Apercebi-me não há muito tempo de que não existe provavelmente um único banco confortável no Jardim Botânico. Em todos eles a ergonomia do assento deixa a desejar: ripas demasiado separadas ou desniveladas, ondulação provocada pela acção dos elementos, a harmonia que falta entre assento e costas: quando uma dessas partes do banco nos acolhe, a outra parece mostrar-nos a face da sua indiferença, ou mesmo desprezo. No dia em que a suspeita me tomou, regressei ao jardim e verifiquei demoradamente os bancos um a um. Experimentei assim bancos que nunca usara até então – e que desconfio não voltarei a usar – e apercebi-me de que na verdade só usara ao longo da minha vida uma meia dúzia deles, nos lugares da minha eleição: o patamar abaixo da estufa e logo acima do quadrado central, de um lado e do outro, a alameda das tílias, o primeiro patamar (as «Jardinetas») quando se sobe da alameda para a saída do lado do infantário João de Deus. Apercebi-me também da devastação que foi tomando conta dos bancos, patente na sua pura e simples eliminação de vários lugares que sem eles me parecem agora incompletos. O mundo – é apenas uma questão de tempo – vai repelindo a nossa memória.Se for justo, concluo que usei o Jardim para três coisas: namorar, ler e atravessá-lo devagar à ida ou vinda de casa (tecnicamente, do Portão das Ursulinas ao Portão dos Arcos e ao invés), quando a casa em que vivia justificava esse percurso. Apesar de o ter premeditado minuciosamente, não consegui nunca (ou ainda…) atribuir-lhe um quarto uso: ter lá aulas, ou melhor, uma aula de vez em quando, em regime peripatético e conversacional, uma «aula aberta» – bela tautologia, aliás –, um daqueles casos de demonstração prática de como a «reflexão fundamental» nunca é sem objecto. Propus ao meu conhecido Q., professor na universidade, a experiência desse tipo de aulas, só pelo gosto de a elas assistir, mas a argumentação apresentada foi uma ementa de impossibilidades: ou é o horário do Jardim que não bate certo com as aulas, ou é a estação, pouco propícia a aulas sem um tecto, ou a sintaxe das matérias. Desculpas de mau pagador de quem necessita da ecologia da sala de aula para respirar, suponho.
Em todo o caso, a minha temporada no Jardim decorre sobretudo entre o fim do Verão e aquela altura do Outono em que as folhas não caíram todas das árvores (o Outono é a mais bela estação). E, depois, entre o alto do Inverno e o início da Primavera – naquele momento surpreendente em que as magnólias florescem –, antes do auge da estação mais cruel para um alérgico a pólenes (na Primavera ideal, Abril tem, por isso, águas mil). O Verão transforma-o num local poeirento e inóspito, sem o conforto íntimo da frescura ou dos restos de chuva que gotejam e fazem poça aqui e ali, quando o Jardim é de facto um espaço mental propício à vida interior. Para quem acredite que «a realidade é uma hipótese repugnante», o Verão é o grande inimigo, pois nele a evidência feroz do mundo faz recuar o sujeito para uma posição de submissão incondicional. A realidade, percebemos então, é como o canto das cigarras: estrídulo e palpável, mas desde que façam 40º à sombra. No final de Setembro o passeante solitário pode reconquistar o direito aos seus devaneios, quando o fogo do sol se amacia e o cromatismo se enriquece, nas árvores, na terra, no céu tingido pelas nuvens que se carregam de água. É chegada a altura de regressar ao Jardim, inventando pretextos para fazer o caminho mais longo até casa.
É, pois, quando o Outono me surpreende que regresso ao Jardim. As folhas acumulam-se e desarrumam a bela esquadria dos talhões e das alamedas. Sento-me, contemplo esses prenúncios de podridão e lixo, percebo a que ponto esse espetáculo me dispensa da linguagem. Um chapim-azul visitou-me num desses dias, no último Outono, pousando na tília mesmo ao lado e fitando-me nos intervalos do seu frenesi. Saudámo-nos em silêncio, ele foi à sua vida, saltando para o chão em busca do lanche, sempre dentro do meu campo de visão, indo e vindo, entre chão e árvore e retomando de novo o contacto visual comigo. Esteve naquilo todo o tempo em que pratiquei a exigente arte de nada fazer naquele banco, naquela tarde, olhando o céu carregado e sentindo a companhia íntima das árvores. Podia encenar aqui um daqueles diálogos mentais com um passarinho, que nos reconfortam só de neles pensarmos. Mas a minha família é muito mais a das árvores que a dos animais, compreendo bem aquela estirpe de místicos orientais que simplesmente assentam praça debaixo de uma delas e aí vão definhando de corpo, e aguçando de espírito, até ao fim. Talvez seja essa, afinal, a lição mais duradoura do Jardim em mim: a pulsão de um devir árvore, a aceitação da futilidade de ser. Olho para as árvores como quem se despede, acolho-me ao seu rumor como quem nele reconhece, muito ao longe, o eco de tudo o que amou e, contudo, morreu – e que vive apenas enquanto dura esse rumor, coisa de vento, reminiscência e nada.
[abril de 2017]
Este artigo integrava uma outra página deste site (Coisas), que decidi desativar, da autoria de Pamplinas. A página, ou melhor, o seu autor, que talvez regresse de vez em quando, era apresentada desta forma:
Pamplinas (s/d), autor desta página, é escrevedor, pensador e passeante. A sua biografia é curta: não tem filhos nem obras nem projectos, de obra ou do resto. O resto, aliás, é a sua persistente ocupação e perdição. Dedica-se-lhe com a tenacidade que coloca em não distinguir irrelevâncias de platitudes, dada a sua fidelidade a ambas. Sonha com o Trans-Siberiano e com os Andes, mas entretanto vai dar uma volta ao Jardim Botânico. Um centro comercial também serve. A bem dizer, quase tudo lhe serve.
Colaborou no blog Os Livros Ardem Mal. Pode ler-se, talvez com proveito, a sua apresentação, nesse blog (que agora, porém, se lhe afigura um tanto enfática). Ou posts sobre Moby Dick, o JL, o telemóvel, a produção académica, o amigo Q., a página 161, truques baratos, a paronomásia, ser gauche na vida, o Terminator, a liberdade, poesia & ensaio, a liberdade de expressão, bem como Alberto João Jardim. Exerceu ainda, num breve mas intenso período, a crítica, com o seu Dicionário Crítico por Intermitência, desdobrado em Poetas (I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV) e em Movimentos Poéticos (I, II, III, IV). Não tenciona reincidir.