“Basta filmar um livro a arder para que as pessoas o amem”. A frase, bem denunciadora da sacralização do livro na nossa cultura, é de François Truffaut e aparece quer nas entrevistas que deu quando do lançamento de Fahrenheit 451, em Veneza, em setembro de 1966, quer nos seus depoimentos e livros, quando se refere ao filme. O problema técnico, aliás – como incendiar livros – suscita vários comentários empenhados a Truffaut nos quais chama a atenção para a dificuldade de queimar livros, pois os livros ardem mal, por serem demasiado compactos, mas também para a beleza visual das páginas que se encarquilham como pétalas rubro-negras sob a ação do fogo. A sua excitação com a questão está bem patente nestas palavras: “As cenas de incêndio são formidáveis! Adoro o fogo! Sempre fui um pouco incendiário” (O Cinema segundo François Truffaut, org. de Anne Gillain, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 169). Podíamos reter esse comentário, que sugere desde logo que o amor pelos livros vem sempre acompanhado do fantasma da sua destruição, sobretudo pelo fogo. Ou seja, e se me permitem que use palavras de ascendência antiga, não há bibliofilia sem biblioclasmo: o gráfico da expansão da primeira (o culto e a paixão devoradora pelos livros) é sempre acompanhado pela ocorrência do segundo (o enfado ante os livros e o desejo íntimo da sua eliminação).
Convém esclarecer que este filme, nas próprias palavras de Truffaut, responde a um desejo e projeto antigo: o de “fazer um filme sobre os livros”. Por um lado, o desejo pode parecer surpreendente num realizador que integra uma fase histórica do cinema, a Nouvelle Vague, em que este se deseja assumir como arte emancipada, desde logo dos livros, ou seja, da literatura. Entre outras coisas, uma expressão como “Política dos Autores” implica reconhecer que Renoir, Hitchcock ou Mizoguchi são autores tão grandes quanto Shakespeare, Dante ou Cervantes, coisa que hoje só nos surpreende que tenha levado tanto tempo a admitir. Por outro lado, convém não esquecer que falamos de pessoas francesas, ou franco-suíças no caso de Godard, com uma muito sólida educação literária e que fazem acompanhar a sua produção fílmica, ou ainda pré-fílmica, de uma atividade de escrita, e não apenas de crítica, ininterrupta: Eric Rohmer escreve “contos morais” que mais tarde serão filmes, Jean-Luc Godard, que se passeava em jovem em Paris sempre com um romance de Balzac no bolso, é a mais de um título um cineasta do livro e da (re)escrita (veja-se o seu último filme, “Livro de Imagem”), e Truffaut é um herdeiro do imaginário romanesco da literatura moderna (mais ainda, gostava de dizer que o cinema “é uma arte da prosa”, não da poesia). O mais estranho poderia ser o facto de que Truffaut realize o seu projeto de fazer um filme sobre livros adaptando uma obra de um género que não apreciava, a Ficção Científica. Como ele mesmo diz, “era contra, e por preconceito. Eu não os lia. E também era contra os filmes de ficção científica” (id., p. 167). Como explicou num famoso artigo, “Não consigo impedir-me de pensar que é preciso muita frieza, insensibilidade e pobreza de imaginação para buscar entre os marcianos a fantasia, a poesia e a emoção quotidianas, eternas, que estão entre nós, na Terra, ao alcance da mão, do olhar e do coração” (id.).
Sucede, porém, que em 1960 um amigo, Raoul Lévy, lhe resume o livro de Ray Bradbury em três frases “completamente mágicas. Um país onde é proibido ler, onde os livros são queimados e onde aqueles que leem se veem condenados ao opróbrio, à prisão, se necessário até à morte” (id., p. 168). Truffaut lê o livro, adquire os direitos e, até à data em que faz a rodagem em Inglaterra, em 1966, produz quatro argumentos diferentes, com quatro argumentistas, o que revela bem o nível da obsessão envolvida no projeto (para tudo isto, veja-se a biografia de Truffaut por Antoine de Baecque e Serge Toubiana, François Truffaut, Gallimard, 2001, pp. 417-433). As diferenças em relação ao livro são grandes mas as opções de Truffaut são de uma coerência a toda a prova. Para começar, os sinais exteriores da Ficção Científica são reduzidos ao mínimo. Bradbury lamentou a eliminação do Cão Mecânico, uma espécie de pré-figuração tecnológica do pesadelo policial do Estado do controlo, um típico gadget de Ficção Científica. Isso faz com que o filme se defina, quase sempre, por um universo de baixa tecnologia, reforçado aqui e ali com um toque de perversidade, por exemplo nos telefones da casa de Montag, que parecem coisa de museu. Em vez disso, Truffaut recorre à sua experiência juvenil na França ocupada e, como ele mesmo declara, sempre que o guião colocava problemas, a equipa dizia entre si: “É uma história da Resistência, Montag (o bombeiro) faz parte da Gestapo, enquanto Clarisse (a rapariga) está na clandestinidade” (O Cinema segundo François Truffaut, pp. 171-172). Como é sabido, o livro de Ray Bradbury, publicado em 1953, foi declaradamente escrito como uma reação ao período McCarthista nos EUA, com o rol de comportamentos conhecidos: anticomunismo primário, caça às bruxas, julgamentos sumários e prisão, marginalização de pessoas, etc. A guerra e a ocupação, porém, tinham acabado há demasiado pouco tempo, em 1966, para um francês ou um europeu não reconhecerem de imediato o subtexto do filme de Truffaut, que como o crítico americano Jonathan Rosenbaum nota, explora espaços como caves, sótãos, fundos falsos, que desencadeiam de imediato a imaginação da ocupação e da resistência, ou práticas como a denúncia anónima. Uma última diferença, absolutamente decisiva, é a que Truffaut condensa na sua declaração de que “Eu não quis colocar uma só frase em favor dos livros e isso permitiu-me fazer um filme sem discurso” (id., 169). Essa a razão que o leva a suprimir o filósofo Faber, que produz um longo discurso de defesa dos livros, talvez enfadonho no ecrã, sugere o realizador.
Faber, de facto, não faz falta ao filme, já que pela sua voz nos chega no romance o discurso do humanismo conservador da primeira metade do século XX na sua reação aos meios de massa e aos seus efeitos supostamente perniciosos na esfera cultural, um discurso obviamente sufragado por Ray Bradbury, que cria ao longo do livro uma oposição simplista entre cultura de massa e alta literatura canónica: a primeira estaria do lado do conformismo, a segunda do lado da resistência, uma descrição recorrente à direita como à esquerda, de resto. Não diria o mesmo do tratamento do capitão dos bombeiros, Beaty, que é muito mais rico no romance de Bradbury, já que se trata de um queimador de livros que faz repetidas citações de grandes obras nas suas falas, o que introduz a suspeita de que o grande inquisidor esconde um leitor voraz, relançando a articulação estreita entre bibliofilia e biblioclasmo.
O verdadeiro herói de Fahrenheit 451, afirma o crítico Jack Zipes (1), não é Montag mas a literatura, e a frase faz sentido, de facto. Com uma diferença, contudo, muito inteligentemente explorada por Truffaut, desde o genérico do filme, um genérico dito e não inscrito na película, o que pode ser visto como uma homenagem ao que Godard fizera em O Desprezo, poucos anos antes. Não se trata agora de denunciar a ilusão fílmica, exibindo o aparato da rodagem, como fez Godard, mas sim de colocar desde o início o foco na oralidade, ainda que uma oralidade um tanto assustadora, como se ouvíssemos a própria voz do sistema repressivo, o que bate certo com o panorama de antenas de televisão que preenche o genérico. O foco na oralidade poderia parecer contraditório num filme sobre livros, não se desse o facto de que a repressão do livro leva a que os leitores não saibam já ler (o modelo canónico da leitura, em silêncio, praticamente não ocorre no filme de Truffaut). Numa das grandes cenas do filme, Montag lê à noite, em casa, enquanto a mulher dorme, o início de David Copperfield de Dickens: Montag lê em voz alta, lentamente e com dificuldade, sublinhando cada linha com o dedo, como se o leitor tivesse regredido à fase medieval, de leitura aliás partilhada em voz alta, mas lê também toda a folha de rosto do livro, ou seja, todas as indicações técnicas de produção do livro. De facto, Montag não sendo analfabeto, não sabe já o que seja “ler um livro”, o que mostra como toda a leitura se processa dentro de um protocolo específico que é preciso dominar e recuperar, razão porque Montag, nesse momento, é um homem da nova era das trevas, como se diz muitas vezes na Ficção Científica distópica – ou na política atual.
Chegamos assim, por via da oralidade, aos homens e mulheres-livro, essas criaturas imaginadas por Bradbury e que memorizam livros, ou melhor, o conteúdo dos livros. Para recorrer à expressão do Talmud que o grande crítico Harold Bloom usa para falar de Fahrenheit 451, “comem os livros”, destruindo-os logo de seguida (2). Como se diz no romance, “Somos queimadores de livros também. Lemos os livros e queimamo-los, com receio de que possam ser descobertos” (3). Ou seja, por precaução ou por auto-de-fé, os livros acabam sempre queimados, passando a viver na memória do seu leitor-portador. Truffaut comenta que o livro de Bradbury, neste ponto, o da memorização do interdito, “é, de certa forma, o elogio da astúcia, que é o meio de resistência ideal” (id., p. 174). É isso que lhe interessa no livro e não propriamente a épica da luta contra a censura.
As páginas em que Bradbury descreve esta gente do livro são dignas da tradição da literatura pastoral, pois, nas palavras de Granger, “somos apenas uma minúscula minoria escondida na natureza” (id., p. 194). Mas evocam também a tradição tão americana, um tanto libertária e um tanto comunitarista, de pessoas que são, ao mesmo tempo, “cidadãos exemplares” e “vagabundos”, embora “Vagabundos por fora, bibliotecas por dentro” (id., p. 195). Microcomunidades, falanstérios errantes, entregues à tarefa da transmissão da memória: “Passaremos os livros aos nossos filhos, de boca a orelha, e deixaremos que, por seu turno, os nossos filhos os passem a outros” (id.). As últimas sequências do filme de Truffaut dão a esta transmissão oral uma tradução destinada a comover todos os aficionados do livro: em primeiro lugar, na cena da transmissão do idoso à criança, que dá a ver a circularidade perfeita de um modo orgânico de cultura; em segundo lugar, a cena final em que as vozes se tornam babélicas, reproduzindo o concerto plurilinguístico da literatura do mundo. Ambas, com a ajuda da música de Bernard Herrmann, deslocam a experiência da leitura, bem como a da literatura e do livro, que são sempre experiências da mediação (da linguagem, do impresso, da retórica da ficção), para a experiência da presença, criando uma sugestão de fusão entre texto e corpo e corpo e mundo, que eu diria que a música de Herrmann, ao mesmo tempo, contesta, sugerindo antes que essa fusão é um sonho que só se pode viver melancolicamente.
O maior paradoxo da crítica cultural ativada por Bradbury no seu livro, contra os efeitos perniciosos dos meios de massa, é que ela ocorre no exato momento da máxima expansão do livro, de que o paperback, ou livro de bolso, será o maior emblema na segunda metade do século XX (no filme de Truffaut queimam-se sobretudo paperbacks, aliás). E, convenhamos, a era dourada da Ficção Científica na literatura não é sequer pensável sem o paperback e a massificação que ele implica, o que significa que as posições de Bradbury são profundamente ideológicas, ou seja, são cegas em relação aos seus próprios pressupostos. Desse ponto de vista, ler o livro de Bradbury ou ver o filme de Truffaut hoje, é algo que ocorre numa ecologia do livro e da leitura muito diversa. Como afirma Fernando Rodriguez de la Flor no seu grande livro Biblioclasmo, “O livro é já, de facto, onde quer que se encontre, um objeto museológico” (Lisboa, Livros Cotovia, trad. de Pedro Serra, 2004, p. 43). O mesmo é dizer que o livro leva hoje uma intensa vida póstuma no universo digital em que vivemos. Isso conduz-nos inevitavelmente a moderar o contrafactual humanista que percorre Fahrenheit 451: será que um grupo de pessoas que memorizam livros pode ser a semente e a fundação de uma nova sociedade? Ou será que este contrafactual é ainda parte da sacralização do livro, que pede aquilo a que Rodriguez de la Flor chama biblioclasmo, ou seja, “uma arte que nos compense de tanta (inútil, estupidamente inútil) leitura, para aproximar-nos de outra área de intensidade sémica mais baixa, onde (deve) habita(r) um certo esquecimento reparador” (id., p. 241)? O problema desta hipótese é que o “esquecimento reparador” só pode operar a partir de uma memória prévia, pelo que “ler menos”, como sugeria terapeuticamente Henry Miller, é a típica máxima que só um leitor voraz pode produzir – tarde, demasiado tarde. Até lá, contudo, será bom que os bombeiros deixem os livros quietos, para que possamos perder a nossa vida dentro deles.
(1) Jack Zipes, “Mass Degradation of Humanity and Massive Contradictions in Bradbury’s Vision of America in Fahrenheit 451”, in Ray Bradbury’s Fahrenheit 451, Org. de Harold Bloom, NY, Bloom’s Literary Criticism, 2008, pp. 3-18. A frase em causa encontra-se na p. 13.
(2) Esta é, em boa verdade, a contradição insanável da figura do Homem-Livro: para que o livro possa ser comido é fundamental que ele seja desmaterializado, ou seja, que do livro nos fique a versão idealista e metafísica de um puro “conteúdo” sem forma ou concreção material, um tropo que se transmitiu ao mundo digital, como se sabe, sempre a aspirar por “conteúdos” que satisfaçam as exigências da procura. A lógica do auto-de-fé parece curiosamente pressupor a ocultação desta antinomia, como se destruindo o objeto-livro se assegurasse a destruição do seu conteúdo, o que significaria que o conteúdo depende estritamente da sua concretização objetual. O que Bradbury faz é esvaziar a empiricidade, sempre ameaçada, da circulação clandestina dos textos perseguidos, assegurando assim a sua salvação plena no interior indevassável dos homens e mulheres-livros. Esta astúcia, tão do agrado de Truffaut, revela todos os seus problemas na cena, antes referida, em que Montag tenta ler David Copperfield, na qual nos deparamos com toda uma pedagogia da reiniciação na leitura não de um texto em abstrato (coisa de concetualização problemática) mas de um livro, um objeto ou dispositivo ou máquina cujo programa de leitura foi segregado por uma longa e lenta história material, gráfica e tipográfica.
(3) Uso uma tradução recente no selo 11/17, das Edições Saída de Emergência, Porto Salvo, 2020, p. 193.
[Uma versão deste texto foi lida no Indie Lisboa, no ciclo Filmar Literatura, no Cinema Ideal, no dia 2 de setembro de 2021, antes da projeção de Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut]