cessar. Alguns estudantes não conseguem formular um adversário teoricamente definido, remetendo para uma espécie de antagonismo genérico e improdutivo, revelador de problemas mais gerais. Noutros casos, é a própria ontologia adversarial que pode ser objeto de resistência, na medida em que o trabalho se alimenta de uma autorrepresentação de tipo propositivo e não agonístico, o que não contesto, pois a produtividade do exercício não reside tanto na reflexão sobre a natureza da argumentação, mas sobre a escrita que a questão desencadeia, ainda que na forma de rejeição.

Trata-se, é bom de ver, de um típico exercício preparatório de escrita que tem a meu ver o condão de forçar o estudante a confrontar-se com uma proposta inesperada e da qual resulta que não pode recorrer à escrita como mera transmissão de algo previamente possuído in mente. Pelo contrário, tem de, no espaço de um exercício fortemente (de)limitado por critérios e regras (o tópico, a extensão), pensar escrevendo, com a consciência acrescida das possibilidades limitadas de expressão que lhe são oferecidas.

Um outro exercício, que proponho quando o estudante se encontra naquele momento em que resiste a abandonar a abstração do pensamento e a passar à escrita, encadeando leituras sobre leituras, de modo a inconscientemente adiar o momento da escrita, consiste em solicitar que o estudante indique as três referências bibliográficas fundamentais para a sua tese, fazendo a sua descrição e justificando a eleição de cada uma delas. Trata-se de um exercício mais modesto que o anterior, mas que, mais uma vez, força o estudante a abandonar o reino encantado da pura acumulação de leitura (o reino da acumulação primitiva…), para pensar a ecologia da informação do seu trabalho, fazendo escolhas e elegendo caminhos (uma reação frequente é o estudante pedir um acrescento do elenco, até às 5 ou mesmo às 10 referências…). E fazendo-o por escrito, o que exige um trabalho específico entre o sumário, o resumo, o verbete ou a entrada de enciclopédia, dando a ver como a escrita académica é um código que é necessário dominar.

O objetivo final, recordo, é o de fazer com que o estudante perceba que a escrita é uma modalidade de suplemento que, como diria Derrida, vem antes, pois é ela quem desencadeia, reorienta, questiona e critica a ideia de uma ideia prévia que coincidiria com a tese que existe sem necessitar de ser escrita. Muito ao invés, o que a reflexão sobre a escrita nos ensina é que a tese começa no momento em que a sua escrita começa e não antes, já que tudo o que existe antes desse momento não dispõe de qualquer garantia de sobrevivência. A melhor maneira de encerrar este ponto é com uma citação do grande escritor mexicano Salvador Elizondo:

Sólo existe una forma real, concreta, del pensamiento: la escritura. La escritura es la única prueba de que pienso, ergo, de que soy. Si no fuera por la escritura yo podría pensar que el pensamiento mismo que concibe la realidade del mundo como una ilusión y como una mentira es, él mismo, una ilusión, una mentira.

Ensaio

Nunca esqueci um distinto universitário que, em conversas de corredor, resolvia discussões em torno do nome de Eduardo Lourenço com a frase: “É um ensaísta…” O tom da frase era claramente depreciativo e a invocação do ensaio comportava consigo todo um contraditório académico produzido por séculos de erudição e notas de rodapé. Creio que este contraditório permanece vivo, ou pelo menos disponível para ressuscitar, sempre que o ensaio entra em cena, mudando embora a natureza dos agentes da reação. Num ensaio a que agora me reportarei, com o título “O desaparecimento do ensaio”, de 2009 [3], Abel Barros Baptista revisita um dos conflitos estruturantes dos estudos literários do século XX, o conflito entre a teoria literária e o ensaio, concluindo, como o título indica, por um desaparecimento do ensaio, desaparecimento que prefiro redescrever (creio que sem ser infiel à leitura de Abel Barros Baptista) como uma ocorrência de recalcamento – do ensaio pela teoria – que configura uma vitória de Pirro desta. Na leitura de Abel, a rivalidade entre a teoria e o ensaio, uma rivalidade “surda mas inexorável”, paradoxal mas constitutiva, pode explicar-se assim:

O que está em causa é o lugar do ensaio como forma privilegiada de conhecimento da literatura, desde logo, saber se o ensaio se afasta suficientemente da literatura para não ser por ela contaminado. A descrição que agora proponho seria esta: a teoria literária tem de pressupor uma literatura capaz de se conhecer a si mesma, e a teoria tem de ser teoria dessa capacidade, ou seja, a teoria literária é o perito que ensina a literatura a conhecer os modos como se conhece a si mesma. (p. 11)

A forma como Abel Barros Baptista progride no seu argumento é bem esclarecedora, pois em vez de produzir uma teoria geral do ensaio, ou da relação deste com a teoria, opta por ler um texto famoso, o conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, o mesmo é dizer, opta por não se afastar da literatura, de modo a poder ser por ela contaminado. Na leitura de Abel, o detetive Dupin triunfa sobre a polícia de Paris na sua busca pela carta roubada porque em vez da recursividade que carateriza o método de pesquisa da polícia (o método científico) opta pela identificação com o sujeito singular no qual a sua imaginação certeira reconhece o criminoso, como se no inquérito policial (e no ensaio) o ideográfico triunfasse sobre o nomotético. Nas palavras de Abel

O ensaio dá forma a essa capacidade de a literatura se conhecer a si mesma, mas forma que justamente fragmenta o todo, despreza a totalidade, brinca com a verdade e tripudia sobre as regras, porque não conhece a bem dizer nenhum objeto senão como pretexto do seu surgimento. (p. 23)

Por isso mesmo, ainda nas palavras de Abel, “A rivalidade da teoria com o ensaio é uma inevitabilidade, um drama inseparável do projeto histórico da teoria literária” (id.), que no fundo sempre viu no ensaio uma modalidade de tagarelice ou, para o dizer de outro modo (o modo da teoria), de discurso ateórico. O problema é que esta descrição do problema não o resolve – apenas o rasura, para que ele viva e sobreviva nessa modalidade sob rasura que é a da relação do ensaio com a literatura e com a teoria, já que, ainda nas palavras de Abel Barros Baptista, o ensaio “é objeto de estudo [da teoria], porque faz parte da literatura, e ao mesmo tempo é competidor, porque ambiciona descrevê-la deste ou daquele modo” (p. 23). O que isto então implica, para o trabalho de escrita de uma tese, é que as invocações da exaustividade do método ou do rigor da teoria não resolvem nem suspendem o problema central, que é o que deriva da natureza da literatura e da sua relação problemática com os discursos que a visam descrever, explicar e ao mesmo tempo conter, para não serem por ela contaminados, problema esse para o qual o ensaio funciona como um dispositivo revelador – e, por isso mesmo, não eliminável do quadro geral da reflexão e estudo sobre a literatura, por maior que seja o volume de erudição, teoria ou notas de rodapé, coisas que de resto não são em si mesmas nem boas nem más.

Para um derradeiro ponto sobre o ensaio, vou reportar-me a um texto de Alcir Pécora, de 2020, intitulado “O ensaio na época da morte do ensaio” [4]. É um texto em três partes, tratando a primeira “A crise da universidade pública” e a segunda “A crise das Humanidades”, dentro da reivindicação de uma filiação no “género” de textos sobre a universidade iniciado pelo Cardeal Newman em 1852 com o livro The Idea of a University. Na terceira parte o ensaio de Alcir Pécora sofre uma inflexão, abordando então “Uma ideia de ensaio”, ideia essa cuja inspiração inicial, e decisiva, é o ensaio de Abel Barros Baptista que acabo de referir. Alcir acrescenta explicitamente dois pontos à argumentação de Abel. O primeiro é a ideia de que

o ensaio tem de saber parar antes de tornar-se um método geral de análise, pois isso mesmo o alienaria da obra que pretende elucidar. O ensaio postula uma hipótese estritamente individual da obra, só se contenta com o que a obra tenha de singular. Isso significa que o ensaio é fundamental nas Humanidades exatamente porque dramatiza uma relação pessoal e intransferível.

Para o segundo ponto, que é o que desejo enfatizar e assim concluir, Pécora regressa ao conto de Poe, prolongando a leitura de Abel Barros Baptista, mas agora elegendo aquele momento em que Dupin substitui a carta roubada por uma carta em branco, com dois versos transcritos pelo seu punho, o que seria suficiente para que o ladrão reconhecesse quem o roubara, pois nas suas palavras “Ele conhece muito bem a minha letra” (trata-se também de um ajuste de contas de Dupin com o ladrão, que num momento anterior o desfeiteara). Daqui infere Pécora que o conto não termina apenas com a recuperação da carta, mas “com uma espécie de assinatura de Dupin, a sua letra”, o que lhe permite afirmar que o detetive “não apenas elucida o enigma, mas constrói uma autoria”. Vou então transcrever o parágrafo final de Pécora, fundamental para a questão aqui em discussão:

Assim, um ensaio bem-sucedido é menos uma explicação de um problema anterior do que a constituição dramática da autoria de um problema. A autoria, de resto, é tudo o que torna a atuação de Dupin coerente com a sua intervenção no caso, pois, em analogia com a natureza do ensaio, ela só tem sentido se for ação assinada, ao passo que na ação do Inspetor-Chefe a assinatura se dissolve no método, no procedimento, na rotina. A autoria, portanto, é o que reforça o princípio de legitimação do ensaio nas Humanidades. E quando digo isso quero dizer que, no final das contas, não se trata de “pesquisa” – nunca entre nós se tratou essencialmente de pesquisa, de metodologia, de análise ou de corpus –, mas sim de conquistar uma autoria reconhecível, deixar uma marca algures que os outros, competentes na nossa área, não podem deixar de reconhecer.

Como se lembram, logo no primeiro termo deste curto glossário, citei a posição de William Clark, para o qual o seminário, e depois o PhD, produziram uma nova fundamentação, de tipo romântico, do carisma académico, centrado na pesquisa original. Alcir Pécora destrói esta construção benévola, notando que “pesquisa”, “metodologia”, “análise” ou “corpus” são, nas Humanidades, imputações caritativas às quais não corresponde uma efetiva analogia científica. Não se trata, faço notar, de arruinar em modo niilista a analogia entre seminário e laboratório, mas antes de relevar no seminário aquilo que não é traduzível em analogia por ser específico das Humanidades: a produção da autoria num contexto conversacional e retórico, um aspeto que todas as etnografias do seminário deixam bem claro, um primeiro momento daquilo que, na passagem decisiva à escrita, cabe ao ensaio ratificar como género literário destinado, antes de qualquer outro, não a resolver problemas mas a propô-los à nossa consideração, anexando-os em sentido forte ao nome do ensaísta: Abel Barros Baptista, Alcir Pécora, Eduardo Lourenço… Uma tese de doutoramento, a meu ver, deve ambicionar esse efeito de anexação, para merecer o nome de tese.

Referências:

[1] William Clark, Academic Charisma and the Origins of the Research University. Chicago and London. The University of Chicago Press, 2006.

[2] Francisco Ferrándiz et alii (eds.) Manuel Gutiérrez Estévez. Maestro de etnógrafos (americanistas). Madrid e Frankfurt, IberoAmericana-Vervuert, 2015.

[3] Abel Barros Baptista, “O desaparecimento do ensaio”, in De Espécie Complicada. Ensaios de Crítica Literária. Coimbra, Angelus Novus, 2010, pp. 25-42.

[4] Alcir Pécora, “O ensaio na época da morte do ensaio”, in Miscelânea, vol. 27, 2020. DOI: https://doi.org/10.5016/msc.v27i0.1904

[Texto lido no evento “CRUZAMENTOS. Investigação em Estudos Portugueses e Brasileiros”, que teve lugar no Departamento de Filología Moderna. Área de Filología Gallega y Portuguesa, da Universidade de Salamanca, no dia 31 de maio de 2024, mobilizando docentes e doutorandos da referida universidade e ainda das universidades de Coimbra e Évora]