A Tradução na Prática – A Prática da Tradução

Na conclusão de um famoso ensaio de 1952, “Filologia da Weltliteratur”, o grande filólogo romanista Erich Auerbach afirma: “De qualquer modo, a nossa pátria filológica é a Terra – a Nação já não pode sê-lo. É certo que a coisa mais preciosa e indispensável que o filólogo herda é a língua e a cultura de sua nação; mas é preciso afastar-se delas e superá-las para que se tornem eficazes. Temos de retornar, em circunstâncias diferentes, ao que a cultura pré-nacional da Idade Média já possuía: à consciência de que o espírito não é nacional” [1]. Estas palavras, escritas sete anos após o final da Segunda Guerra Mundial, num Festschrift dedicado a Fritz Strich, um dos grandes pensadores da goethiana Weltliteratur, ressoam com um dramatismo particular de novo neste ano de 2022. Mas não é tanto a nota kantiana, de apelo ao cosmopolitismo como condição da paz perpétua, que desejo realçar, e sim a implicação que elas carregam consigo dentro do paradigma filológico: pois admitir que a nossa pátria filológica é a Terra inteira exige de nós o imperativo de um poliglotismo ilimitado, única forma de fazer justiça a essa pátria babélica que é o mundo humano.

Como já perceberam, o que quero sugerir é que a alternativa pragmática a esse inalcançável imperativo poliglota só pode obviamente ser a tradução. Contudo, conceber a tradução como alternativa à nossa “pátria filológica mundial” arrasta-nos necessariamente para aquele anátema, muito romântico e muito herderiano, que se abate sobre a tradução enquanto traição à pureza do círculo mágico de cada idioma, supostamente intraduzível – a menos que a tradução se arme de um arsenal de princípios e dispositivos epistémicos, técnicos, mas também ético-morais, o principal dos quais a demanda da equivalência. A este respeito, ou talvez não, gostava de recordar dois textos de Jorge Luis Borges. No primeiro, o seu escasso (e pouco fiável) Ensaio Autobiográfico, o autor argentino recorda que na casa paterna o inglês e o espanhol funcionavam em contínuo e sem verdadeira hierarquia, o que o levou a ler o Quixote inicialmente em inglês; quando o leu, na idade adulta, em espanhol, achou que o texto não estava à altura da tradução… O segundo, o famoso ensaio sobre “Los traductores de las 1001 Noches”, no qual Borges sistematicamente emancipa as traduções em relação ao original, inviabilizando a precedência ontológica e valorativa deste. Como defende Alain Pauls num ensaio fundamental, “Borges invierte de nuevo los términos: no piensa la traducción (el caso) a partir de la literatura (el modelo general) sino la literatura a partir de la traducción”. [2]

A definição mínima de tradução, sugere Susan Bassnett, é a que se refere ao “movimento de textos através de fronteiras linguísticas e culturais” [3]. A minha tradução de “boundaries” por “fronteiras” é, contudo, senão problemática pelo menos debatível, pois em muitos casos seria melhor usar “limites”, tanto mais que a utilização preferencial de “fronteira” nos instala no senso comum da tradução como prática inter-nacional ou interlinguística (admitindo que as duas noções sejam sobreponíveis). O problema foi muito bem enunciado por Friedrich Schleiermacher logo na abertura do seu ensaio “Sobre os diferentes métodos de traduzir”, de 1813, que me permito agora citar com alguma extensão: “Que o discurso seja trasladável de uma língua a outra, é algo que se nos evidencia das formas mais variadas. Se, por um lado, podem entrar assim em contacto homens que, do ponto de vista geográfico, estão porventura diametralmente afastados entre si, ou podem ser trasladados para uma língua os produtos de uma outra já extinta há séculos, por outro lado nem necessitamos sequer de sair do domínio de uma língua apenas para presenciar o mesmo fenómeno. Pois não só os dialetos de diversas regiões de um mesmo povo e os diversos graus de desenvolvimento da mesma língua ou do mesmo dialeto em diferentes séculos são já em sentido estrito línguas diferentes, que não poucas vezes necessitam de total interpretação mútua, como mesmo os contemporâneos não separados por um dialeto, mas de classes sociais distintas e que, pouco próximos pelo trato, distam muito na sua formação, com frequência apenas se podem entender por uma mediação semelhante”. [4] A “boundary” a que Schleiermacher se refere, para exemplificar a latitude máxima da noção de tradução, é pois algo que se produz dentro da mesma língua, o que no caso do português nos ajudaria a perceber o que sucede quando um português se depara com o uso brasileiro do idioma, quando um emigrante regressa e visita a sua família, quando um açoriano dialoga com um habitante de Coimbra (ou, ainda, quando um professor desta universidade se dirige a um/a estudante em sala de aula). É certo que logo a seguir Schleiermacher enfrenta a questão dizendo que a tradução interna ao idioma ou dialeto “está demasiado limitada ao instante para necessitar de mais direção do que a do sentimento”, pelo que bastará uma disposição de tipo moral para que a nossa alma manifeste abertura “mesmo para aquilo que tem menos afinidade com ela” [5] (o que permanece uma excelente descrição do fundo ético-moral da tradução).

Creio que seria altura de introduzir uma nota wittgensteiniana: também aqui, é caso para dizer, o significado de “tradução” é em grande medida função do seu uso em cada jogo de linguagem. Para certos jogos de linguagem, “tradução” significa uma prática rigorosamente codificada de busca de equivalências entre idiomas. Para outros usos, hoje cada vez mais frequentes, “tradução” exige o questionamento de noções estabelecidas de original, tradução e reescrita, num quadro transdisciplinar muito atento à complexidade da transmissão intercultural, bem como ao trânsito entre os dois lados da barreira da língua, problematizando a linearidade da relação entre língua de partida e de chegada e admitindo mesmo que modalidades de tradução ocorram permanentemente dentro de cada idioma.

Como diretor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, gostaria de aproveitar esta ocasião para fazer notar que aquilo que atravessa todo o nosso departamento é justamente uma ideia e uma prática de tradução, no sentido mais técnico, mas também dentro de um paradigma mais alargado – que, regressando a Schleiermacher, nos permite incluir o próprio português, que aliás é também estudado no nosso departamento como língua estrangeira e língua segunda, no âmbito dos estudos de tradução (libertando-nos assim da obrigação realmente psicanalítica de pensar o português sempre e apenas como língua materna, ou, noutra descrição, libertando-nos da sobreposição fatal entre língua e pátria, de preferência com uma citação de Pessoa à mão – mas Caetano Veloso também serve). Pensar o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas a partir da Tradução, das línguas clássicas às modernas, permite conferir à tradução uma centralidade que, enquanto secção do departamento, ela não possui nem poderá previsivelmente vir a possuir. Por isso mesmo, pensar a centralidade da tradução enquanto dispositivo que permite reconcetualizar o DLLC exige pensar a Tradução não apenas como secção. Quero, pois, aproveitar a ocasião propiciada pela abertura deste colóquio para convidar a secção de Tradução a participar de uma reflexão, que é urgente no departamento, sobre a forma como as nossas áreas científicas se sobrepõem ou cruzam com a nossa estrutura orgânica. Porque a universidade é justamente isso: uma estrutura que responde, com maior ou menor flexibilidade, aos desafios colocados pelo permanente devir dos saberes e pela forma como eles respondem a desafios societais. E nenhum saber é mais crítico, no mundo globalizado que é o nosso, do que o produzido pela tradução, essa forma de viver, com uma taxa aceitável de ansiedade, as exigências da nossa pátria filológica alargada: a Terra inteira. Ou, na sua versão compactada, o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas.

[Texto lido na abertura do colóquio “A Tradução na Prática – A Prática da Tradução”, organizado pela Secção de Tradução do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da FLUC, dias 6 e 7 de maio de 2022]

[1] Erich Auerbach, “Filologia da Weltliteratur“, in Ensaios de Literatura Ocidental. Filologia e Crítica. Org. de Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr., Trad. de Samuel Titan Jr. e Marcos Mariani de Macedo. São Paulo, Duas Cidades e Editora 34, 2007, pp. 357-373.

[2] Alain Pauls, El factor Borges. Nueve ensayos ilustrados (por Nicolás Helft), Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2000, p. 110.

[3] Susan Bassnett, “Foreword”, in Edwin Gentzler, Translation and Rewriting in The Age of Post-Translation Studies, London and New York, Routledge, 2017, p. viii.

[4] Friedrich Schleiermacher, Sobre los diferentes métodos de traducir. Traducción y comentários de Valentín García Yebra, Madrid, Gredos, 200, p. 21.

[5] Friedrich Schleiermacher, id., p. 23.