Ao fundo deste palco, a projeção de uma foto de Paulo Quintela. É uma imagem solar, de alguém em plena maturidade, naquele momento em que corpo e espírito parecem estar ainda em perfeita sintonia, um pouco antes do envelhecimento que força à autonomização progressiva do espírito em relação ao corpo. É também uma imagem de confiança, de alguém que enfrenta o futuro na crença nas suas capacidades, mesmo se em tempos pouco favoráveis, que exigem um olhar avisado e perscrutador. E, como se constata pela indumentária, ou pela cigarrilha na mão direita, é a imagem de alguém confortável no seu papel, social e institucional, de alguém que, tudo somado, acredita na sua missão. Em resumo, esta é a imagem de um Mestre e é também para celebrarmos os nossos mestres que hoje nos reunimos aqui, estudantes e professores. Em Paulo Quintela, o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas homenageia todos aqueles e todas aquelas que nos marcaram no nosso percurso escolar e académico nesta Faculdade e nesta Universidade, nas salas de aula e de seminário para começar, mas também nos gabinetes, nos corredores e outros espaços comuns e, em certas ocorrências, no próprio espaço público. Aqueles e aquelas que nos fazem dizer com reverência, com orgulho e, por vezes, com a nostalgia que é, em rigor, a nostalgia da nossa própria juventude, “Eu fui aluna de Maria Helena da Rocha Pereira”, “Eu fui aluno de José Gonçalo Herculano de Carvalho”, “Eu fui aluna de Ofélia Paiva Monteiro”, “Eu fui aluna de Maria Irene Ramalho de Sousa Santos”, “Eu fui aluna de Paulo Quintela”, “Eu fui aluno de Vítor Aguiar e Silva”.
O que todas estas pessoas têm em comum, para lá de terem sido estudantes e professores distintos desta casa, é que todas elas integraram áreas que hoje se encontram reunidas no Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. Umas dedicaram-se às línguas clássicas, outras às modernas, umas dedicaram-se às línguas estrangeiras, outras ao Português, muitas estudaram e praticaram a tradução, umas dedicaram-se ao estudo das literaturas e culturas, outras à ciência da linguagem, chamasse-se ela filologia, gramática ou, por fim, linguística. O que aproxima todas essas pessoas é, na verdade, a crença de que (como nos recordará em breve o conferencista de hoje) no princípio está a palavra, na sua capacidade fundante, combinando nomeação, descrição e performatividade e traduzindo-se em textos, orais ou escritos, num processo infindável de significação e comunicação, que inclui também a resistência à significação e à comunicação, assim como inclui enunciados que produzem afirmações categóricas sobre o mundo a par de enunciados que suspendem essas modalidades de afirmação em favor daquilo a que chamamos ficção. É bem certo que todos os departamentos, como todas as tentativas para introduzir ordem no caos da realidade, contêm em si algo de ficcional. Mas nada há de errado nisso, desde que as ficções em que decidirmos acreditar tenham a capacidade para fazer mundo, o mesmo é dizer, para estabelecerem relações entre coisas mais ou menos afastadas, desenhando cruzamentos, travessias, sobreposições, enfim, pequenas ou grandes sociedades do conhecimento. É assim que vejo o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, como uma placa giratória assente sobre aquele tipo de livro que o grande escritor brasileiro João Guimarães Rosa considerava o livro dos livros, o Dicionário, o livro que aspirava publicar aos cem anos de idade e que seria, ao mesmo tempo, o seu melhor romance e a sua autobiografia. O dicionário, isto é, uma máquina sofisticada e poderosa de produção e tradução de linguagem e linguagens, um infatigável dispositivo de renomeação do mundo, um arquivo sempre em devir.
A Conferência Paulo Quintela foi pensada como um momento agregador do departamento de línguas, literaturas e culturas, um momento em que olhamos para nós mesmos, tendo em mente aquele que é um traço definidor nosso: a capacidade para acolhermos o diferente, o estrangeiro (desde logo, no plano idiomático), para fazermos dessa diferença uma identidade rica, plural e cosmopolita. Daí o outro traço desta Conferência Paulo Quintela, o de convidarmos alguém de fora do departamento para nos ajudar, com esse olhar extraterritorial, a conhecermo-nos melhor. Por essa razão, dificilmente o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas poderia escolher uma pessoa mais adequada do que o Professor João Maria André para proferir esta conferência, já que em rigor não se trata apenas de alguém que acolhemos hoje como um hóspede nosso, dentro das regras e do cuidado da hospitalidade, esse princípio que ele tanto estudou, mas sim, e antes disso, de alguém que acolhemos como se acolhe um amigo. Um amigo de um departamento de línguas, literaturas e culturas, já que toda a obra, e todo o trabalho, de João Maria André decorreu e decorre na proximidade, para não dizer na intimidade, da linguagem, da literatura e da cultura enquanto diálogo alargado. Não vou tentar agora o retrato do nosso convidado, cuja voz ouviremos hoje com o duplo agrado de quem esperou um ano para o poder fazer – e é caso para dizer que valeu a pena, pois o nosso convidado regressou com a energia e a disponibilidade de sempre. Mas a razão que me leva a não tentar esse retrato prende-se, por um lado, com o seu excesso de currículo, e por outro, com a noção clara de que talvez possamos economizar discurso se dissermos de João Maria André que ele foi para mais de uma geração um mestre. Ou seja, alguém que tem um saber a transmitir, porque se dedicou à sua longa e árdua conquista, mas que nunca confundiu esse processo com uma qualquer modalidade de acumulação e ostensão de capital. Pelo contrário, e como acontece nos mestres de verdade, em João Maria André o saber tomou sempre a configuração de uma real disponibilidade e abertura do pensamento: para questões novas, para revisões críticas, para deslocações interdisciplinares e mesmo institucionais, como aquela que o levou a mudar de departamento para se dedicar à sua paixão pelas artes do palco, sem colocar em causa por um momento a sua dedicação originária à filosofia, isto é, ao pensamento sem condição.
Um dia, há alguns anos, convidei João Maria André para dar uma aula na minha disciplina de graduação de Teoria da Literatura. O curso tinha como objeto as relações entre literatura e direito, focando-se, contudo, na questão animal e, em particular, nos direitos dos animais. A aula de João André teve como tema as novas éticas não-antropocêntricas, centradas na consideração pelo ambiente. Essa aula, a que assisti em estado de verdadeiro encantamento, foi uma das minhas grandes experiências universitárias, confirmando a minha convicção de que é na sala de aula que verdadeiramente as Humanidades acontecem. Impressionou-me, entre tantas outras coisas, a sua capacidade para traçar de forma muito clara o panorama alargado, e multifacetado, de uma questão emergente, ao mesmo tempo que nos fazia ver todas as implicações dessa questão para o pensamento e, mais latamente, para a nossa vida. O homem que dá aulas assim é também o homem que se dedicou à programação cultural, ou que se dedica à adaptação e encenação teatral e à poesia, sem esquecer a produção vinícola (e eu poderia falar longamente sobre a forma como o vinho do produtor João Maria André me ajudou a atravessar o túnel da pandemia da Covid 19…). Mas prefiro regressar a essa aula de Teoria da Literatura e falar antes, para terminar, da posição em que me senti nesse dia, a posição de alguém que, para citar a proposição 4 do seu livro Doze Proposições sobre Livros, Leitura e Hospitalidade, de 2021, escuta um livro. E que se apercebe, e cito João Maria André, de que “essa pedagogia da escuta dos livros é uma pedagogia da hospitalidade: escutando, hospedamos aqueles que se nos dirigem, acolhemo-los na sua interpelação, damos-lhes o nosso espaço como sua habitação e morada” (p. 13). O espaço desta Conferência Paulo Quintela, que é o espaço do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, é a partir deste momento habitação e morada de João Maria André.
Muito obrigado.
[Texto lido na Conferência Paulo Quintela, conferência anual do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, no Teatro Paulo Quintela da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a 12 de outubro de 2022, 11h-13h]