M/M. Colóquio Internacional sobre Max Martins

As pessoas que aceitaram o convite para hoje e amanhã se reunirem nesta sala em torno de Max Martins fizeram-no, estou certo, na convicção de que a sua obra é um segredo mal guardado. Até há pouco tempo, devo admitir, o meu caso era o daqueles para quem o nome Max Martins era realmente da ordem do segredo, situação que se alterou em função direta da lógica de intercâmbio e cooperação que rege o atual sistema científico internacional, do qual os universitários tanto apreciam desmerecer (por vezes com razão), esquecendo porém as suas virtudes. De facto, foi na sequência de uma proposta para acolher em Coimbra uma estudante de doutoramento do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, a Leila Coroa, naquilo a que o génio institucional e linguístico brasileiro chama “doutorado sanduíche”, que decidi adquirir para a biblioteca do IEB a obra do poeta, na edição atual da Universidade Federal do Pará. O efeito da sua leitura foi não apenas surpreendente, mas pessoalmente deslumbrante e devemos, pois, à Capes, que financiou a vinda da Leila (que ainda por cima apareceu com o André Aquino, que eu conhecera numa estada atribulada no IEL, e cujo objeto de estudo é também Max Martins), esta reunião que a certa altura se me impôs como obrigatória – uma reunião que integra Leila e André entre os seus conferencistas e que pressupõe o seu trabalho em várias áreas da conceção e organização, como entendo que deveria ocorrer sempre na universidade de hoje.

Admitir, pois, que há razões que explicam que Max Martins seja um segredo mal guardado não é o mesmo que dizer que tais razões justifiquem essa situação, pois um outro significativo conjunto de razões justificariam já hoje uma bem diversa situação, de entre as quais destacaria o facto de a atual edição da sua Poesia Completa, em função do esforço conjunto da pessoa que a concebeu e realizou, em termos filológicos e de conceção gráfica, ou seja, Age de Carvalho, e da Universidade Federal do Pará, ser uma edição exemplar e inteiramente apta a atrair leitores e oficiantes do culto de M/M (e do culto do livro, já agora, pois cada volume desta edição é um hino à ideia de livro e, em particular, à ideia de livro de poesia). Mas também porque esta obra soube situar-se de forma extremamente inteligente na encruzilhada do pós-concretismo, resgatando dele as possibilidades, e mesmo a revelação, do ideograma, sem, todavia, ceder àquilo a que Max chamou “o predomínio do visual, o significante cristalizado, sem o significado”. Nas suas palavras, “Eu preciso do significado apesar de dar grande valor ao significante. Quero estar na fronteira” (1). Há seguramente várias formas de entender este desejo e esta fronteira, mas conviria começar pelo mapa que faz de Belém, e da Amazónia, uma fronteira que dissolve a própria ideia de fronteira em função de um magma primordial que torna irrelevantes marcos e códigos externos, segregando a sua própria linguagem. “Uma vez, diz Max Martins em entrevista, me perguntaram por que eu não escrevia poemas sobre a Amazônia como natural daqui: respondi que a Amazônia é que de um modo qualquer me escrevia” (2). É bem revelador da natureza, e da densidade, desta obra que, interrogado sobre a Amazónia, Max Martins responda como quem cita Heidegger sobre a precedência da linguagem que, para o filósofo alemão, é, não o que falamos, mas o que nos fala. Com uma diferença, já que a Amazónia escreve Max (e em Max) “de um modo qualquer”: tal como o inconsciente escreve, mas também como se, em termos amazonenses, não houvesse dois lados da fronteira, mas apenas um: o lado pulsional da escrita, essa coisa sem fim nem começo, atividade intransitiva como a própria vida, enfim, “H’era”.

Curiosamente, porém, é o mesmo desejo de “estar na fronteira” que faz deste “magro poeta” (que claramente não esqueceu a lição pessoana) alguém que desenvolve uma prática obsessiva do antirretrato, explorando o seu nome próprio, decompondo-o, fazendo dele morfema e fonema numa deriva paronomásica e sígnica que faz do nome traço, decalque e recalque de signo e nome. A barra oblíqua entre os dois M/M a que reduz progressiva e insistentemente o seu nome é ainda esse desejo de fronteira, deslocado e inscrito agora no que resta do nome, ou melhor, naquilo que pluraliza, separa, une e indecide o nome desse inominado que mora dentro de cada um de nós. Um inominado que diríamos que só se torna nome realmente próprio quando se reduz a uma espécie de carimbo, ou pochoir, que substitui a ficção narcísica da assinatura.

Não vale a pena, pois, enredarmo-nos naquela fatalidade brasileira que parece destinar a pessoas como Max Martins o carimbo, e o destino, dos duplamente periféricos – ou, pior ainda, força a longas justificações e resgates dessas periferias que se desdobram e cumulam, tantas vezes com assinalável volúpia teórico-política. Max Martins, aka M/M, é simplesmente um grande poeta moderno, afirmando-se, ao seu modo discreto, mas persistente, como um dos mais importantes poetas brasileiros da segunda metade do século XX. Beneficiando de um ecossistema peculiar, no qual uma forte dinâmica intelectual dentro de um pequeno grupo parece compensar da distância em relação aos grandes centros culturais brasileiros, Max Martins elegeu desde cedo uma versão da radicalidade do moderno na qual a “travessia da página” e a “discursividade espasmódica”, para citar o seu companheiro de percurso Benedito Nunes, se harmonizam num corpo a corpo em que matéria da linguagem e arte erótica se tornam uma coisa só. Mas em que nunca se esquece o caráter figural da redenção pelo verso, como quando se afirma, num dos inéditos recolhidos em Say it (over and over again): “Este poema / este dilúvio seco” (3).

Num poema publicado nos anos 90 no jornal O Liberal, no Dia da Poesia, com o título “Mistério da Poesia”, e recolhido agora em Say it (over and over again), o poeta afirma, logo a abrir: “Perguntam ao poeta (Mister Mystery) o que é o mistério da poesia: / É aquilo que fica quando os professores de Letras extraem as metáforas /os tropos e os andaimes do poema”.

Coisa muito a considerar neste evento… Para, mais à frente, afirmar: “É aquilo que fica quando o incêndio da cabana de Malcolm Lowry destrói o poema”. Podíamos também nós contribuir para essa espécie de litania sobre o mistério da poesia, rematando: “É aquilo que fica quando herdamos a cabana de Max em Marahu”.

Resta-me agradecer a todas as entidades que tornaram este evento possível. Começo pela UNICAMP, cujo convénio para a área dos Estudos Brasileiros, criado há anos, ratificado por todos os reitores desde então e entretanto alargado, pelo atual reitor, Professor António José Meirelles, a muitas outras áreas científicas, permitiu trazer a este evento duas importantes figuras dos estudos literários brasileiros, os Professores Marcos Siscar e Eduardo Sterzi. Agradeço também à Direção da Faculdade de Letras o generoso apoio concedido, bem como ao Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas e ainda ao Centro de Literatura Portuguesa, unidade de I&D que no nosso sistema assegura a interação entre ensino e pesquisa, neste caso sobre literatura brasileira, ao nível da pós-graduação. Ao Museu da Universidade Federal do Pará agradeço a gentil permissão para uso de reproduções do extraordinário acervo dos cadernos de Max Martins. Por fim, agradeço a Age de Carvalho a disponibilidade e colaboração manifestadas desde a primeira hora e cujas marcas são reconhecíveis em todo este evento, desde a exposição que agora iremos inaugurar até ao efeito do seu trabalho editorial (e, em rigor, curatorial) na leitura que hoje fazemos de Max Martins.

(1) Max Martins, O estranho. UFPA, 2015, p.67.
(2) Max Martins, O estranho. UFPA, 2015, p. 64
(3) Max Martins, Say it (over and over again). UFPA, 2021, p. 210.

[Texto lido na abertura do evento M/M. Colóquio Internacional sobre Max Martins, a 18 de abril de 2024 na sala do Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra]