Que razão sustenta a celebração pública de um escritor, ou seja, de alguém que dedica a sua vida a peneirar as palavras da sua tribo para lhes conferir um sentido mais puro e assim acrescentar algumas histórias ao acervo da sua comunidade? A pergunta, e a razão ou razões que a sustentam, tem em Portugal um sentido especial, uma vez que o dia escolhido para celebrar a nação e as comunidades portuguesas pelo mundo, é igualmente o dia em que celebramos o maior dos nossos poetas. Este gesto, e esta coincidência, são suficientemente raros entre as outras nações para que consigamos resistir a atribuir-lhes algum sentido particular a nosso respeito.
Uma nação, dizia o pensador francês Ernest Renan no final do século XIX, é um plebiscito diário, pelo qual os seus membros decidem, entre outras coisas, aquilo que desejam recordar e aquilo que desejam esquecer. Por outras palavras, o que a nação elege diariamente são as histórias que deseja continuar a contar entre si à roda da fogueira, e quais as que deseja esquecer. Boa parte dos problemas do Portugal contemporâneo residem, estou em crer, na dificuldade em eleger uma história que nos mobilize a quase todos, encontrando nela uma razão para continuarmos juntos. Em perspetiva histórica, o contraste é flagrante, pois os portugueses manifestaram durante séculos a sua preferência por uma história cujos pontos altos ocorreram entre 1498 e 1500, ou seja, entre a viagem de Vasco da Gama e a de Pedro Álvares Cabral. Essa história remota produziu efeitos duradouros na nossa cultura, isto é, na nossa forma de viver, pensar e imaginar, como se percebe analisando a toponímia de qualquer das nossas cidades, incluindo Cantanhede, dos nomes de ruas aos monumentos públicos, pois toda a localidade deste país sonha encontrar nos seus arquivos um descobridor – como é o caso de Pedro Teixeira, descobridor e conquistador da Amazónia, demarcador de territórios e fundador de cidades. Esta história inscreveu-se tão profundamente na nossa psique, tornou-se tão definidora daquilo que desejamos recordar, que de cada vez que alguém, ao longo dos séculos, de Diogo do Couto, coevo e amigo de Camões, a Amílcar Cabral, na antiga África portuguesa, ou a Ailton Krenak, líder indígena atual no Brasil, alertou para a sua contraface tenebrosa – a violência e a crueldade, o roubo e o saque, a escravização e destruição de povos inteiros – a reação imediata foi a de recusar a esse outro lado o direito de memória, deixando imediatamente claro que isso é justamente o que não desejamos recordar, aquilo que nos esforçamos por recalcar eternamente.
Chegou a altura de fazer uma pergunta difícil, daquelas que em rigor não têm resposta, mas que têm o condão de ficar connosco por muito tempo (esta, pelo menos, tem ficado comigo há muito). A pergunta é esta e convido-vos a pensar nela: Qual é o fundamento normativo de uma sociedade: as leis ou as histórias? A primeira resposta a esta pergunta devemo-la ao filósofo Platão, há cerca de 24 séculos. Platão era uma criatura dividida em relação à questão, pois como quase todos os seres humanos respondia de uma maneira quando estava em causa a paixão (e a sua paixão pela poesia, no sentido grego, isto é, por todas as formas de ficção verbal, era manifesta) e de outra quando entrava em cena a Razão. Neste último caso, a sua resposta, que podemos rastrear sobretudo no seu volume A República, foi esta: a poesia, porque excita a imaginação dos jovens, é perigosa para a ordem social, razão pela qual os poetas devem ser banidos da cidade. A ideia de que a ordem social se edifica sobre proibições e banimentos é muito antiga, e perdura obviamente até hoje. O que pode ser surpreendente, para quem pense na figura atual do poeta, é o receio, algo histérico, que Platão manifesta em relação a eles. Mas convém recordar que os poetas eram muitas vezes na Grécia os professores, pelo que o seu impacto junto dos jovens era redobrado. Um professor, já agora, e gostaria de assumir-me como tal, pois venho de uma vasta família de professores, é alguém cuja vida profissional decorre sob a égide de uma história particular: o professor é aquele que acompanha os jovens e que se esforça por criar as condições que lhes permitam desabrochar e florescer. Esta história, de resto tão bela, de florescimento, justifica a minha profissão, cujo lado socialmente perigoso reside naquilo que causava visível desconforto a Platão: criar as condições para que uma pessoa floresça implica lutar por um funcionamento incondicional da imaginação. Uma imaginação sem condições, ou seja, sem restrições a priori, é sempre um perigo para a ordem social; mas é também a condição para uma sociedade realmente livre, aquela na qual o florescimento de cada um é a condição necessária para um todo social realizado.
A minha resposta à pergunta difícil que há pouco fiz está bastante afastada da de Platão: uma sociedade que expulsa os seus contadores de histórias é uma sociedade que se condena à atrofia; é, no limite, uma sociedade incapaz de se reinventar, além de ser uma sociedade sem a capacidade da empatia compassiva com o outro que aprendemos na literatura, quando nos identificamos com personagens muito diferentes de nós. Permitam-me então uma outra pergunta, subsidiária daquela: podemos imaginar a Gândara, hoje, sem a obra de Carlos de Oliveira e sem a história que ela nos conta sobre este território? A história que essa obra conta sobre a Gândara situa-se num período recente, entre os anos 40 e 70 do século XX, mas na verdade remonta a uma era arcaica e, mais ainda, primordial, pois ela começa por ser uma história da paisagem e seu povoamento, para me referir ao subtítulo de Finisterra. Para a história da paisagem o autor recorre a dados e conjeturas da área da geologia, da mineralogia e da botânica, sobretudo; para o povoamento recorre à geografia humana e à história, com demora naquilo que um título clássico do pensamento marxista resume: a história da família, da propriedade e do Estado (trata-se, sempre, de mostrar como todas estas entidades têm uma história que podemos revisitar criticamente). Resumirei, também eu, essa história arcaica, que é a história do Livro do Génesis da Gândara, tal como a podemos reconstituir a partir dos livros de Carlos de Oliveira: no princípio era o areão; mas também os pântanos, os poceirões, as lagoas e, claro, os mosquitos e as sezões. Depois chegaram os povoadores e começaram a ocupar a terra, lutando contra os pântanos e as maleitas, contra a terra arenosa e pobre, e multiplicaram-se. Nesse princípio, a ocupação da terra era selvagem ou, se preferirmos, livre, seguindo o exemplo e o paradigma da duna: instável, em permanente metamorfose, sem demarcação nítida, o que significa que não existia a apropriação privada da terra, por definição comunitária. A imagem fundamental desta reconstituição conjetural dos inícios é, obviamente, a que dá título ao primeiro romance do autor: uma Casa na Duna, uma construção frágil e condenada, na longa duração da história, a ser reabsorvida pela natureza (esse é o desenlace que nos traz Finisterra, o último romance), como ocorre com todas as casas, todas as famílias e toda a propriedade. Depois, porém, começou a luta pela terra, segundo um modelo darwiniano (o do triunfo do mais forte ou do mais adaptado ao meio), que acaba por derivar para o modelo do homem lobo do homem (a alcateia). Propriedade e crime tornam-se indissociáveis, apesar do efeito de esquecimento dessa mácula original que a passagem das gerações acarreta para as famílias que dela beneficiam.
Basta reconstituir esta narrativa primordial para percebermos a que ponto, em Carlos de Oliveira, contar uma história implica revisitar a Lei que fundamenta, de forma tão pouco sólida quanto uma casa na duna, a sociedade em que a história decorre. O romance Alcateia, de 1944, com o qual o autor manteve sempre uma relação difícil, inclui uma história que mais tarde Carlos de Oliveira viria a confessar integrar o património dos contos tradicionais portugueses, tendo-se o autor limitado a adaptá-la, como uma espécie de saborosa anedota, a uma cena de denúncia das práticas e abusos do Dr. Carmo, o administrador de Corgos. Trata-se da história da vaca, que se pode apresentar assim: “Dois lavradores tinham tido uma pendência a propósito duma vaca. O animal é meu, não é, mas é, cada qual com as suas razões, até que um deles resolvera consultar o doutor Carmo”. O doutor diz ao primeiro lavrador que bastará processar o outro e a vaca será dele – formulação que repetirá exatamente nos mesmo termos ao ser consultado pelo segundo lavrador. A mulher, D. Hermengarda, perplexa com o discurso do marido, pergunta-lhe a quem pertence afinal a vaca, ao que o causídico responde “descansadamente: – Qual quê, mulher! não tarda que a vaca seja nossa”.
Esta história poderia suscitar uma longa conversa. Por um lado, ela parece justificar o papel fundante do Direito, já que lhe cabe solucionar conflitos, propondo um modelo irénico (ou seja, harmonioso e pacífico) de sociedade. Por outro lado, todos os problemas de fundamentação do juízo legal se encontram presentes nela. Resumindo, esta história tradicional, de que Carlos de Oliveira se apodera, enuncia um conflito e dá prova da necessidade da lei, apenas para mostrar como esta não é uma evidência em si, algo que nos teria sido transmitido por Deus, mas antes um produto de uma história demasiado humana e marcada por contingências várias.
Suponho que este exemplo mostra também a imersão da obra de Carlos de Oliveira na cultura local, sobretudo na sua fase inicial. Um exemplo espetacular do volume dessa imersão e investimento é o início de Pequenos Burgueses, de que transcrevo a versão final, de 1970: “Nos começos do estio, uma destas veredas da gândara é um enovelado fiar e desfiar de pegadas. Não faltam sinais de pés descalços, tamancos, cascos, ferraduras, na poeira grossa e ainda húmida das últimas chuvas da primavera. O calor, contudo, aperta dia a dia, o chão começa a esboroar-se e há de criar o pó amarelado e solto de agosto. Então, adeus pegadas.” É uma passagem que reúne e resume toda a relação de Carlos de Oliveira com a sua região: Raimundo, idoso, “coxo e desgraçado”, lê no chão, qual um Sherlock Holmes de feira e taberna, o povoamento, reconstituindo o panorama social e civilizacional da Gândara sem precisar sequer de levantar a cabeça. É um bicho da terra que sonha dia e noite com uma égua que lhe permita voar sobre os caminhos, libertando-o da sua deficiência. É, por fim, um iletrado que lê sem cessar os sinais inscritos nos caminhos e veredas da Gândara, dando prova da densa e multissecular cultura do analfabeto.
100 anos é muito tempo na vida de uma pessoa, mais ainda quando ela morreu há cerca de 40 anos, o que significa que as histórias que essa pessoa nos contou prosseguem entre nós. Mas é muito pouco na vida de um território, que se afere antes por uma duração longa, muito para lá dos milénios, escala com a qual a imaginação de Carlos de Oliveira gostava de trabalhar e face à qual a escala dos Raimundos ou Silvestres dos seus romances gandareses (a nossa escala, afinal) é uma breve espuma deixada por uma onda na praia. Em Carlos de Oliveira, contudo, a escala temporal da constituição da paisagem, longa e lentíssima, parece aproximar-se da estrutura da injustiça, quase tão inamovível como a da natureza. Podemos nós, perguntava eu há pouco, imaginar a Gândara sem as descrições de Carlos de Oliveira e, sobretudo, sem as histórias e as personagens com que ele povoou este território? Não tenho uma resposta acabada para essa pergunta, mas não duvido de que a autoconsciência territorial dos gandareses, a ideia de que à palavra Gândara corresponde uma coisa com uma massa específica, subiu exponencialmente com a obra de Oliveira. A literatura é uma forma enganosa de descrever o mundo, um truque de feira, um jogo pouco inocente com as palavras. As histórias que o nosso (o vosso) aprendiz de feiticeiro conta sobre a Gândara são, em rigor, propostas imaginativas sobre o mundo, descrições que, quando particularmente persuasivas, ganham uma espécie de força de lei, instilam em nós a convicção de que o mundo é tal qual como nos livros e estes são tal qual como o mundo, relançando de novo a relação especular entre Livro e Mundo. Este debate, esta dúvida, sobre a semelhança ou não entre o livro e o mundo, que devemos desde logo aos livros sagrados, não tem fim, e é para que não tenha fim que existe a literatura e existem pessoas que acreditam que as sociedades precisam tanto de leis como de histórias. Pessoas como o gandarês Carlos de Oliveira, cujos 100 anos merecidamente assinalamos hoje.
[Discurso proferido hoje, 25 de julho de 2021, em sessão solene do Município de Cantanhede, no dia da cidade, assinalando o centenário de Carlos de Oliveira]