Sobre o ensino da literatura. A partir de Paulo Franchetti

O elenco incompleto de livros de Paulo Franchetti expostos na mesa grande do IEB termina, neste momento, no pequeno volume Sobre o Ensino de Literatura, editado pela UNESP em 2021. Um volume pequeno, de pouco mais de 100 páginas, mas que percorre toda uma vida de dedicação a uma atividade que só parece ser dotada de uma justificação quando não pensamos nessa questão, o que de resto define a prática dos professores de literatura: fazem uma coisa em que acreditam, mas só até ao momento em que interrogam as razões da sua crença. A situação seria análoga à do estudante de teologia que, na descrição de Karl Popper, seria justamente aquele que o faz porque duvida da sua fé. Contudo, e como sabemos há muito, a dúvida, metódica ou não, tem uma produtividade própria, ainda que neste caso essa produtividade seja estranhamente assimétrica. De facto, a disparidade entre a prática definidora de uma profissão – o ensino da literatura – e o volume de reflexão sobre essa prática manifesta-se, desde logo, na escassez de produção sobre o assunto, quando confrontada com a abundância de escrita sobre literatura. Esse é, aliás, um tópico inicial deste mais recente livro de Paulo Franchetti, que também por essa razão funciona como fonte e pretexto para a jornada de debate que o Instituto de Estudos Brasileiros promove neste dia, aproveitando para homenagear o trabalho do autor (visita recorrente no IEB nos últimos anos) no domínio dos estudos brasileiros e portugueses.

No ensaio “O que fica do que passa. Sobre o estudo e o ensino da literatura”, com que o livro abre, Franchetti procede a uma reconstrução do panorama do ensino da literatura no Brasil desde a criação da Universidade de São Paulo, nos anos 30 do século XX, concluindo pela crise de uma série de legitimações: “Neste quadro, ensinar a literatura como parte ou lugar privilegiado da formação nacional deixou de fazer sentido. Quase tanto como a ideia de formação nacional” (p. 23) [1]. Sem qualquer ilusão, afirma em seguida que “Um ensino voltado à construção do repertório e capaz de instrumentar a leitura com dados da tradição literária começa a parecer pouco interessante, quando não improdutivo ou até mesmo inútil” (p. 23). Em vez da retração num ideal de profissionalismo estrito – “maior especialização do crítico e do professor, consubstanciada num discurso autorreferenciado e hermético” (p. 25) – o autor propõe que “A solução passaria, isso sim, pela busca de um lugar novo para a literatura, no âmbito de uma formação humanística ampla, cuja preocupação central não fosse a formação de professores de Português ou de Literatura” (id.). O argumento deixa vir à tona o lastro iluminista do autor, sempre dividido entre o apelo da sala de aula como local onde acontece aquilo que só na aula enquanto “espaço de interrupção” pode acontecer, e uma esfera pública na qual a aula seria sem paredes e o professor um “professor de leitura, um profissional capaz de obter o maior rendimento da leitura de um texto literário com vistas à formação de um público culto” (id.).

O argumento aproxima Franchetti do Edward Said tardio, o de Humanismo e Crítica Democrática [2], que reconhecendo embora a pertinência histórica do anti-humanismo (que, no caso norte-americano, associa à revolta contra a guerra do Vietname), não cede à tentação de deitar fora o bebé com a água do banho, denunciando antes a irrelevância a que as humanidades se entregaram, em muitos casos, no nosso tempo. Recentrando a questão, Said afirma, de forma um tanto congenial com Franchetti, que “as humanidades dizem respeito à história secular, aos produtos do trabalho humano, à capacidade humana de articular a expressão” (p. 33). Numa passagem do ensaio “O regresso à filologia”, Said afirma, a propósito, que “uma leitura minuciosa de um texto literário … localizará gradativamente o texto no seu tempo como parte de toda uma rede de relações, cujos contornos e influência desempenham um papel formador no texto” (p. 92). Em perfeita consonância, Franchetti afirma a certa altura no seu livro que “uma obra solta no tempo não tem significação literária, no sentido que damos a essa palavra hoje” (p. 31). Num outro ponto, defende, ainda de uma forma articulável com as posições de Said, que

Ensinar literatura … em sentido amplo, é criar condições para que o estudante, o leitor em formação, possa tornar-se ele também um herdeiro desse manancial. … Tornar-se herdeiro significa não só poder compreender, mas poder vivenciar em si mesmo o passado. Isso inclui poder deslocar sua perspetiva temporal sobre vários assuntos, de modo a compreender que quase nada de ‘natural’ existe no comportamento e nas instituições humanas, que quase tudo é cultural, ou seja, que quase tudo muda ou pode ser mudado de forma radical (p. 33).

“Tornar-se herdeiro”, para regressar à expressão do autor, passa por constatar que “a literatura é uma das fontes principais do vínculo com o passado e da sua projeção no futuro, uma das formas de tornar o presente menos prisioneiro de si mesmo e da dose de cegueira que acomete cada época, quando olha para si mesma” (pp. 34-5). Esta seria a grandeza da tarefa, a complexidade daquilo que “uma verdadeira educação literária” implica (35).

Dessa educação literária, bem como da amplidão de um repertório, temos suficiente evidência nos livros que enchem esta mesa e que percorrem muitos dos registos daquilo a que chamamos literatura: poesia (lírica e satírica), ficção, viagens, tradução, edição de clássicos, ensaio sobre modernos oitocentistas ou sobre a vanguarda (concretista). O professor de leitura que é Paulo Franchetti emerge, como ele mesmo faz questão de nos dizer, da experiência da aula enquanto exposição de uma modalidade de construção do conhecimento, feita ao vivo, em direto e a cores e, por isso mesmo, arriscada e sem garantia – uma exposição que recomeça quando a escrita tenta dar forma menos perecível às intuições que emergem dessa prática que, nas suas palavras, regressa sempre ao mesmo momento e dispositivo: o da “leitura comentada. Amplamente comentada” (p. 49) de textos literários, críticos ou teóricos. Se, nas suas palavras sobre a experiência da aula de literatura, “O mínimo necessário é uma base comum de conversa” (p. 49), creio que temos nesta obra e, em particular, no livrinho que justifica este encontro, um mais do que mínimo para alimentar uma longa conversa. Sem que essa conversa ceda, porém, àquela tentação fatal das Humanidades, que consiste em passar o mais rapidamente possível do texto a afirmações categóricas sobre o mundo, propondo a redenção na volta da esquina. Num momento particularmente pedagógico, Franchetti apela a que “não barateemos nosso trabalho, não tornemos a literatura apenas um veículo para outros conhecimentos ou um campo desinteressante de discurso sobre qualquer coisa, de definições e classificações vazias que tentam em vão substituir ou anular a vivência e a complexidade da leitura” (p. 35). Encontrar um professor de leitura que conjugue a atenção filológica ao pormenor textual com a capacidade para situar criticamente a obra no tempo, que articule uma ideia de aula como exposição (em sentido ativo e passivo) do professor com a sobriedade de quem não promete uma tradução imediata de intuições de leitura em mudanças no mundo externo, o que é de resto o nó cego de todo o Humanismo, não é fácil. Na verdade, e convenhamos, estas são “Cousas que juntas se acham raramente”. O que é mais um motivo para justificar a conversa que hoje estabeleceremos à volta desta mesa.

[Texto lido na abertura do colóquio Sobre o Ensino da Literatura. A partir de Paulo Franchetti, na sala do Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a 30 de setembro de 2022]

[1] Paulo Franchetti, Sobre o ensino de literatura. São Paulo, UNESP, 2021.

[2] São Paulo, Companhia das Letras, 2004.