Obsessão e fenomenologia do Brasil

Creio que a primeira vez que estive num evento académico com Eduardo Lourenço foi justamente aqui, em Salamanca, há demasiados anos, num colóquio organizado pela área de Português, então coordenada por Ángel Marcos de Dios. Se não erro, Lourenço tentou nessa ocasião um paralelo contrastivo entre a literatura espanhola e a portuguesa, gesto apenas ao alcance de quem possua um repertório de leituras ao nível daquele que o definia – e sempre, se também o recordo bem, em torno das diversas formas de vivência do trágico dos dois lados da fronteira. É, por isso, auspicioso que esta sessão de apresentação de um livro coletivo sobre a relação entre Eduardo Lourenço e o Brasil decorra em Salamanca, ou seja, naquela Espanha tão próxima historicamente de nós quanto a Universidade de Coimbra, que foi a Alma Mater de Lourenço, está próxima da de Salamanca, universidade que formou as primeiras gerações de mestres de Coimbra. E não é possível descurar a evidência de que, sem o empenho da Universidade de Salamanca no Centro de Estudos Ibéricos, quer através do Colaboratorio Europeo de Estudos Brasileiros – Grado em Estudios Portugueses y Brasileños, quer através do Centro de Estudos Brasileiros, todo o processo que hoje culmina na apresentação pública deste livro teria sido muito mais difícil, para não dizer impossível. Enquanto organizador deste volume, desejo, pois, agradecer a todas as entidades e pessoas desta universidade envolvidas no colóquio que se realizou na Guarda, a 13 e 14 de junho de 2023 (que se encontram, de resto, nesta mesa) – e permitam que o faça globalmente na pessoa do Sr. Vice-Reitor, Professor Raúl Sánchez Prieto.

Não é possível, porém, minimizar o trabalho extraordinário que o Centro de Estudos Ibéricos vem realizando na Guarda, em torno da obra e da memória de Eduardo Lourenço, tanto mais que todos sabemos como num país tão centralizado e centralista como Portugal é difícil desenvolver projetos culturais de grande alcance no chamado interior (que em rigor começa a pouco mais de 100 km do litoral e vai até à fronteira com Espanha). Este ano em que Portugal comemora os 50 anos da revolução que exterminou a ditadura e nos libertou da guerra nas então colónias portuguesas em África e do colonialismo, abrindo ao país um horizonte de paz, democracia, integração europeia e desenvolvimento humano e material, é uma ocasião propícia para refletirmos sobre a dura luta pela memória que necessitamos de relançar a cada dia, contra a amnésia que tudo indiferencia, mas também contra todos os revisionismos do passado. Lourenço é uma figura luminosa da luta contra esse revisionismo, como deixou claro em plena revolução com um livro cujo título irónico é todo um programa de denúncia – O fascismo nunca existiu –, mas é também uma figura da luta contra o consenso das autorrepresentações caritativas, como todo o seu pensamento crítico sobre o colonialismo, há poucos anos reunido em livro (um livro muito recentemente reeditado em edição aumentada), deixa bem claro. Não duvido, aliás, que na conjuntura politicamente regressiva que vivemos, em Portugal e em toda a Europa, esse pensamento intempestivo de Lourenço – e que o forçou, durante a ditadura, a publicar vários desses textos com pseudónimos, ou a guardá-los simplesmente na gaveta por longos anos – ganhará um novo gume crítico, face ao retorno de discursos e imaginários que propõem o reencantamento de um passado que só foi encantado nas páginas dos manuais com que a ditadura propunha aos infantes e jovens a História de um Portugal das Maravilhas.

O livro que hoje apresentamos publicamente intitula-se Eduardo Lourenço e o Brasil: um encontro breve, mas duradouro. Porque de facto o período em que Lourenço viveu no Brasil foi breve, assim como as estadas posteriores a esse ano letivo nos anos 50 na Bahia, mas foi rico em consequências. Como ele próprio confessou, foi na Bahia que se apercebeu de todo o alcance da dimensão colonial e imperial da história portuguesa e foi no Brasil desse período (o do Brasil desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, aquele que “ia dar certo”, que coincide com o início das independências das ex-colónias europeias em África) que a questão do colonialismo se lhe impôs e, com ela, a do lugar da Europa no mundo descolonizado – esse mundo que hoje resumimos na prosopopeia, um tanto irredentista, do “Sul Global”. Mas foi também na Bahia que sofreu a revelação da grande literatura brasileira, de que conhecia até aí uma secção particular, de grande impacto sobre a sua geração (a do romance de 30), bem como as especificidades, muitas delas anticartesianas, da cultura profundamente mestiçada do Brasil, quer pela vertente africana da sua formação, quer pela indígena. Inversamente, é também possível afirmar que foi no Brasil que Lourenço se apercebeu do seu cartesianismo constitutivo, ainda que mitigado pelas críticas modernas do sujeito e da metafísica, assim como se terá certificado, de novo, que a sua grande questão era a Europa, sem a qual de resto, na sua leitura, Portugal não teria verdadeiro destino. Sobre tudo isto, de forma inicialmente deslumbrada e depois progressivamente refletida e crítica, Lourenço produziu um discurso e um pensamento hoje reunido em livro com o revelador título Tempo brasileiro: fascínio e miragem. Foi essa obra que um conjunto de colegas, na sua maioria brasileiros, discutiu no colóquio da Guarda no ano passado – e permitam que mencione, pelos colegas brasileiros que participaram nesse evento, a Professora Annita Costa Malufe, hoje docente desta universidade e presente nesta sessão. Creio que este livro terá o dom de relançar a discussão sobre a leitura do Brasil por Lourenço, uma leitura que, como todas, corre o risco de se cristalizar e naturalizar, mas que transporta consigo uma potência específica, permitindo-nos decifrar, mesmo que em regime polémico ou, pelo menos, debatível, esse grande Outro a que chamamos Brasil. É o que ocorre, creio, numa passagem de um livro recente, (de 2021) e indispensável, do escritor e cientista português António Vieira, com o título Viagem pelo Brasil [1999-2000]. Diário de um escritor português. Permitam que proponha à vossa consideração, e agora em português, esta passagem bem reveladora, de balanço da primeira viagem, a de 1999:

Entendo que, neste país complexo e críptico, a minha passagem tem sido demasiado protegida: no Rio, a rede de amigos de Gilda; em Mato Grosso, a fazenda de Marci; na Amazónia, a espessura da floresta; agora, em Pernambuco, o belo burgo de Olinda e a casa confortável que nos cederam. Assim, é por fissuras e frestas que entrevejo o fundo entenebrado de uma sociedade de sofrimento, emoldurada embora pelos mais belos cenários, animada por pessoas de uma gentileza ímpar e por críticos propensos ao humor, ao sarcasmo, por vezes à recuperação satírica do desastre: a ‘rasura do trágico’, como escreveu Eduardo Lourenço. E direi do Brasil o que Goethe dizia de Molière: ‘as suas comédias confinam com a tragédia’. (Companhia das Ilhas, p. 106)

 Entrever o Brasil “por fissuras e frestas”, diz António Vieira. Sendo uma dessas frestas essa noção instrumental, recuperada em Lourenço, a que este chamou “a rasura do trágico”. Isso mostra a que ponto, para os portugueses pelo menos, a leitura do Brasil por Lourenço se tornou uma como que evidência – mesmo se neste livro essa “rasura do trágico” seja questionada seriamente por Eduardo Sterzi. Do outro lado, porém, e como Pedro Serra demonstrou no seu ensaio, perdura em nós a capacidade de maravilhamento de que Lourenço dá provas, no grande texto que dedica à Igreja de São Francisco, de Salvador da Bahia, e ao qual deu o título aparentemente clínico “Fenomenologia e História da Arte: o exemplo barroco”, um texto que é, todo ele, uma demonstração dos poderes da fenomenologia para reduzir os objetos do mundo ao seu efeito essencial em nós. Dessa “fenomenologia do Brasil” Eduardo Lourenço falou obsessivamente desde 1958. Este livro que hoje apresentamos é, no fundo, a proposta de uma (modesta) fenomenologia dessa obsessão.

[Texto lido em espanhol, hoje, dia 12 de abril de 2024, em sessão de apresentação pública do volume Eduardo Lourenço. Um tempo brasileiro breve, mas duradouro (Centro de Estudos Ibéricos e Âncora Editora), na Aula Magna da Faculdade de Filologia da Universidade de Salamanca]