Algumas palavras sobre Carlos Reis

Quando um professor marcante se aposenta, abre-se uma oportunidade para percebermos as marcas que deixou mas também de que modo o seu trabalho foi marcado pelo seu tempo. No caso do Professor Carlos Reis, quer uma quer outra dimensão são reconstituíveis com moderada dificuldade, o que seguramente se deve à extrema visibilidade do seu percurso. Não custa reconhecer a sua filiação inicial nesse momento de grande energia e investimento teórico que foi o estruturalismo (um momento que se tornou moda apoucar, mesmo quando o que veio depois se limitou a um anseio pelo regresso a um statu quo ante, felizmente já impossível), e isso quer nas suas primeiras incursões queirosianas, quer na narratologia, assim como também não custa perceber o investimento académico e institucional a que procedeu no cânone literário com que trabalhou, com paragem obrigatória em Eça e Saramago, tornando-se a escolha natural para chefiar edições críticas ou coordenar comemorações. Identicamente, é reconhecível um esforço constante de substituição paradigmática, de que daria como exemplo a forma como evoluiu para um modelo de estudos narrativos aberto a variáveis não presentes na versão inicial do seu trabalho narratológico. Todo este trabalho decorreu, porém, como sempre sucede com um professor de carreira longa, num tempo em mudança, no seu caso acentuada pela ocorrência de uma revolução política e de várias revoluções universitárias e educativas. Por essa razão, o nome de Carlos Reis circulou, por várias décadas, entre o ensino superior e o secundário, sobretudo na fase de grande massificação do ensino que ocorreu a partir dos anos 80, já que soube responder às solicitações dessa nova situação produzindo manuais e livros de iniciação à leitura de obras de presença obrigatória nos programas. Tudo isto se traduziu em discípulos, mas também em convites honrosos, desempenhos internacionais e cargos com os quais um certo seu perfil executivo se harmonizou com rara felicidade.

Permitam-me que, no meu papel de diretor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas desta Faculdade de Letras, acentue sobretudo dois aspetos que o trabalho do Professor Carlos Reis nos permite ponderar. O primeiro, o facto de uma das marcas mais reconhecíveis do seu percurso ser justamente esta Faculdade, à qual sempre regressou, dando prova de, ao contrário do Conde de Abranhos, nunca se ter confundido em matéria de geografia – embora talvez pudéssemos dizer, com o mesmo sábio Alípio Abranhos, que o Professor Carlos Reis demonstrou sempre que uma pertença é algo que está para lá das latitudes. A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra é, na realidade, algo que se imprime no seu percurso com o cunho indelével dessa estranha modalidade do puro significante a que chamamos a “marca de água”: uma marca sem conteúdo, mas inscrita num branco mais branco que o do papel, apontando neste caso para modalidades complexas de filiação. Deixo para os/as participantes neste colóquio a inteleção dessa filiação, que exige a sensibilidade, atmosférica e institucional, que define a um tempo os epistemólogos e os detetives (na verdade, duas categorias muito aparentadas de criaturas). Mas gostava de notar que, quando um professor desta Faculdade se aposenta, não é apenas altura de apurar, o que é de elementar justiça, aquilo que a Faculdade lhe deve (e é também para isso que existem colóquios como este que agora se inicia). Esse é também, e falo agora, insisto, como diretor de departamento, o momento de recordar aquilo que cada professor, e também o Professor Carlos Reis, deve à Faculdade em que passou grande parte da sua vida ativa. Como seu ex-aluno, ainda que não discípulo, e talvez por isso mesmo, posso testemunhar aquilo que esta Faculdade deve ao Professor Carlos Reis; não duvido que ele saberá íntima e profundamente o que deve a esta Faculdade de Letras, pois é isso que define e distingue um universitário: o sentimento da dívida contraída perante a sua Escola, que é sempre uma coisa muito maior do que cada um de nós.

O segundo aspeto que desejo realçar é, como já antes referi, a mudança, que o grande músico norte-americano Miles Davis definia como a sua maldição, ele que teve de mudar a sua arte mais vezes e mais profundamente do que no seu íntimo desejaria. A mudança é, de facto, a maldição moderna e, como também já disse, uma carreira longa e uma obra vasta como a de Carlos Reis são, em si, testemunho da inevitabilidade da mudança, mesmo quando ela é induzida por fatores tão externos e imponderáveis como um vírus. Vivemos hoje um momento em que todos desejamos regressar às formas de vida anteriores às mudanças (societais, tecnológicas, pedagógicas) que nos foram impostas pelo vírus – colóquios presenciais, por exemplo –, sabendo embora que muitas dessas mudanças, porventura um número excessivo delas, vieram para ficar. Mas numa altura em que a nossa Faculdade, e por isso o nosso departamento, e em rigor toda a Universidade de Coimbra, se prepara para uma reforma profunda e em boa verdade não evitável da sua pós-graduação, o que exige sempre um volume desproporcionado de energia, o percurso de um professor marcante é, em si, um fator de inspiração. Porque mostra que muito pior do que a mudança é o medo dela; e porque demonstra, por atos e obras, que só enfrentando as mudanças podemos não ser devorados ou pela inércia ou pela mudança imponderada e subordinada ao fetichismo da novidade acrítica, seja ela tecnológica, mercantil ou supostamente pedodidática.

Desejo a todas e todos um bom colóquio, penitenciando-me desde já pelo facto de as minhas obrigações me permitirem acompanhá-lo apenas em regime pontual. Ao homenageado por este colóquio, o Professor Carlos Reis, desejo que sobreviva a mais esta provação, em rigor uma provação amorosa.

[Texto lido na abertura do colóquio As Palavras Visíveis: Colóquio de Homenagem a Carlos Reis, no Anfiteatro II da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no dia 27 de setembro de 2021]