André Jorge e os Livros Cotovia

A notícia chegou há uns meses: os Livros Cotovia vão fechar. Não é, infelizmente, uma surpresa, tantas vezes aguardei esta notícia nos últimos anos, depois e mesmo já antes da morte de André Jorge. Com esta notícia, porém, alguma coisa morre também em mim, quer porque há menos um sítio no meu roteiro pessoal de Lisboa, quer porque enquanto houvesse novos livros da Cotovia a memória de André Jorge se prolongaria naturalmente, se o posso dizer assim.

Em certas coisas, André Jorge era um português típico, mais baixo do que alto, algo pesado, amante de vinhos e da boa mesa, dado a conversas sem prazo nem rumo fixo, oficiante, também ele, do culto de Amália. Noutras, não o era: falava baixo e em tom suave, dificilmente perdia a compostura, não apreciava futebol nem piadas brejeiras. Era tímido, o que se traduzia numa sociabilidade regida por regras de decoro defensivas, a começar pelas formas de tratamento, que usava com consciência, de forma a garantir a distância que só a prazo aceitava diminuir. E tinha uma repugnância instintiva por aquela coisa portuguesa da palmada nas costas e tratamento imediato por tu, ponto em que coincidíamos.

Para mim, André Jorge funcionava como um amigo mais velho, com quem aprendi até ao fim. Sobre vinhos, para começar, na razão inversa da minha incompetência técnica na matéria. Sobre os meandros da luta política no período pré-revolucionário e revolucionário, bem como sobre a incultura estrutural da classe política, que, na sua geração, conhecia demasiado bem. Mas também sobre Georges Simenon, coisas várias da França, da chanson aos queijos, e sobre o Brasil – visitámos uma vez a Bienal do Livro de São Paulo, com Diogo Dória, para assinalar o lançamento da Inimigo Rumor como revista brasileira e portuguesa, e pude então aperceber-me do muito que sabia sobre o país, o que o levou, por exemplo, a escolher um hotel modesto, mas com a vantagem de ficar mesmo à beira do Bixiga, bairro dos seus amores. E, claro, sobre o mundo e o submundo dos livros. Aconselhou-me muitas vezes em matérias ligadas à Angelus Novus, Editora e ganhei mesmo o hábito de lhe telefonar, quando tinha dúvidas sobre aspetos técnicos de edição ou de relacionamento com os agentes do mercado. Era um homem de fidelidades: às suas paixões – desde logo, a uma certa ideia de literatura e cultura – e aos seus amigos, o que explica o perfil do catálogo dos Livros Cotovia, chancela criada em parceria com o seu irmão João Miguel. Por isso mesmo, nunca lhe foi possível mudar no sentido que supostamente o mercado pedia, já que, do grafismo dos livros (é-me difícil pensar nos livros da Cotovia sem integrar o seu grafismo no continuum do trabalho de João Botelho que, desde A Regra do Jogo, marcou a edição portuguesa após a revolução, trabalho sobre o qual Joaquim Manuel Magalhães fez um dos poucos textos de que até hoje dispomos) aos autores e géneros eleitos, tudo fazia sentido com o seu perfil e as suas fidelidades. Por tudo isto, ter integrado o catálogo dos Livros Cotovia é uma das coisas de que me orgulho.

André Jorge conhecia muito bem Coimbra, ou melhor, a Coimbra que frequentara desde que, menino, cá estudara, em colégio interno, até ser preso aos 16 anos, por reivindicações estudantis (a sua timidez não escondia a sua coragem). Tinha, por isso, com Coimbra uma relação complicada, feita de alguma nostalgia juvenil e muita relutância em relação à estrutura de “boas famílias” da cidade, bem como a tudo aquilo que a universidade simbolizava, ou tresandava. Em mais do que um sentido, conhecia essa Coimbra melhor do que eu, e devo-lhe boa parte da minha arqueologia desse período, que revisitava sempre em registo autocrítico.

Depois veio a doença e o longo calvário, acompanhado de perto e atenuado pela presença de Fernanda Mira Barros. Foi-mo descrevendo ao telefone, ou nos reencontros, quase sempre em Lisboa – uma última vez, num almoço estival a três, nós dois e a Carolina, mesmo em frente aos Livros Cotovia, uma recordação feliz de um período já difícil. Uma exceção ocorreu quando, emergindo de uma fase mais dura e sempre esperançado na cura, me propôs um almoço num restaurante de comum predileção, o Carrossel, na Gala, Figueira da Foz, com alguns amigos: o editor discográfico David Ferreira, o pintor João Jacinto, o encenador António Barros. Foi um almoço sumptuoso e infindável, e olhando para ele em retrospetiva é como se nas pessoas presentes se reunissem algumas da suas inclinações de sempre: o canto de Amália (David Ferreira levava headphones e ouvia gravações inéditas da diva, o que suscitou análises e discursos dos experts que ele e André eram), a grande poesia, no caso a de Herberto Helder, que admirava sem moderação, a pretexto de um reconhecimento do poeta numa linha de comboio, contado com humor por João Jacinto, o teatro, na pessoa de António Barros.

É assim que gosto de recordar André Fernandes Jorge: entre amigos, contando histórias, chegando-se à frente e abrindo mais os olhos ao alcançar um pormenor decisivo, rindo com gosto em seguida.

[Em 2008, assinalando os seus 20 anos de existência, os Livros Cotovia publicaram o livro Não será por acaso, com depoimentos de vários autores publicados pela editora, ilustrados por capas de várias coleções. No final desta breve evocação permito-me remeter para o meu texto, Um elogio da literatura.]