O volume Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, importante escritor português do período romântico, inclui um texto, intitulado “Destruição de Áuria – Lendas Espanholas (Século VIII)”, publicado pela primeira vez na revista Panorama em 1838. O texto abre com uma espantosa prosopopeia que unifica “as províncias de Espanha”, ou seja, toda a Península Ibérica, num grito de dor ante a invasão muçulmana: “Um som de queixume e pavor – um grito tremendo e doloroso se escutava em todas as províncias de Espanha. Desde os fraguedos de Gibraltar, até os distantes desvios das Astúrias, não se via senão desespero, aflição e luto. O império fugira das mãos dos Godos, o trono de Rodrigo jazia por terra, e estava fadado que a altiva Espanha sofresse o jugo do invasor muçulmano”[1]. Mais adiante, descrevendo as vagas da invasão da península, afirma-se que “Diante deles, o país parecia os jardins do Éden; atrás deles, um ermo despido”[2]. Alexandre Herculano, que foi também um importantíssimo historiador, sempre empenhado em usar a Razão para desfazer mitos historiográficos, cede aqui, como de resto em muitos outros passos da sua produção literária, à visão cristã do processo histórico, na verdade anunciada desde o século IX, quando se começa a produzir a narrativa que, definindo a Hispânia como essencialmente cristã, considera a presença árabo-islâmica “uma intrusão que cumpria à monarquia asturiana eliminar”[3]. Esta narrativa fundamentará depois a construção das monarquias hispânicas, incluindo a portuguesa, e justificará a descrição de todo o processo como “Reconquista”, uma imagem problemática, por muitas razões.
Um dos grandes problemas desta narrativa, como sabemos, é que a longa duração do al-Andalus se deveu sobretudo ao grande desenvolvimento urbano, à sofisticação da cultura material, ao cosmopolitismo intelectual, enfim, a um profundo processo de aculturação, sobretudo visível nas zonas de contacto. É o caso de Coimbra, zona de cultura moçárabe que, na descrição de José Mattoso, “preservava elementos importantes não só da civilização árabe, mas também do direito e da liturgia visigótica, de algumas instituições romanas, da língua latina e dos costumes populares vindos já desde o Baixo Império, os quais se podem opor, pela sua feição mediterrânica, à tendência cultural dominante no Norte” – que o historiador descreve como “de caráter guerreiro, campestre e rude”[4]. É certo que, por outro lado, enquanto zona de fronteira, Coimbra foi também zona de combate permanente. E, como nota ainda José Mattoso, “O papel que a guerra teve nesta fase fundacional marcou para sempre o país, do ponto de vista ideológico, por se tratar de uma guerra religiosa”[5]. Isto passou-se, contudo, há mais de oito séculos, pelo que, na perspetiva que é hoje a nossa – uma perspetiva crítica de todos os etnocentrismos, de todos os imperialismos e de todas as guerras, religiosas ou não –, cabe-nos acarinhar esse perfil moçárabe que, nas palavras de José Mattoso, veio a produzir um equilíbrio entre as culturas do norte e do sul daquilo que viria a ser Portugal, inscrevendo a herança árabe em estratos profundos da cultura portuguesa.
Em 1983, quase século e meio após o texto de Herculano (e após a sua produção literária medievalista), Mário de Carvalho publicou o volume A Inaudita Aventura da Avenida Gago Coutinho. O conto que dá título ao volume imagina um momento em que Clio, a musa da História, adormece, o que faz com que se enleiem os fios da história e se amalgamem “as datas de 4 de Junho de 1148 e de 29 de Setembro de 1984”. Sucede, em consequência desse lapso da musa, que
Os automobilistas que nessa manhã de Setembro entravam em Lisboa pela Avenida Gago Coutinho, direitos ao Areeiro, começaram por apanhar um grande susto, e, por instantes, foi, em toda aquela área, um estridente rumor de motores desmultiplicados, travões aplicados a fundo, e uma sarabanda de buzinas ensurdecedora. Tudo isto de mistura com retinir de metais, relinchos de cavalos e imprecações guturais em alta grita.
É que, nessa ocasião mesma, a tropa do almóada lbn-elMuftar, composta de berberes, azenegues e árabes em número para cima de dez mil, vinha sorrateira pelo valado, quase à beira do esteiro de rio que ali então desembocava, com o propósito de pôr cerco às muralhas de Lixbuna, um ano atrás assediada e tomada por hordas de nazarenos odiosos.[6]
De toda esta confusão de tempos e tecnologias (cavalos versus automóveis, espadas e arcos versus pistolas) resulta a paródia de um conflito, cujas clivagens o tempo se encarregou de dissolver ou, pelo menos, de deslocar o suficiente para deixarem de ser operativas. Por fim, cada personagem regressa ao seu tempo e a sua incomensurabilidade torna-se manifesta. Como tentei, porém, demonstrar, convocando o texto de Mário de Carvalho, nosso contemporâneo, a imaginação literária tem o dom de revisitar permanentemente o passado: e assim como em Alexandre Herculano a imaginação da nação se alimenta de um conflito originário e remoto com o Outro muçulmano, em Mário de Carvalho o que resta desse conflito é um vestígio arqueológico que só regressa à vida se e quando a entidade que garante a possibilidade de contar a História adormece. Esse poder de questionar representações herdadas, mostrando como elas são o produto de culturas historicamente situadas e, por isso mesmo, alteráveis, é um dos poderes da literatura e é para celebrar esse poder que estas Jornadas foram pensadas. Mas essa celebração será tão mais forte quanto mais intensas forem as trocas entre a Universidade de Coimbra e o Emirado de Sharjah, como bem sabe o Xeque Dr. Sultan Bin Muhammad Al Qasimi, dada a sua dedicação à cultura, à literatura e, em particular, ao livro.
Para que essas trocas possam ser duradouras e profícuas, é fundamental que elas comecem pelo estudo da língua árabe, que neste momento a nossa universidade não consegue assegurar. Como diretor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, não posso deixar de lamentar essa lacuna, que empobrece a nossa oferta e diminui a nossa possibilidade de diálogo com uma vasta área do planeta, uma área na qual os portugueses tiveram em tempos uma presença, da qual deixaram vestígios monumentais e documentais, para lá daqueles que ficaram na cultura do dia a dia (na de lá mas também na de cá). Permito-me, pois, apelar ao Emirado de Sharjah para que nos ajude a recuperar o ensino da língua árabe na Universidade de Coimbra, e especificamente na Faculdade de Letras, de modo a que, a partir dessa base indispensável, possamos desenvolver um núcleo de estudos árabes. Estou certo de que este será um desígnio comum quer ao Emirado de Sharjah, quer à Universidade de Coimbra. Recordo, aliás, que no conto de Mário de Carvalho acima referido, quando, em virtude de uma confusão de tempos, o almóada lbn-el Muftar encontra
um piquete da Companhia dos Telefones que olhava para tudo aquilo com um ar espantado, dirigiu-se ao capitão, e saudou, de mão no peito:
– Salam aleikum.
E o capitão Soares, que tinha feito uma comissão na Guiné, em contacto com gente muçulmana, respondeu automaticamente, curvando-se um pouco:
– Aleikum salam.[7]
A história dos homens nem sempre caminha por vias direitas, como sabemos. Mas permite, apesar de tudo, que gente como Soares e lbn-el Muftar se saúdem, pois um deles trouxe da terra do outro, ou de terras onde se fala a língua do outro, e que visitou em contexto de guerra, o utensílio mínimo da comunicação que é a forma de saudação árabe. É assim que termino, desejando que este mínimo com que saúdo os membros da comitiva do Emirado de Sharjah contenha a promessa de muito mais: Salam aleikum.
[Texto lido nas Jornadas Literárias de Sharjah em Coimbra, 3 e 4 de outubro, Sala de D. João III do Arquivo da Universidade de Coimbra]
[1] Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas. Tomo II, Lisboa, Bertrand, 1981, p. 9.
[2] Id., p. 10.
[3] Hermenegildo Fernando, “Confronto e Interação: o islão na Península Ibérica”, in História Global de Portugal. Org. de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco, José Pedro Paiva, Lisboa, Temas & Debates, 2020, p. 164.
[4] José Mattoso, D. Afonso Henriques, Lisboa, Temas & Debates, 2007, p. 110.
[5] Id., p. 149.
[6] Mário de Carvalho, A Inaudita Aventura da Avenida Gago Coutinho, Lisboa, Caminho, 6ª ed., pp. 27-28.
[7] Id., pp. 33-34.